Paradoxo africano da falta de alimentação
O conhecimento narrativo angolano é uma boa âncora para reflectir acerca da dolorosa situação de fome que ainda devasta comunidades inteiras a nível global e, especialmente, em diversas partes do nosso continente. Trata-se de um problema eminentemente moral. Para o efeito, a analepse pode ser um expediente discursivo útil. Com um mergulho nas profundezas da memória social, pode-se retirar de lá o fragmento de um instante, uma nótula reflexiva, assinada há mais de três décadas por um jovem optimista e fervoroso pan-africanista.
Fragmento de um instante
“Por estas terras do sul do país, do continente e da troca desigual, também vamos sentindo as nefastas consequências da famigerada crise em África, de que Luanda não parece reflectir bem as tonalidades.há dias, ou melhor, ontem estive a reler um artigo do Dr. Edem Kodjo, antigo Secretário Geral da OUA, sobre o “redressement economique” do continente, cuja motivação fora precisamente a Conferência de Nova Iorque do ano passado. Preocupei-me em reter algumas palavras: “nós devemos saber que estamos num domínio em que do verbo não se faz facilmente carne e que nenhum milagre resolverá os nossos problemas, excepto a determinação e o trabalho”.
Ora, as conexões que procurei estabelecer conduziram-me a escrever sobre a realidade que eu observo e etc. Quando diariamente ouvimos falar e assistimos a funerais de crianças que morrem de desidratação, às vezes alimentando-se apenas de banana, ao longo de intensos dias dos meses, que mais dramática situação podíamos esperar?
E, no entanto, as arbitrariedades e paradoxos mantêm-se equilibrados, seja pelos que a sustentam e dela retiram avultados “rendimentos” e pelos que com sacrifício alimentam a numerosa prole de uma “família alargada”.
Agora, se procurarmos saber a razão pela qual a banana do vale do Cavaco se vem tornando o alimento-base, vamos acrescentar que isso representa um pequeno exemplar da mal nutrição e da fome que perpassa o continente. Porém, o certo é que, de acordo com um documento elaborado pela FAO e a OUA sobre a “fome em África”, “toda a abordagem realista dos problemas da miséria e da fome e da malnutrição em África deve fundamentar-se numa boa compreensão dos laços íntimos que existem entre estes problemas e o da pobreza”. Isto tudo dito, dá no seguinte: a necessidade da luta para o estabelecimento de uma Nova Ordem Económica Internacional.”
Este é o excerto de um texto escrito há trinta e três anos, tendo sido o facto criminoso que custou a privação de liberdade e uma situação carcerária de seis meses, numa prisão de máxima segurança. Em 1987, o seu autor era então o referido jovem optimista, fervoroso pan-africanista que continua a ser. Numa perspectiva contrafactual, é como se ele estivesse a levantar interrogações acerca de cenários do que se devia fazer no futuro, perante a hipótese de voltarem a ser vividas semelhantes experiências de fome. Neste sentido, a referência a Angola é um mero tropo metonímico relativo ao continente africano.
Conceitos de alimentação e fome
No contexto angolano actual, como se podem definir os conceitos de fome e alimentação? E, por outro lado, quais são as formas em que se manifesta a existência de tais conceitos? Na linguagem técnica da filosofia, diz-se que está em causa um problema metafísico. As respostas podem ser encontradas na lexicografia das línguas nacionais angolanas que, na geolinguística Bantu, pertencem a quatro zonas do espaço da África Central Ocidental e Sudoeste da África Austral, nomeadamente, H, K, L e R.
Integram a zona H o Kikongo e o Kimbundu. Da zona L fazem parte o Ciluba e o Lunda. Integram-se na zona K, o Cokwe, Lwena, Luvale, Lucazi, Lwimbi, Mbunda, Mbwela e Ngangela. As línguas Umbundu, Nyaneka-humbi, Kwanyama, Ndonga e Herero inscrevemse na zona R. Predominam aí dois radicais de unidades lexemáticas e respectivos significados iluminam o caminho. São eles: a) “-di-”, comer; b) “-jada-”, fome. Deles derivam vocábulos como “kulya”, “kudia” (alimentação, comida); “njala”, “nzala” (fome). Estabelecem conexões com outras unidades lexemáticas, tais como “kulima”, “kudima” derivadas do radical “-dim-” (cultivar, trabalhar). É a partir destes significados e referências culturais que podem ser elaborados os esquemas conceptuais e definidos os conceitos de alimentação e fome.
Curiosamente, o conhecimento narrativo veiculado pelas literaturas orais fornece subsídios para a definição dos conceitos de fome e alimentação. É na comunidade Nyaneka-humbi, situada na zona R das línguas Bantu de Angola, no Sudoeste da África Austral, que se encontra uma das mais representativas narrativas sobre a fome: “Omulume Nomukai wahe Penima Lyiondyiala” (Um Homem e sua Mulher num Ano de Fome). Trata-se do mesmo espaço territorial onde se ouvia falar de um “flagelo outrora periódico”, segundo o padre Carlos Estermann.
No introito, lê-se: “Penima lyiondyiala vetupu etyi valyia. Natyike… natyike. Aveho motyilongo vapwa okunkhya. Naumwe vali ukhaimo. Vahupamo vala vevali: owu nomukai wahe, ou nomukai wahe. Vatungila pamwe.” (Era um ano de fome e não tinham que comer. Nada… nada mesmo! Toda a gente daquela terra acabava por morrer. Não havia lá mais ninguém. Tinham escapado apenas dois: um homem e sua mulher e outro também com a sua mulher. Eram vizinhos).
Narra-se aí a história de dois casais e respectivas famílias que procuravam sobreviver em tempo de seca e fome, “omutenyia”. Os espíritos malignos, “óvĩlũlũ”, equipados com carros boers também aprovisionavamse no mesmo armazém em que os dois vizinhos tinham encontrado comida. O homem que conhecia o lugar não socorreu o vizinho inexperiente que, entretido com a abundância de alimentos, é capturado pelos espíritos malignos. Após a confirmação do que se passava com o outro, põe-se em fuga com os seus sacos de comida. Por isso, o vizinho é morto e transforma-se em membro do grupo dos espíritos malignos. O homem experiente regressou à casa e ocultou as razões do desaparecimento do seu companheiro. Revelou apenas que ele tinha decidido ficar por lá, porque preferia enriquecer, tendo supostamente pedido que o vizinho recolhesse e sustentasse a sua família. O grupo dos espíritos malignos, de que o vizinho morto fazia parte, organizou-se. E, como empregados domésticos, infiltrar-se-iam na casa do homem que passou a viver com as duas famílias. Tomam a decisão de vingar-se. Matam o homem, as mulheres e os filhos. E regressaram ao seu mundo.
Os juízos morais desta história têm um fundamento universalizável e é no repositório literário oral e escrito da cultura Nyaneka-humbi que encontranos a sua fonte, o rico património imaterial, documentado por provérbios, como veremos mais adiante.
De acordo com as provas fornecidas pela investigação arqueológica, sabe-se que a produção, distribuição, venda e o consumo de alimentos é uma prática antiga em África a que correspondem linguagens e pensamentos. A lexicostatística reforça as provas disso mesmo. Ora, como compreender que populações detentoras de conhecimento e técnicas agrícolas seculares continuem a ser vítimas de violência contra a sua dignidade, enquanto humanos, quando são afectadas por contingências climáticas ou previsíveis ciclos de escassez de alimentos?
Num mundo em que a fome não encontra justificação plausível, a compreensão do fenómeno no continente africano e das crises humanitárias subsequentes, parece traduzir-se simplesmente em ajuda alimentar e caridade das agências da Organização das Nações Unidas, nomeadamente, a Organização para Alimentação e Agriculura e Programa Mundial da Alimentação. Entretanto, nos chamados “países ricos” que representam os maiores doadores destas agências, levantam-se vozes sobre a pertinência da abordagem fundada naquilo a que alguns designam por ética da alimentação, ética da agricultura ou ética da globalização. O que se faz aí é tratar a alimentação, a comida como um problema moral de quem doa, os cidadãos, as comunidades e os Estados do chamado “Norte Global”. Por essa razão, admite-se a possibilidade de abordar o fenómeno à luz de uma investigação filosófica mais ampla, como a criação de um novo ramo, a Filosofia da Alimentação. Para o filósofo norte-americano David N. Kaplan, um dos poucos que se dedica à tematização do tópico, é necessário pensar numa filosofia que trate de questões que digam respeito aos alimentos, à comida e à nutrição, tendo em vista a sua institucionalização no espaço académico.
O conhecimento narrativo que se ergue sobre as experiências morais africanas recomenda que o modelo de uma Filosofia da Alimentação (Philosophy of Food), tal como é proposto, não deve ser adoptado cegamente. Afigura-se mais prudente explorar o conhecimento moral das comunidades que hoje são vítimas das inclemências climáticas e dos erros de governação política. Por isso, pode dizer-se que a leitura e interpretação da narrativa Nyaneka-humbi, trazida à conversa, permite concluir que vai fazendo falta a valorização de um “ethos” comunitário a que se associam pensamentos e práticas conformadoras de reiventados modos de vida, individuais e colectivos. Com a história narrada é possível identificar ideias sobre acontecimentos de mundos imaginários numa produção criativa contrafactual. Isto quer dizer que a referida narrativa anuncia cenários alternativos de ocorrências no futuro ou no passado, a partir da experiência do que já foi vivido. Por exemplo, a acção vingativa dos espíritos malignos, “óvĩlũlũ”, revela as virtualidades de um conhecimento sobre a natureza da fome, enquanto factor criminógeno de determinados comportamentos humanos.
Portanto, não é apenas o discurso demonstrativo das ciências exactas, naturais ou sociais que torna possível a produção de pensamentos contrafactuais. A ficção literária tem igualmente esse poder. Numa palavra, a literatura é conhecimento. Portanto, existem de igual modo pensamentos contrafactuais literários que merecem um lugar no campo de problemas dignos de reflexão filosófica e de estudos do futuro.
Enigmas sobre alimentação
No âmbito do seu projecto da Filosofia da Alimentação (Philosophy of Food), o filósofo norte-americano David N. Kaplan, interroga-se: O que é a alimentação, afinal? É algo que pode ser conceptualizado de treze maneiras diferentes? Ou existe apenas uma concepção? Numa resposta feliz, David Kaplan considera que o desafio da metafísica alimentar consiste em determinar a concepção de alimentação que deve ser aplicada a um determinado caso, podendo significar simplesmente que se podem dizer muitas coisas verdadeiras sobre a natureza dos alimentos. Dependendo da situação, algumas interpretações são mais adequadas do que outras. A conclusão parece razoável. Para ilustrá-lo submeto à apreciação dos leitores alguns provérbios da filosofia Nyaneka-humbi que suscitam o necessário exercício hermenêutico.
1) Atyikembwa eyulu, kutwi kalali na ndyiala.
O nariz pode ser enganado, mas a orelha não dorme com fome.
2) Eyimo lyiondyiala litupu ohambu.
O ventre com fome não conhece a alegria.
3) Etwelu lilala, ondyiala imana ovilongo.
Enquanto a poeira dorme, a fome percorre todas as terras.
4) Hunga yavo nopombila, ndyiala yavo nopokati kelovoko.
A sede deles subsiste até à época da chuva; a sua fome vai até à epoca da fartura.
5) Itwala ondyiala omuhilu, omumphoki ulyiuva monongadyio.
Quem anuncia a fome é o surdo, mas o cego tropeça apenas na cerca da casa.
6) Ohunga ikutwala kenyima, ondyiala ikutwala kondyiali yove.
A sede leva-te ao rio, a fome leva-te ao inimigo.
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. * Ensaísta e professor universitário