O gravador não gravou
“Alô, experiência, alô, experiência...” Essas e outras palavras são, geralmente, pronunciadas por profissionais da comunicação social, diante de gravadores de som, antes do início das actividades nas quais fazem cobertura jornalística.
Na verdade, quem assim não procede, corre, entre outros riscos, o de voltar à redacção sem uma parte importante da matéria informativa: a gravação do que foi dito, tim tim por tim tim, durante a cerimônia.
Não poucas vezes ouvimos jornalistas graúdos defenderem o uso de, apenas, esferográfica e papel para apontamentos ao longo da actividade, o que, na visão de muitos jovens, inclusive da que vos escreve, é insuficiente para informar com o rigor da veracidade, dependendo, sobretudo, do gênero de matéria que for tratado pelo profissional.
Aos guerreiros da arte de informar com verdade, ética, isenção e responsabilidade, que nunca cometeram uma “gafe laboral” se é que estes existem, endereço felicitações. Não são estes, entretanto, a fonte de inspiração para esse conjunto de palavras.
Ano 2004. A jovem jornalista deixa o local de trabalho, a meio de uma manhã solarenta, animada e ansiosa por estar a um passo de conseguir realizar a tão desejada entrevista a uma das figuras femininas mais emblemáticas do sector político angolano: a bela e afável deputada Ângela Bragança, que a recebe dois dias depois de ter aceite, por meio de um contacto telefónico, partilhar com o público a sua trajectória de vida por meio das páginas do Jornal de Angola.
Depois da habitual saudação, a deputada convida a jovem entrevistadora a sentar-se, enquanto faz o mesmo, e anuncia estar pronta para responder às questões que lhe forem dirigidas.
A jornalista aponta nome, idade, naturalidade, estado civil, número de filhos, comida e bebida predilectas, entre outras questões pessoais, e liga, sem testar, o gravador, para passar às perguntas mais profundas.
Durante cerca de hora e meia, falam animadamente, da infância da deputada, do início da militância no MPLA, da formação académica, do marido e dos filhos, dos pais, de sonhos, do trabalho parlamentar e etecetera.
Considerada “muito boa”, pela entrevistada, a entrevista chega ao fim. A repórter agradece a simpatia e a maneira aberta como a deputada falou de si e, antes de guardar o gravador percebe que a cassete do mesmo está “parada”.
Grita, estupefacta e desesperada, que o gravador NÃO GRAVOU a conversa, enquanto recua a cassete, na esperança de ter gravado, ao menos, parte da entrevista. NADA! Maldição! “Como pude ser tão distraída?”, “Será que as pilhas estão gastas?”, questiona-se, em silêncio. A deputada assiste ao seu desespero, com olhar maternal. A jovem pede desculpas e diz não saber o que fazer. Tem apenas três dias para entregar o texto ao editor, a quem já anunciou a realização da entrevista, naquela manhã.
É nesse momento que a parlamentar, já atrasada para outro compromisso, tranquiliza a jovem, disponibilizando-se para, no dia seguinte, repetir a conversa.
“Vamos, eu dou-te boleia até ao jornal”, oferece Ângela Bragança. O seu gesto é um verdadeiro bálsamo na alma ferida da inexperiente jornalista. Pelo caminho, a deputada conversa com a jovem, acalmando-a e prometendo total disponibilidade para voltar a darlhe a entrevista.
Já em frente ao edifício da Edições Novembro, proprietária do Jornal de Angola, a jovem agradece, volta a pedir desculpas à deputada e sobe para a redacção. Conta o sucedido ao Editor do Caderno Fim-de-semana, que se mantém inalterado, como sempre. Poucos são os colegas que já viram António Cruz abalado por alguma coisa. Para ele, “tudo tem solução”. A repórter senta-se diante do computador e aproveita, enquanto a memória está “fresca”, passar para a máquina tudo o que se lembra da conversa que teve com a parlamentar. Se, por algum motivo, não for possível entrevistá-la, novamente, no dia seguinte, sem texto também não ficaria. Pensou. Mas Ângela Bragança revelou-se mulher de palavra, sensível e humana, entre todas as outras qualidades. É essa a imagem que guardamos da deputada, que marcou, para sempre e pela positiva, a jornalista, tendo-a recebido no dia seguinte, tal como o prometido, e conversado com a mesma por mais de uma hora, acrescentado detalhes da sua vida, omitidos no dia anterior. A sua estória de vida está na colecção das assinadas e publicadas no Jornal de Angola, pela jovem autora daquela grande gafe, à qual a deputada, a quem hoje agradecemos pela atitude humana que teve, não deu a mínima importância. Angola precisa de mais figuras semelhantes. Bem haja, Ângela Bragança!