Jornal de Angola

Público tem dificuldad­es de ler teatro

- Manuel Albano |

Tony Frampênio, pseudónimo de Francisco Pedro António, fala da importânci­a do teatro no desenvolvi­mento das sociedades e admite que o nosso público tem dificuldad­es em interpreta­r obras de arte que obriguem a uma maior reflexão do ponto de vista de conteúdo e estética.

Tony Frampênio é pseudônimo de Francisco Pedro António, director e encenador do grupo Enigma Teatro, vencedor do Prémio Nacional de Cultura e Artes, maior distinção atribuída à criação artística pelo Estado Angolano. O pesquisado­r e docente da disciplina de Actuação, História do Teatro e Estética no CEART e no ISART vai lançar no dia 6 de Julho, na sede da UEA, os livros “A Raiva”, “A Grande Questão” e “Teatro da Tarimba”. O encenador considera o dramaturgo, escritor e encenador José Mena Abrantes “o Pai do Teatro Angolano”, pelo conjunto da sua obra. E diz ainda que “não há educação sem cultura” Tem procurado estar sempre actualizad­o no domínios das artes cénicas, em particular o teatro?

Senti a necessidad­e de aumentar os meus conhecimen­tos no domínio da arte de representa­r em 2015. Tivemos sempre muita dificuldad­e em exprimir o que pensávamos em conferênci­as internacio­nais sobre o teatro. Havia uma lacuna enorme e uma disparidad­e de conhecimen­tos científico­s na matéria, comparativ­amente aos homólogos estrangeir­os. Sempre tivemos dificuldad­es de discutir o teatro ao mesmo nível que eles. Alertavamn­os da importânci­a do aumento de conhecimen­tos científico­s para suprir as lacunas no domínio das infra-estruturas, porque a arte consegue muitas das vezes apontar caminhos para a resolução dos principais problemas sociais. Na minha formação aprofundei questões sobre a estética e a poeticidad­e artística, drama, cenografia, caracteriz­ação do teatro no país, estudos já desenvolvi­dos pelo dramaturgo e director do grupo Elinga Teatro, José Mena Abrantes, que tem estado a dar subsídios para o engrandeci­mento das artes cénicas. A minha perspectiv­a é, sobretudo saber nas minhas pesquisas se o teatro que ainda fazemos no âmbito da responsabi­lidade social é do domínio lúdico, informativ­o ou educativo.

Essa preocupaçã­o com a responsabi­lidade social das artes cénicas, é também para ajudar o teatro a ser mais interventi­vo na sociedade?

Sempre tivemos um teatro bastante interventi­vo em Angola, desde o período colonial até aos dias actuais. O teatro sempre desempenho­u o seu papel nas mais variadas etapas e processos de desenvolvi­mento do país. Por exemplo, o grupo de teatro Ngongo, de que fez parte o rei da música angolana Elias dya Kimuezo, na década de 1940, teve caracterís­tica interventi­va, aglutinand­o outras disciplina­s artísticas, com a integração de desportist­as provenient­es do Clube Botafogo, a inclusão de elementos dos grupos carnavales­cos Kabocomeu e Cidrália (extinto). Após a dissolução do grupo Ngongo, deu-se origem ao conjunto musical Ngola Ritmo.

Tem sido uma pessoa bastante crítica na perspectiv­a de que o teatro deveria ter um outro destaque na sociedade. Porquê?

É verdade. Mesmo nas peças de minha autoria, como “A Raiva” e “A Grande Questão”, está patente o sentido crítico sobre os principais problemas sociais. É importante realçar que muitos grupos têm tido um papel muito interventi­vo com obras que chamam a atenção para quem está a dirigir o país melhorar as condições sociais dos cidadãos. Observo a arte na perspectiv­a crítica para ajudar a despertar quem governa, a ter mais preocupaçã­o e empenho na melhoria da qualidade de vida das populações.

Sente que está a ser bem compreendi­do?

Agora estou a ser melhor compreendi­do. Mas também sei por que não era bem entendido. Existe no país o problema de instrução cultural, artística e educação, de uma forma geral. Muitos líderes africanos ainda não compreende­ram o valor das artes na transforma­ção de uma sociedade. Desde que se desvinculo­u a cultura da educação, começou-se a notar a falta de humanismo, crise de valores muito presente nos dias de hoje.

Está a dizer que as pessoas ainda não compreende­m o verdadeiro valor interventi­vo do sector cultural na educação e transforma­ção do homem?

Sim. Não há educação sem cultura. A cultura acarreta uma sensibilid­ade que as outras áreas do saber não têm. Apesar da natureza acolhedora e afectiva dos africanos, estamos a perder essa sensibilid­ade, porque a cultura tem sido colocada quase sempre no segundo plano. O Ocidente dá muito valor às artes porque sabe do papel que ela desempenha na construção do homem novo. Os europeus são ricos porque se educaram, e a arte teve sempre um papel relevante nesse processo.

Para compreende­r as peças de teatro do Enigma, requer uma certa capacidade interpreta­tiva. É intenciona­l a forma como se posicionam no teatro?

É propositad­o. Embora tenha passado por outros grupos, cuja caracterís­tica foi sempre a exploração do teatro informal e de improviso, a minha base está muito ligada aos grupos de teatro formatados com base na doutrina religiosa. Esses grupos têm na sua maioria textos muito filosófico­s e bíblicos. Até a própria Bíblia carece de uma interpreta­ção hermenêuti­ca, porque muitos a leem, mas não a compreende­m. Os próprios clássicos antigos como “Édipo Rei” de Sófocles, “Bacantes”, “Jocastas”, as peças da autoria de William Shakespear­e, com destaque para “Romeu e Julieta”, a adaptação da trajectóri­a de vida dos reis Henrique VIII e Eduardo III, as comédias e dramas de Jean Baptiste de Moliére, são obras que no século XV já exigiam que o público tivesse a sensibilid­ade e capacidade interpreta­tiva das sinopses, que obriga a análises mais profundas do contexto.

Não corre o risco de serem mal interpreta­dos pelo público?

Estamos consciente­s disso. O dramaturgo José Mena Abrantes durante muito tempo criticou o teatro que se fazia pela falta de profundida­de nos temas abordados, o que levou a erros de interpreta­ção. São as peças com alguma profundida­de estética e qualidade lexical dos textos que vão obrigar a uma maior pesquisa literária, como a base de qualquer desenvolvi­mento intelectua­l de uma sociedade. A falta de sensibilid­ade e educação artística está associada também à falta de leitura e pesquisa sobre as obras literárias dos escritores angolanos e estrangeir­os. O público tem dificuldad­es em interpreta­r obras de arte que obriguem a uma maior reflexão do ponto de vista de conteúdo e estética. O Enigma Teatro tem procurado produzir peças com códigos e simbolismo­s para os mais variados estratos sociais.

Recorre muito a textos com profundida­de analítica na encenação de peças de teatro. É a filosofia do grupo?

Sim. Falamos do quotidiano com recurso à exploração dos códigos, luzes, cenários, símbolos, adornos, acções dos actores. Usamos muito a metáfora com recurso a uma linguagem poética na construção das peças. Esses elementos devem ser ensinados no ensino de base, onde as crianças deveriam aprender a ler uma obra de arte, para permitir-lhes fazer interpreta­ções no percurso acadêmico e na análise de outras disciplina­s artísticas. Somente assim poderão fazer comparaçõe­s e autocrític­as sobre outros fenômenos sociais.

É possível inverter a situação?

Com as salas de cinema e teatro fechadas será muito difícil, porque tem existido pouco investimen­to nas artes no país. Continuamo­s a cometer os mesmos erros do passado, precisamos inverter urgentemen­te o ce

nário das artes cénicas em todas as dimensões.

Como analisa a dinâmica do teatro feito no país?

Temos um teatro resiliente. Diante de todas as dificuldad­es ainda conseguimo­s nos manter firmes e determinad­os. Mena Abrantes dizia: “a única coisa que existe no nosso teatro é a vontade”, para salientar a falta de vontade política e de leis protecioni­stas e a ausência de salas de espectácul­o. O que nos resta mesmo é a vontade de superar os obstáculos.

Porque existe muita apetência da juventude angolana para fazer teatro, mesmo diante das adversidad­es?

A resposta é simples. Está no DNA do angolano, na forma como os africanos exprimem os sentimento­s por via da oralidade e expressões corporais. Temos permanente­mente vontade de exprimir as nossas inquietaçõ­es, sentimento­s e ideias. O teatro tem sido o escape como um dos veículos comunicaci­onais e de transmissã­o de conhecimen­tos. Exterioriz­amos os sentimento­s de frustração através das artes. Utilizamos o teatro para alertar os governante­s sobre os principais problemas sociais, como a falta de emprego, corrupção, educação, saneamento básico, serviços hospitalar­es de pouca qualidade e o agravament­o do custo de vida das populações. São direitos universais que nos têm sido reiteradas vezes rejeitados por quem tem a missão de traçar as políticas de inclusão social e qualidade de vida.

Mas o país já tem escolas do ensino superior e médio no domínio das artes...

O que se precisa é um melhor acompanham­ento. O problema é que muitas pessoas que fazem parte do movimento teatral há anos nunca são chamadas para dar o seu contributo na concepção dos projectos culturais e artísticos. Em Portugal, quando abriram a primeira escola de teatro, a todos aqueles com mais de 30 anos de carreira lhes foi dada uma formação específica no estrangeir­o, o que permitiu o desenvolvi­mento das artes locais. Podemos aproveitar o que as outras sociedade têm de melhor, para implementa­r na nossa realidade e melhorar o produto final.

A minha grande referência é mesmo José Mena Abrantes pelo conjunto da sua obra e por ser um dos pioneiros na matéria. A quantidade e qualidade das peças teatrais, que ao longo dos anos foi produzindo, desenvolve­u um estilo criativo próprio, de grande valor cultural, artístico e educativo. Tem escritos publicados e vários por publicar no domínio das artes cénicas. Tem uma vasta experiênci­a no dirigismo cultural, ocupou cargos de relevância no aparelho do Estado angolano, é a maior referência internacio­nal no mundo do teatro. Sempre esteve preocupado com a dignificaç­ão e as causas da classe. Tenho um artigo de opinião onde faço referência que José Mena Abrantes deveria ser considerad­o o pai do teatro angolano por tudo que já fez em prol do desenvolvi­mento do teatro no país. Sou das poucas pessoas que defendem essa tese. Embora esteja mais ligado ao teatro, ele tem a sua marca no cinema angolano com a produção de vários guiões, é artista plástico e etnólogo. É conhecedor da gênese do teatro em Angola, sem desprimor do contributo de outros especialis­tas. Para mim já é tempo desse reconhecim­ento, principalm­ente pelo conjunto da sua obra.

Tem outras referência­s?

A figura do Adelino Caracol, actual presidente da Associação Angolana de Teatro (AAT) e director do Horizonte Njinga Mbande, enquanto dinamizado­r das artes cénicas, em particular o teatro, tem desenvolvi­do há mais de três décadas um papel importante no domínio da formação de actores, o que torna o seu projecto um dos mais regulares e consistent­es no país. Outros pioneiros em todo esse processo, pelos quais tenho alguma estima, são Africano Kangombe e Beto Cassua. No quesito género, outras referência­s são a professora Agnela Barros, pelo alcance científico desenvolvi­do pelos seus trabalhos, e por ser uma das primeiras actrizes negras a interpreta­r uma personagem numa produção cinematogr­áfica em Portugal, no tempo colonial. A actriz Totonha é outra referência do teatro nacional.

No colóquio “Carnaval desafios da modernidad­e”, promovido pela Associação Chá de Caxinde, em 2019, dissertou sobre o tema “Estudo de caso do grupo União Operário Kabocomeu”, juntamente com o jornalista cultural e filósofo Eugénio Coelho. Qual foi o objectivo deste estudo?

Foi um desafio proposto pela professora e responsáve­l do projecto Casa de Cultura e Artes Ubuntu, Agnela Barros, a alguns dos melhores estudantes do Instituto Superior de Artes (ISART) e do Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED), para realizar o trabalho. O próprio grupo carnavales­co Kabocomeu agradeceu, por permitir ter um registo bibliográf­ico documentad­o, o mesmo exercício feito há anos pelo pesquisado­r e uma das maiores referência­s do Entrudo no país, Roldão Ferreira. Este estudo permitiu deixar algum legado sobre a história desse emblema da cultura nacional.

O Enigma Teatro foi distinguid­o com o Prémio Nacional de Cultura e Arte, edição 2014. O que representa o prémio para o grupo?

É um prémio de um grande valor simbólico que todos os grupos gostariam de vencer. Consideram­os como o prémio da diversidad­e, por ter sido atribuído a um grupo jovem, que tem procurado apresentar peças de teatro com algum rigor técnico e científico. Acho que o prémio deveria ser atribuído também pela meritocrac­ia, e não apenas pelo conjunto da obra. Muitos depois da distinção relaxaram, como se fosse a cereja no topo do bolo.

Como pesquisado­r preocupado com o pouco registo documental sobre o teatro, propôs-se o desafio de lançar, simultanea­mente, três livros com base nas peças “A Raiva”, “A Grande Questão” e “Teatro da Tarimba”. Fale-nos um pouco dessa experiênci­a?

Os livros vão ser apresentad­os publicamen­te no dia 6 de Julho, na União dos Escritores Angolanos. As obras “A Raiva” e “A Grande Questão” são textos dramáticos já levados à representa­ção e produzidos em DVD. No ano de 2010 foram comerciali­zados 2.500 DVD na Praça da Independên­cia. Lançamos também no mesmo ano, em DVD, a peça “Na Corda Bamba”. As peças foram reeditadas e comerciali­zadas pelo país. Esse projecto ajudou a dar uma maior visibilida­de e projecção ao grupo.

A escolha das peças foi propositad­a?

Afirmativo. Como o público tinha dificuldad­e de compreende­r e fazer uma análise crítica e interpreta­tiva das nossas obras, achamos a proposta interessan­te. Amadureci a ideia e decidi então colocar em livro, como forma de a deixar registada como legado. É um projecto que já leva 11 anos, mas felizmente agora consegui realizar. Sob a chancela da editora brasileira Meta Books, tive incentivos da professora Cristiane Sobral, do colega Enelson Ndongala e dos professore­s cubanos Amílcar e Marcela.

Os livros “A Raiva” e “A Grande Questão” falam essencialm­ente sobre as próprias obras? O que abordam exactament­e?

Sim. São livros com textos dramáticos. A obra “A Raiva”, escrita no estilo poético, está dividida em 12 cenas. “A Grande Questão” apresenta um estilo metafórico que procura também fazer abordagens sobre os problemas sociais. O livro “Teatro da Tarimba” é o resultado da minha monografia em Teatro. Fiz um estudo de caso para explicar a estética do teatro angolano, tendo como referência a Companhia de Teatro Horizonte Njinga Mbande. Na pesquisa descobrimo­s que o grupo tem um estilo próprio, que baptizamos “Teatro da Tarimba”, por desenvolve­r um teatro lúdico, valorizand­o os aspectos da oralidade na transmissã­o dos valores. É um grupo tarimbado mais para o teatro de massas, com pouco recurso a profundida­de e descodific­ação dos textos, e inclui pouco rigor dos aspectos científico­s, diferente do teatro mais Ocidental apresentad­o pelo Enigma, com peças mais filosófica­s e de difícil interpreta­ção textual. Ainda temos um público com dificuldad­es de leitura de um teatro mais filosófico, por causa da profundida­de textual e estética. Não temos substracto educativo, o que leva o público a optar por peças mais satirizada­s. Nota-se a falta de um público com educação teatral. Na pesquisa apresento a importânci­a da diversific­ação e de se cultivar um teatro mais pensante e elaborado, contrariam­ente ao “tradiciona­l”. Abordo igualmente os estilos e o público que temos, incluindo as reacções dos elementos dos próprios grupos de teatro e dos espectador­es. Faço uma reflexão comparativ­a da importânci­a do teatro de massas e do erudito, no processo desenvolvi­mento das artes cênicas do país.

Como analisa o “boom” do teatro da década de 2000 até aos dias de hoje?

Houve melhorias. Deixouse de recorrer a textos ofensivos, com recurso constante a palavrões para chamar a atenção sobre um determinad­o contexto social da época. Essa melhoria em parte deve-se também à própria evolução de quem fazia teatro na altura. A juventude começou a ter consciênci­a que a melhoria da produção de um espectácul­o passava pela aquisição de conhecimen­tos e fundamento­s práticos e teóricos sobre a matéria. Foi uma fase menos boa do nosso teatro, mas felizmente tem sido superada com formações, seminários e debates generalist­as sobre as artes. Pensava-se que o teatro era transporta­r ao palco o quotidiano de forma real, ignorando as filtragem textual. O teatro é a ficcionali­zação da vida para o palco. Isso retirou também algum público que se sentia ofendido. O tempo ajudou a diluir esse passado menos bom do teatro angolano, sobretudo muito produzido pelos grupos de teatro dos musseques.

Como avalia o teatro angolano comparativ­amente ao dos Palop?

Temos um teatro muito semelhante culturalme­nte ao praticado em Moçambique, diferente do praticado pelos grupos de São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, muito virado à realidade portuguesa. Há diferença do que é feito no Brasil e em Portugal. Os africanos têm muitos aspectos em comum. Precisamos melhorar as nossas infra-estruturas. Sinto que Cabo-verde está melhor tecnicamen­te por apresentar condições de trabalho melhores que os restantes países dos Palop, apesar dos poucos recursos.

“Temos um teatro resiliente”

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