Jornal de Angola

Fotografia da efémera ausência

- Pedro Kamorroto

Parece que existe uma gaveta mental intacta, só para guardar os brinquedos esquecidos. Quando preciso vou lá ter, pelo menos serve-me de consolo. Vejo o saco dos (teus) brinquedos refastelad­os num (re)canto da casa e, sei que são vidas animadas, porque deste-lhes vidas, com as tuas divertidas brincadeir­as.

Olho para tevê, vejo que é o mesmo canal-mania de sempre, mesmo sabendo que há sensivelme­nte, coisa de duas semanas, foste visitar os avós, naquela Vila, onde não há cheiro perfumado de nenhuma flor.

Porquê é que os homens-cães ou cães-homens dão nome às coisas, sem entenderem a função da linguagem?

É impressão ou desatenção minha, os gostos estão por aí a substituir o significad­o, o simbolismo, a função poética ou apelativa das coisas?! Enquanto estás do outro lado, deixome entrever, a gaveta mental está entre aberta e sempre que posso, feito louco, troco várias unhas de conversa com os teus brinquedos, desta forma acredito, embora de forma ilusória, que estou a dar-lhes a mesma vida e atenção, que só tu sabes dar.

Repito: olho para tevê, vejo que é o mesmo canal-mania de sempre. Há dois impulsos interiores que disputam entre si - um me diz - deixa estar assim. Outro me diz - aperta no controle remoto e troca já de canal. Deixo-me levar pela ordem de comando do primeiro. Prefiro ser um saco de pancada daquele a aceitar as ordens do segundo impulso.

Deste modo, acredito piamente ou cegamente que não te ausentaste. Há psicologia­s que não se explicam. A explicação está no viver.

“O faz parte da vida” faz mais sentido quando se vive. Não há psicologia que ensina o apego ou desapego... não há psicologia que ensina um adulto, um pai a lidar com a ausência de um filho. Que um dia eles voarão tão alto à procura da ninhada que lhes cabe, seja por via dos erros, por via dos acertos, ou por via de vãs tentativas.

Chegará um dia que eles libertarse-ão das amarras, que são a casa dos pais. Mas os pais impreparad­os estão sempre. São galinhas com cristas e esporas protectora­s.

Os pais geram os filhos, naturalmen­te eles crescem, e vão embora para as suas vidas.

À procura duma vida que também lhes cabe. Será que é cíclico isso? Apega-te a eles, enquanto podes. Depois eles quererão conhecer o éden da liberdade, a árvore do conhecimen­to, e uma vez conhecido, ficarão autênticos viciados.

Não quererão saber se existe algum fruto proibido, na mesma árvore onde emana a referida liberdade. A liberdade é por vezes um saboroso pote de mel...

Constrói-se palacetes, casas com tantos quartos, dá-se tanto sangue, suor e lágrimas, perde-se uma vida, os pais deixam de viver para o conforto dos seus filhos, mas bem lá no final, ao fim e ao resto, as casas tornamse grande demais para os pais, acabam sós, a definhar ausências, porque os filhos por imperativo ou dialéctica da vida, seguem outros rumos. As barbas dos pais já não servem para se pendurarem.

Essas pequenas ausências em que os filhos passam férias ou vão visitar os avós, são os prenúncios, servem de antecâmara de como será num futuro ainda longínquo. Custa um pai aceitar(?). Aliás, não conheço nenhum que aceita isso de ânimo desnutrido. Mas ainda assim, custe o que custar, doa o que doer, deve-se deixar eles seguirem, escalarem os picos das montanhas. Será dialéctica da vida? É o lugar-comum “faz parte da vida” a imperar, né?!

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