Jornal de Angola

Zeca Povinho, uma figura ínclita

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Existem homens e mulheres que enquanto vivas conseguem cativar a admiração dos seus semelhante­s. Homens e mulheres por quem se sente apreço e curiosidad­e. São pessoas de quem se gosta, que chegamos a amar mesmo. Pessoas que ao longo dostempos,colocaramo­seuengenho,talento e arte ao serviço dos amigos, dos fãs, da comunidade. Outras destacam-se pelo patriotism­o, pela defesa de valores que nos elevam ou por actos de heroísmo. É gente cujo comportame­nto se destaca, naturalmen­te, da maioria. Nenhuma dessas figuras é igual à outra, nem os seus feitos se podem comparar porque nunca foram iguais. São geralmente referencia­das quando “da lei da morte se vão libertando”. Infelizmen­te, apenas nessa condição. E nem todas conseguem referência­s nos jornais nem o título de “nacionalis­ta”, reservado apenas aos que, na opinião dos que decidem, merecem a honraria.

Nacionalis­mos à parte, não resisti em abordar este tema que sugere uma despedida, quando soube que se tinha libertado desta vida, o cidadão António José Ferrão, que durante anos fez o favor de ser meu amigo, e que por esse nome, muito poucos o conheciam. Era ignorada a sua graça porque em Luanda e seus arredores, e até noutros continente­s, o cavalheiro em causa usava cognome, era conhecido com o título de “Zeca Povinho”. Nunca soube porquê, também nunca lhe perguntei. Nos seus tempos de jovem tinha semelhança­s físicas, era mesmo muito parecido com o famoso guarda-redes costa-riquenho Keilor Navas, que foi do Real Madrid e defende hoje as balizas do PSG. Pertenceu aos grupos de jovens dos anos dourados da nossa mocidade, aquele tempo em que se enfrentava a polícia colonial no Bairro Operário, no Marçal, no Rangel e em todo o subúrbio luandense, e havia coragem de lhes dizer cara a cara “eu da polícia só tenho medo dos cães”. A essa ousadia juntava-se o acto de proporcion­ar alegria aos compatriot­as, ajudando a elevar o espírito nacionalis­ta através da nossa música que crescia e se impunha, e da folgança que dava coragem e chateava o colono. Era arte que não tinha nada a ver com a genética da cidadania, era oriunda da sensibilid­ade do indivíduo, do ouvido do cidadão que ganhava consciênci­a das carências do povo, um rol enorme onde cabia naturalmen­te a liberdade que englobava o gosto e a vontade de ouvir e, naturalmen­te, de dançar, para extravasar sentimento­s. Para pensar o futuro, com alma e coração mais alegres, mais confiantes.

Lembro-me do dia em que festejei os meus vinte e cinco anos, tinha eu iniciado a minha carreira na Companhia de Seguros Angolana. Não sendo íntimos, já nos conhecíamo­s bem. A ponto de aceitar abrilhanta­r a minha festa. Uma grande farra para celebrar o meu primeiro quarto de século de vida, sem pagamento de qualquer cachet. Foi no terraço de uma vivenda há pouco estreada no Cazenga, desenhava-se então naquele sítio a estrutura de um bairro moderno, de casas modestas mas com interessan­te alinhament­o. O progresso de Angola era ali visto e sentido. A integração nativa era arma em que os tugas apostavam forte, com o futebol a destacar-se nos jogos corporativ­os e a música, onde a nossa que já tinha qualidade e a importada do Caribe, tinham papel fundamenta­l na elevação da nossa consciênci­a patriótica. Recordo que, entre muitos, não faltaram à minha festa a Ilda Oliveira e o Miguel Pereira, o “Incabável” Morgado Kimangango, o Tó da dona Lulú, a minha prima Elisa, o meu compadre Churchill e o Bolinhas, o branco de pernas curtas, simpático dançarino e tipo porreiro como poucos. Entre os muitos e com ausência de “patos”, estiveram o Guilherme Mendes e o seu amor de sempre, a Maria Mourão, então menina e moça.

Estava-se na moda das calças à “boca-de-sino”, todos as usavam mas eu quebrava a regra, não gostava. Sempre as achei ridículas, assim como as botas à “Beatles” e os suspensóri­os elásticos, não dizendo o mesmo das camisas “TV” e aquelas outras às “mil flores”. Já não consigo recordar como consegui comida e bebida para os meus convidados, lembro apenas que a malta daquele tempo, era muito solidária, contribuía, e que havia meio barril de keipe, aquela mistura de frutas e bebidas fortes, que assanhavam a malta lá pela madrugada. Lembro ainda a presença do Pereira e do Lua, operários do mesmo “ofício”, ou seja, “discoteque­iros” como Zeca Povinho, a darem-lhe apoio técnico.

O foco desta crónica é a amizade e o respeito entre as pessoas, sentimento­s que vão rareando, e também o amor que sentimos pela música. Durante anos tentei homenageá-lo na Chá de Caxinde, associação que eu dirigia e da qual ele e a esposa eram membros. Com uma funjada de sábado, do género das que reverencia­mos muitas figuras que mereceram e constavam na nossa relação dos ínclitos da sociedade luandense. Fugiu sempre, esquivou, não aceitou, por essa altura a pesca era o seu hobby preferido e nele se refugiava. Mas ainda tive o privilégio de visitar o seu pequeno museu de música que tinha em casa, num espaço de uns trinta metros quadrados, onde tinha arrumados os mais variados discos, dos de 78 rpm, aos modernos Lps, passando pelos de 45 rpm e aos modernos CDS. Uma relíquia. As suas preferênci­as musicais abrangiam vasta área e tocava muitas origens. Iam da clássica à rumba congolesa, passando pela bossa nova e pelo samba-canção brasileiro­s, até chegar ao tango argentino. Ultimament­e, encontráva­mo-nos várias vezes em Lisboa, onde os males da idade nos juntavam no mesmo bairro, clamando por cuidados de saúde. Enquanto neste momento doloroso envio um forte e solidário abraço à Teresa, a sua viúva, e a todos os seus filhos, espero que à hora que este texto for dado à estampa, tenha sido atendido o último pedido do “Zeca Povinho”. Que tenha sido tocada e ouvida no decorrer dos seus funerais, a música que ele antecipada­mente gravou.

Com o coração destroçado, despeçome dos meus leitores, desejando que os dias futuros, sejam melhores que os que estamos a viver. Minha gente, até domingo, à hora do matabicho.

Lisboa, 3 de Julho de 2021

Pertenceu aos grupos de jovens dos anos dourados da nossa mocidade, aquele tempo em que se enfrentava a polícia colonial no Bairro Operário, no Marçal, no Rangel e em todo o subúrbio luandense, e havia coragem de lhes dizer cara a cara “eu da Polícia só tenho medo dos cães”

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