Caçadores de bruxas
Desde que o Mundo é Mundo que o Homem procura explicação para os fenómenos que ocorrem. A curiosidade do ser humano nasceu com ele mesmo. A admiração pelo que o cerca e as interrogações consequentes começaram assim que emergiu para a luz do dia, para um lugar de constantes e permanentes descobertas, de enigmas e quebra-cabeças. E muitos destes mistérios permanecerão “encriptados” por muito tempo, a desafiar gerações de pensantes, até serem completamente desvendados - se forem, claro!
O Homem faz recurso à Ciência para atender às suas próprias necessidades, para explicar situações que fogem à compreensão geral, que escapam ao raciocínio coerente, que desafiam a lógica. Acredita que existe uma razão para a ocorrência de eventos, desde os de difícil explicação aos mais corriqueiros. A acção do ser humano operou transformações ao meio, propiciou avanços à sua própria existência, levou à exploração do Planeta, à viagem espacial, à descoberta de tratamentos inovadores para males antes perdidos na ignorância. Desde que se conhece como Homo Sapiens - há mais de 300 mil anos - que a vida na terra não é a mesma.
Ante o conjunto de descobertas que se atribui ao génio do Homem, chega a ser incompreensível o “vazio explicativo” para determinadas ocorrências, que se dão em alguns lugares deste vasto Mundo. Quando a Ciência se “ausenta” por longos períodos - muito provavelmente, à busca de respostas - o senso comum, a opinião, entra em cena. A negação da Ciência é, em muitos contextos, uma realidade indesmentível. A prová-lo temos, hoje, a Covid-19, que muitos dão como ficção, ou a rejeição à toma da vacina contra a doença, sob as mais distintas e caricatas justificações.
Portanto, quando falta a Ciência na explicação de fenómenos não é o caso da Covid-19 - o empirismo assanha-se, a experiência quotidiana atreve-se e ganha espaço, trazendo uma miríade de possibilidades para o que terá ocorrido. É um quadro que se conhece de muitas realidades pelo mundo, sobretudo de países onde o subdesenvolvimento e os males que lhe são circundantes marcam o dia-a-dia. Nestes tempos, o “feitiço” é, por exemplo, uma das explicações mais comuns para os eventos que escapam à nossa compreensão.
Hoje, é “feitiço” para quase tudo o que fica por explicar; para o que nos acontece de errado ou para o que a nossa capacidade intelectual é incapaz de dar resposta. Alguém se esqueceu de fechar a botija de gás e as bocas do fogão. Deu-se uma explosão. O culpado pelo incidente mal se lembra da negligência e logo se queixa dos “males” que o têm perseguido nos últimos dias. Comeu em excesso, dormiu desconfortavelmente, tendo o que queria que fossem horas de descanso sido interrompidas por desarranjos intestinais. Conclusão: há alguém que lhe anda a fazer mal.
Numa noite mal passada, ensombrada por pesadelos, a figura dos maus sonhos é o “feiticeiro”, como se alguém tivesse responsabilidades no acaso de povoar sonhos alheios. Até gatos a miar sobre o tecto são enviados de bruxos. Soa até a caricatura. Parecem trechos de roteiros para a ficção, um qualquer drama de baixa qualidade. Mas são situações que conformam factos reais. Até inocentes crianças são arroladas para este jogo desumano, perverso, que se dá quando o bom senso se recolhe, ou se revela incapaz de desempenhar a função de regulador de emoções, e o ser se recusa a pensar.
Há duas semanas, mais ou menos, circulou, nas Redes Sociais, um vídeo no qual surge uma senhora nua, em circunstâncias que, realmente, desafiam a compreensão de seres comuns que todos somos. Ela terá sido surpreendida no interior de um edifício da Centralidade do Kilamba, em Luanda, dizem, a “praticar feitiçaria”. As imagens mostram também um grupo de pessoas a tentar “exorcizá-la”; a tirar o “demónio” que habita dentro da “bunguleira”, a “desviar o mal” para outro destino ou a “desactivá-lo” - sabe-se lá -, num ritual que inclui orações.
Não se encontrou, no grupo de “exorcistas”, alguém que, ao menos, pensou tratar-se de um caso de saúde mental, de demência; que a suposta “feiticeira” precisa de ajuda psiquiátrica ou apoio psicológico; que estava alucinada, sob influência ou dependência de drogas. Há um conjunto de situações que a infeliz - será que não somos todos? - podia estar a enfrentar, o que fazia solicitar, desde já, a intervenção da Polícia. Mas não! Como tem acontecido em incidentes parecidos, fica mais fácil atribuir a situação ao sobrenatural, ao oculto, no caso, ao bruxedo.
É verdade que já todos nos confrontámos com ocorrências inusitadas, anormais como poucas, que não apenas nos roubam o discernimento, como quase nos levam à loucura, por não conseguirmos descortinar como iguais aberrações seriam possíveis. Somos povos fundados em fortes tradições culturais, férteis na produção e na crença em fenómenos estranhos, assustadores, inexplicáveis no contexto da Ciência. Porém, daí a se ajustarem no âmbito do “feitiço” vai uma grande diferença.
Somos um país pouco alfabetizado e menos ainda letrado. O nosso grau de ignorância é elevado, assim como gritante é a falta de esclarecimento. Nem precisamos do contributo das estatísticas, do recurso a um inquérito ou levantamento para no-lo comprovarem. Se a este quadro juntarmos os problemas sociais, as dificuldades que a maioria de nós enfrenta, as frustrações de que às vezes somos acometidos, fica fácil encontrar explicação alternativa para contingências que fogem à nossa compreensão. Se a Ciência não se presta - ou se dela não fazemos caso -, as nossas desconfianças consumam-se com a descoberta do “feiticeiro”, a razão para que “as coisas nos corram mal”.
Um idoso, de 75 anos, foi espancado até à morte, na semana passada, na aldeia de Ayendja, no Longonjo, Huambo. Fizeram-no dois sobrinhos, que o acusam de “práticas de feitiçaria”, que têm causado “várias doenças, azares e falecimentos no seio familiar”. É isso aceitável? Serão pessoas mentalmente sãs as que vitimaram o mais velho? Nem os gatos, para muitos, a suprema amostra do feitiço, ou a emanação de todos os males, merecem igual tratamento e destino!
É urgente dar a volta à ignorância, apostar na consciência e na força do intelecto, antes que nos transformemos todos em caçadores de bruxas. É também preciso que não culpemos outros pelos nossos fracassos, nossas desventuras. Quem faz desta crença a forma de viver que mergulhe o corpo em banhos de ervas, se unte com poções antifeitiço e deixe de despejar as suas frustrações sobre vítimas inocentes; sobre pessoas alheias aos problemas que enfrenta.