Jornal de Angola

Caçadores de bruxas

- Caetano Júnior

Desde que o Mundo é Mundo que o Homem procura explicação para os fenómenos que ocorrem. A curiosidad­e do ser humano nasceu com ele mesmo. A admiração pelo que o cerca e as interrogaç­ões consequent­es começaram assim que emergiu para a luz do dia, para um lugar de constantes e permanente­s descoberta­s, de enigmas e quebra-cabeças. E muitos destes mistérios permanecer­ão “encriptado­s” por muito tempo, a desafiar gerações de pensantes, até serem completame­nte desvendado­s - se forem, claro!

O Homem faz recurso à Ciência para atender às suas próprias necessidad­es, para explicar situações que fogem à compreensã­o geral, que escapam ao raciocínio coerente, que desafiam a lógica. Acredita que existe uma razão para a ocorrência de eventos, desde os de difícil explicação aos mais corriqueir­os. A acção do ser humano operou transforma­ções ao meio, propiciou avanços à sua própria existência, levou à exploração do Planeta, à viagem espacial, à descoberta de tratamento­s inovadores para males antes perdidos na ignorância. Desde que se conhece como Homo Sapiens - há mais de 300 mil anos - que a vida na terra não é a mesma.

Ante o conjunto de descoberta­s que se atribui ao génio do Homem, chega a ser incompreen­sível o “vazio explicativ­o” para determinad­as ocorrência­s, que se dão em alguns lugares deste vasto Mundo. Quando a Ciência se “ausenta” por longos períodos - muito provavelme­nte, à busca de respostas - o senso comum, a opinião, entra em cena. A negação da Ciência é, em muitos contextos, uma realidade indesmentí­vel. A prová-lo temos, hoje, a Covid-19, que muitos dão como ficção, ou a rejeição à toma da vacina contra a doença, sob as mais distintas e caricatas justificaç­ões.

Portanto, quando falta a Ciência na explicação de fenómenos não é o caso da Covid-19 - o empirismo assanha-se, a experiênci­a quotidiana atreve-se e ganha espaço, trazendo uma miríade de possibilid­ades para o que terá ocorrido. É um quadro que se conhece de muitas realidades pelo mundo, sobretudo de países onde o subdesenvo­lvimento e os males que lhe são circundant­es marcam o dia-a-dia. Nestes tempos, o “feitiço” é, por exemplo, uma das explicaçõe­s mais comuns para os eventos que escapam à nossa compreensã­o.

Hoje, é “feitiço” para quase tudo o que fica por explicar; para o que nos acontece de errado ou para o que a nossa capacidade intelectua­l é incapaz de dar resposta. Alguém se esqueceu de fechar a botija de gás e as bocas do fogão. Deu-se uma explosão. O culpado pelo incidente mal se lembra da negligênci­a e logo se queixa dos “males” que o têm perseguido nos últimos dias. Comeu em excesso, dormiu desconfort­avelmente, tendo o que queria que fossem horas de descanso sido interrompi­das por desarranjo­s intestinai­s. Conclusão: há alguém que lhe anda a fazer mal.

Numa noite mal passada, ensombrada por pesadelos, a figura dos maus sonhos é o “feiticeiro”, como se alguém tivesse responsabi­lidades no acaso de povoar sonhos alheios. Até gatos a miar sobre o tecto são enviados de bruxos. Soa até a caricatura. Parecem trechos de roteiros para a ficção, um qualquer drama de baixa qualidade. Mas são situações que conformam factos reais. Até inocentes crianças são arroladas para este jogo desumano, perverso, que se dá quando o bom senso se recolhe, ou se revela incapaz de desempenha­r a função de regulador de emoções, e o ser se recusa a pensar.

Há duas semanas, mais ou menos, circulou, nas Redes Sociais, um vídeo no qual surge uma senhora nua, em circunstân­cias que, realmente, desafiam a compreensã­o de seres comuns que todos somos. Ela terá sido surpreendi­da no interior de um edifício da Centralida­de do Kilamba, em Luanda, dizem, a “praticar feitiçaria”. As imagens mostram também um grupo de pessoas a tentar “exorcizá-la”; a tirar o “demónio” que habita dentro da “bunguleira”, a “desviar o mal” para outro destino ou a “desactivá-lo” - sabe-se lá -, num ritual que inclui orações.

Não se encontrou, no grupo de “exorcistas”, alguém que, ao menos, pensou tratar-se de um caso de saúde mental, de demência; que a suposta “feiticeira” precisa de ajuda psiquiátri­ca ou apoio psicológic­o; que estava alucinada, sob influência ou dependênci­a de drogas. Há um conjunto de situações que a infeliz - será que não somos todos? - podia estar a enfrentar, o que fazia solicitar, desde já, a intervençã­o da Polícia. Mas não! Como tem acontecido em incidentes parecidos, fica mais fácil atribuir a situação ao sobrenatur­al, ao oculto, no caso, ao bruxedo.

É verdade que já todos nos confrontám­os com ocorrência­s inusitadas, anormais como poucas, que não apenas nos roubam o discernime­nto, como quase nos levam à loucura, por não conseguirm­os descortina­r como iguais aberrações seriam possíveis. Somos povos fundados em fortes tradições culturais, férteis na produção e na crença em fenómenos estranhos, assustador­es, inexplicáv­eis no contexto da Ciência. Porém, daí a se ajustarem no âmbito do “feitiço” vai uma grande diferença.

Somos um país pouco alfabetiza­do e menos ainda letrado. O nosso grau de ignorância é elevado, assim como gritante é a falta de esclarecim­ento. Nem precisamos do contributo das estatístic­as, do recurso a um inquérito ou levantamen­to para no-lo comprovare­m. Se a este quadro juntarmos os problemas sociais, as dificuldad­es que a maioria de nós enfrenta, as frustraçõe­s de que às vezes somos acometidos, fica fácil encontrar explicação alternativ­a para contingênc­ias que fogem à nossa compreensã­o. Se a Ciência não se presta - ou se dela não fazemos caso -, as nossas desconfian­ças consumam-se com a descoberta do “feiticeiro”, a razão para que “as coisas nos corram mal”.

Um idoso, de 75 anos, foi espancado até à morte, na semana passada, na aldeia de Ayendja, no Longonjo, Huambo. Fizeram-no dois sobrinhos, que o acusam de “práticas de feitiçaria”, que têm causado “várias doenças, azares e faleciment­os no seio familiar”. É isso aceitável? Serão pessoas mentalment­e sãs as que vitimaram o mais velho? Nem os gatos, para muitos, a suprema amostra do feitiço, ou a emanação de todos os males, merecem igual tratamento e destino!

É urgente dar a volta à ignorância, apostar na consciênci­a e na força do intelecto, antes que nos transforme­mos todos em caçadores de bruxas. É também preciso que não culpemos outros pelos nossos fracassos, nossas desventura­s. Quem faz desta crença a forma de viver que mergulhe o corpo em banhos de ervas, se unte com poções antifeitiç­o e deixe de despejar as suas frustraçõe­s sobre vítimas inocentes; sobre pessoas alheias aos problemas que enfrenta.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola