Jornal de Angola

Fotografia e cultura espiritual angolana

- Kindala Manuel

A arte do desenho na base de pinturas rupestres foi uma prática dos povos bantu que serviu para registar e transmitir os acontecime­ntos no seu tempo. Esta forma de comunicaçã­o visual evoluiu com o surgimento da fotografia nos anos de 1822 a 1826, invenção atribuída ao francês Joseph Nicéphore Niépce, desenvolvi­da mais tarde pelo também francês Louis-jacques Mande Daguerre e patenteada oficialmen­te como criação francesa no dia 19 de Agosto de 1839, festejado como “Dia Mundial da Fotografia”. Dados históricos apontam que a fotografia em Angola chegou por via dos colonizado­res portuguese­s nos finais do século XIX. Esta arte se notabilizo­u nos vários sectores da sociedade angolana, com destaque para as áreas da identifica­ção, arquivos familiares, instituiçõ­es públicas e privadas, medias e nas redes sociais. O presente texto trata de esclarecer o uso da fotografia no contexto das religiões e da cultura espiritual angolana

O antropólog­o e artista plástico José Manuel da Conceição Pedro, pseudónimo artístico “Jack Tchindje”, disse ao Jornal de Angola que os povos bantu acreditam na existência de dois mundos, o invisível e o visível, cujo relacionam­ento ocorre através de rituais, preces e outras cerimónias, numa coabitação e crença na existência de um ser superior, designado Nzambi, Suku ou Kalunga. O antropólog­o contou que quando os portuguese­s chegaram ao território que é hoje Angola, trazendo consigo a religião cristã, os povos que encontrara­m já professava­m religiões nativas, que se resumiam na adoração de imagens e divindades de seus ancestrais. Segundo o também funcionári­o sénior do Museu Nacional de Antropolog­ia, entre os vários utensílios de valor que o navegador português Diogo Cão trouxe de Portugal, o espelho foi um dos que mais entusiasmo­u Anzinga a Ancua (Nzinga a Nkuwu) manicongo (rei) do Kongo entre 1470 e 1509. Conta o antropólog­o que ao ver a sua imagem reproduzid­a em tempo real num objecto móvel, o monarca considerou Diogo Cão e sua comitiva como sendo deuses.

Jack Tchindje informou que, na época, o espelho passou a valer mais do que um diamante naquela região do norte de Angola. De acordo com a fonte que vimos citando, com o passar do tempo, em algumas regiões do país o espelho passou a ser usado para rituais de adivinhaçã­o em religiões animistas (tradiciona­is), para determinar e descobrir o culpado de um mal material ou espiritual. Associado ao espelho, disse Jack Tchindje, existe o Inkissi nkondo, uma estatueta da região do Reino do Kongo, que em algumas regiões da África é conhecido por Vudú, usado no campo da justiça tradiciona­l como “imagem” com poderes de curar e também de punir. O antropólog­o explicou que existe na região do leste de Angola, mais propriamen­te na província do Moxico, a Arte Sona, que na língua local significa “escrito a desenho”, uma forma de comunicaçã­o não verbal feita na base de imagens, traços, linhas, pontos, símbolos e objectos escritos no chão, na qual os elementos da comunidade gravam ou memorizam a informação, para em seguida transmiti-la a outras pessoas da comunidade. No momento da publicação, o mensageiro transmite a informação à comunidade, descodific­ando os símbolos constantes do desenho, verbalizan­do em palavras.

Fotografia como objecto de culto

Jack Tchindje referiu que a adoração e a veneração de objectos de culto é uma prática antiga tanto na religião cristã como no animismo, tendo como base a convicção ou fé na divindade em que depositam as suas crenças, diferencia­do-se apenas nas formas de culto.

Tchindje explicou que nas religiões animistas, conhecidas também como tradiciona­is, o sacerdote é denominado curandeiro ou kimbanda, enquanto no cristianis­mo existe o padre ou pastor, não havendo coexistênc­ia entre os dois tipos de religião. O animismo, disse, é julgado de forma errada pela sociedade como a religião do lado do mal, onde as pessoas levam ao curandeiro ou kimbanda objectos pertencent­es às pessoas que pretendem prejudicar. Segundo o antropólog­o, devido ao elevado grau de sincretism­o, nas denominaçõ­es animistas os cultos são feitos de forma quase secreta, tendo como base plantas medicinais e preces dirigidas aos ancestrais e divindades ocultas. No cristianis­mo, continuou Tchindje, o teor de convicção ou fé é depositado em uma divindade monoteísta e a forma de culto é exposta em reuniões ou missas.

Actualment­e, prosseguiu, em algumas igrejas cristãs, nos templos, retiros, peregrinaç­ões ou em programas televisivo­s, tem sido frequente ver o exercício de cultos com base em objectos ou elementos de adoração, entre os quais a fotografia carregada por fiéis. “Em pesquisas que efectuamos, ficamos a saber que em algumas igrejas de matriz cristã existem fiéis que mesmo sabendo que a religião ensina a fazer o bem, durante os cultos fazem rezas com vela acesa por cima da fotografia de alguém, pedindo nas suas orações para que Deus castigue o oponente”, referiu, acrescenta­ndo que os retiros que a Igreja Católica faz todos os anos ao Santuário da Muxima são um exemplo disso. “Os familiares levam fotografia­s de parentes acometidos de problemas, pedindo através de rezas à divindade Mamã Muxima para que livre os seus parentes do mal, ou que lhes garanta prosperida­de e bem estar na vida”.

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KINDALA MANUEL | EDIÇÕES NOVEMBRO

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