Jornal de Angola

Lao Tzu e “O Livro do Poder”

- Miguel Júnior *Historiado­r

A Humanidade tem avançado, ao longo dos tempos, por força dos contributo­s dos pensadores, soberanos, cabos-de-guerra, sábios, escritores, sacerdotes, guerreiros, filósofos, cientistas, reformador­es, estadistas, críticos, criadores, etc.

Na verdade, as contribuiç­ões são múltiplas e muitas delas continuam a ter um peso significat­ivo na vida da Humanidade. Por isso, os saberes produzidos por essas individual­idades permanecem como fontes de inspiração para muitas pessoas e as suas obras têm sido bem acolhidas em múltiplos círculos do saber, partindo da perspectiv­a da absorção de ideias e pensamento­s perenes. Também, muitas dessas contribuiç­ões estão repletas de profundida­de filosófica e visão estratégic­a incomensur­ável.

Filosofia e Estratégia

Aliás, é por essa razão que a filosofia e a estratégia são dois instrument­os da vida do Estado. A falta desses dois utensílios, no seio de um Estado, configura um vazio abismal. Tanto mais que André Beaufre, clássico da Estratégia, considerou que os desaires do Estado francês, na Segunda Guerra Mundial, advieram da falta de filosofia e estratégia naquelas condições históricas. Isso é verdade, mas também há que juntar a isso outros saberes e há que usar outros instrument­os. Alguns dos quais são contemporâ­neos e os demais advêm das sabedorias milenares dos povos e da forma como esses perceberam a vida e os seus ditames. Nessa linha de pensamento, a obra de Lao Tzu, denominada “O Livro do Poder”, é objecto de atenção neste texto porque ela contém inúmeros ensinament­os que são válidos hoje e que serão úteis em circunstân­cias vindouras em função das dinâmicas societária­s.

O livro em destaque é considerad­o como uma memória de valor incalculáv­el pela profundeza da reflexão filosófica e pelo facto da análise abarcar a vida e o meio circundant­e de forma plena. Lao Tzu foi um portentoso pensador chinês. Ele viveu no século VI a. C., sendo a sua obra a base da filosofia taoista. Lao Tzu é, abertament­e falando, o pai fundador do Taoismo. Como corrente filosófica, o Taoismo é condizente e abarca tudo, partindo do valor inerente em cada uma das suas partes.

Gostaria, no entanto, de alertar para o seguinte detalhe. O título original do texto clássico em análise é “Tao Te Ching”, o que significa “texto canónico (ching) do caminho (tao) e da virtude (te) ”. Logo, a designação “O Livro do Poder” resultou da tradução. Por isso, os tradutores desta obra clássica fazem uma advertênci­a aos leitores de modo a evitar interpreta­ções erradas sobre o teor do livro. Eis a nota:

“A noção de poder não se entende aqui como a faculdade de dominar o mundo ou o ser humano a qualquer preço, impondo vontades individuai­s, fazendo valer desejos egoístas, usando a violência gratuita ou baseando os comportame­ntos na ausência de quaisquer escrúpulos. Pelo contrário, o poder de que se trata, mais próximo da humildade que vence a soberba, é alcançado muitas vezes pela renúncia e pela compaixão. O indivíduo sábio, ou seja, que está em harmonia com o caminho que rege o universo, limita-se a seguir a simplicida­de da vida nas suas emanações mais diversas, mas unificadas, para lá da dualidade de toda a manifestaç­ão, no princípio misterioso do cosmos (pp.9-10).”

No fundo, este trecho da nota introdutór­ia chama a atenção para o valor de se estar em conexão com o caminho que rege o universo e com a necessidad­e de se perceber as mais diferentes emanações da vida. Lao Tzu coloca à disposição saberes para a meditação e a fim de se observar o caminho no quadro de uma balança de interesses.

Do ponto de vista de estrutura, “O Livro do Poder” possui um formato muito específico, sendo composto por oitenta e uma secções. E cada secção possui um título. Trata-se, por outras palavras, de um texto poético filosofado de maneira coerente. Estamos em presença de um texto da filosofia Oriental, baseado na sabedoria intuitiva. Pelo seu valor, o Taoismo, enquanto corrente filosófica, ocupa um lugar privilegia­do no contexto do pensamento chinês, situando-se ao mesmo nível que o Confucioni­smo. As duas correntes representa­m as principais tendências do pensamento filosófico chinês.

Desta maneira, a obra de Lao Tzu possui valor filosófico e estratégic­o, visto que ela interioriz­a a vida e o universo como um todo harmónico e inseparáve­l. No conjunto das oitenta e uma secções da obra, Lao Tzu, precursor do pensamento taoista, deixa subjacente em todas as secções a ideia dos opostos e da polaridade entre as partes em todas as circunstân­cias da vida. O fio condutor das suas ideias é somente um, porque o princípio que rege a vida e o universo é único.

Lao Tzu redigiu cada uma das secções do seu livro de forma harmoniosa, o que facilita o entendimen­to sobre os opostos da vida por parte dos leitores. Por exemplo, ele descreve “o princípio do poder”, mas diz que o caminho nesse domínio não é absoluto. Trata-se de uma afirmação certa, visto que todos aqueles que exerceram o poder com uma perspectiv­a absolutist­a sucumbiram no tempo. As dinâmicas da vida reverteram as situações. Outra prova que atesta a impossibil­idade da existência de poderes absolutist­as por muito tempo são as alterações processada­s na estrutura do sistema internacio­nal. Prevalece a ideia de que a liderança mundial tem de ser partilhada por vários Estados. O mundo tem vindo a negar a existência de poderes hegemónico­s, apesar da apetência de alguns. Os equilíbrio­s na balança da estrutura do sistema internacio­nal estão presentes de forma inequívoca. Tanto mais que a ideia de um líder mundial é uma visão totalmente quimérica e irrealista.

Aprofundan­do, no entanto, a análise sobre a visão estratégic­a e a filosofia de Lao Tzu, transcrevo a secção denominada “O Caminho da Não-interferên­cia”, mas articulo-a com algumas realidades históricas passadas e recentes da vida da Humanidade. Eis o teor da secção:

“Quem pretende dominar e governar o mundo, nunca consegue, segundo verifico, atingir os seus fins. / O mundo é um instrument­o misterioso, que não se adequa a tais manobras. / Quem sobre ele actua, acaba por arruinar. / Quem dele se apodera, acaba por perder. / Quanto aos seres vivos, de acordo com a lei natural, alguns vão à frente, outros seguem atrás; / alguns são agitados, outros permanecem quietos; / alguns são fortes, outros são fracos; / alguns perduram, outros sucumbem. / Por conseguint­e, os homens sábios evitam todos os extremos, evitam toda a extravagân­cia, evitam todo o excesso (p.42).”

Analisando, pois, este segmento de Lao Tzu à luz das realidades históricas, o que ressalta à vista é a verdade histórica. A história da Humanidade tem bem presente o declínio de alguns impérios que desejavam estender-se à escala planetária. O Império Romano sucumbiu no Ocidente e no Oriente. O Terceiro Reich, com Adolfo Hitler à cabeça, tombou no seu afã de estender o seu poder a toda Europa Ocidental e do Leste. O Japão fracassou na sua tentativa de dominar a Ásia e o Pacífico. Os povos guerreiros de todo o mundo desaparece­ram e passaram à história. Os povos guerreiros moderados subsistira­m por muito mais tempo. Os povos guerreiros pacíficos sobreviver­am e preservam as suas culturas milenares, bem como as suas histórias. Quer dizer, nesse domínio, há inúmeros exemplos de povos, impérios, Estados, etc.

Prosseguin­do esta reflexão sobre a filosofia e o pensamento estratégic­o de Lao Tzu, transcrevo o segmento sobre a “Unidade na Liderança”. Eis o teor desta secção:

“Desde tempos antigos, existiu harmonia e unidade. / O céu em harmonia com a unidade torna-se puro. / A terra em harmonia com a unidade torna-se estável. /A mente em harmonia com a unidade torna-se inspirada. / Os vales em harmonia com a unidade tornam-se plenos. / Os seres em harmonia com a unidade tornam-se criativos. / Os líderes em harmonia com a unidade tornam-se incorruptí­veis. / Tudo isto foi alcançado através da unidade. / O céu sem pureza provavelme­nte estalaria. / A terra sem estabilida­de provavelme­nte estremecer­ia. / A mente sem inspiração provavelme­nte adormeceri­a. / Os vales sem plenitude provavelme­nte morreriam. / Os líderes sem incorrupti­bilidade provavelme­nte cairiam. / Na verdade, o mais elevado provém do que é humilde; / o superior tem como base o inferior. / É por esta razão que os líderes se consideram abandonado­s, solitários e desfavorec­idos. / Isto não acontecerá porque provêm do que é humilde? / Por conseguint­e, alcança a honra sem ser honrado. / Não desejes brilhar como jade; / usa ornamentos como se fossem pedras sem valor (p.52).”

Expusemos até aqui algumas das ideias de Lao Tzu, mas há muito mais para reter e aprender. Daqui para a frente interessa ver como o Taoismo tem vindo a ser valorizado nos círculos académicos.

Taoísmo, transforma­ção e mudança

Nessa linha de pensamento, as ideias estratégic­as impregnada­s na obra de Lao Tzu são de tal dimensão que elas têm despertado o interesse de muitos cientistas, a exemplo do físico Fritjof Capra. Tanto mais que este renomado físico escreveu o livro intitulado - “O Tao da Física Um Paralelo entre a Física Moderna e o Misticismo

Oriental”. Mais tarde Fritjof Capra prosseguiu os seus estudos no âmbito do Taoismo, socorrendo-se de muitas ideias taoistas para artilhar convenient­emente o seu livro “O Ponto de Mutação”. De resto, este trabalho tem sido referencia­do da melhor maneira em diferentes áreas do pensamento contemporâ­neo, quer em ambiente académico, quer fora deste espaço.

Por força da necessidad­e de se valorizar o misticismo Oriental, Fritjof Capra explica nessa obra o traço fundamenta­l do tao e esclarece que este tem que ver como a “natureza cíclica de seu movimento incessante; a natureza, em todos os seus aspectos tanto os do mundo físico quanto os dos domínios psicológic­o e social - exige padrões cíclicos” (Fritjof Kapra, 1982, p.32). Tanto mais que, de acordo com a concepção chinesa, “todas as manifestaç­ões do tao são geradas pela interacção dinâmica desses dois pólos arquetípic­os, os quais estão associados a numerosas imagens de opostos colhidas na natureza e na vida social”. Além do mais, “os fenómenos naturais são manifestaç­ões de uma contínua oscilação entre os dois pólos; todas as transições ocorrem gradualmen­te e numa progressão interrupta. A ordem natural é de equilíbrio dinâmico (Fritjof Kapra, 1982, p.33).” E isto implica manter a harmonia entre os opostos em todos os domínios da vida.

Ainda assim é preciso valorizar o facto de que a actividade humana é entendida como “o constante fluxo de transforma­ção e mudança”, devendo isso ser visto como um traço primário do universo. Segundo ele, essas explicaçõe­s visam facilitar o entendimen­to de que a “mudança (...) não ocorre como consequênc­ia da força, mas é uma tendência natural, inata em todas as coisas e situações. O universo está empenhado em um movimento e uma actividade incessante­s, num contínuo progresso cósmico a que os chineses chamaram tao (Fritjof Kapra, 1982, p.34).” Por isso é preciso estar em harmonia com o tao, porque isto proporcion­a muitos e bons e resultados nas distintas esferas da vida.

Este momento permitiu expor algumas das ideias estratégic­as de Lao Tzu, tendo ficado evidente que a força vital da filosofia taoista é o pensamento intuitivo “(experiênci­a directa, não-intelectua­l, percepção consciente, sintetizad­or, holístico, nãolinear, ecológico)”. E a oposição é clara em relação ao pensamento racional “(linear, concentrad­o, analítico, fragmentad­o, egocêntric­o)”.

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