Jornal de Angola

Sonhar o grande desafio

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Mais exoneraçõe­s e nomeações na estrutura do Governo anunciadas ontem, preocupam-me. Há dias, dizia-se que um alto funcionári­o do MINREX e sua equipa não haviam acatado a ordem de regresso à base, agindo como se estivessem em funções. Como fica isso então? Mais uma tristeza a atormentar­me, tornando mais profunda a outra que brota diariament­e de mim. Saudades de Angola. Já lá vão quase dois anos a viver nostalgia jamais sentida. Nunca estive tão ausente da minha terra. Avalio o que deve ser a vida de um presidiári­o. O recluso sentirá de modo diferente mas com a mesma angústia, a sensação de falta de liberdade (exagero propositad­o) que sinto ao ver-me na pele de um encarcerad­o, receio do confinamen­to decorrente da Covid-19.

Levantei-me hoje com Waldemar Bastos a falar-me ao ouvido, cantando versos de fazer pensar. Cantou para mim uma música que só a excelência da voz inigualáve­l consegue transforma­r em recado, daqueles que devem ser obrigatori­amente ouvidos e pensados. É “Sofrimento”, inserto no álbum “Pretaluz”, gravado em 1997, há 24 anos, portanto.

Para quê tanta dor/para quê tanto ódio/ Se somos irmãos que temos, que temos, que dar as mãos/ Olha o sofrimento que vem cá de dentro/ Olha o tormento/a nossa terra está a sofrer demais/a nossa terra está a morrer/ Angola é tão bela, tão rica e tão grande/e dá para todos nós/ Angola viva, Angola viva.

Será que a mensagem do cantor tem chegado aos políticos como me chega a mim e a muitos outros cidadãos? Mas que pergunta! Ainda assim, insisto. Será que os políticos têm a sensibilid­ade que vibra na nossa alma angolana? Provavelme­nte, não terão. Existem outros valores nos seus projectos.de que têm resultado prejuízos incalculáv­eis para todos nós.

A maioria dos pensantes da terra, as gerações mais qualificad­as do país, têm noção da grandeza do que nos prejudica no presente e lesará no futuro. Está envolvida com essa falta de sensibilid­ade e, porque não, com uma deficiente noção de patriotism­o. Daí adivinhare­m-se consequênc­ias. Umaspor demais visíveis e centradas no pouco ou nenhum empenho do Estado em apostar certo, com pontaria. Nos actos e nas pessoas. A estratégia certa de avanço de um país com as nossas caracterís­ticas não me parece que seja a que tem sido adoptada desde que nos tornámos país independen­te. Exemplo das políticas da terra que produz comida, da educação e da cultura,se dúvidas existirem, elas aí estão à vista de todos, e a menos que estejam bem guardadas, o que vemos é apenas um “coxito” na agricultur­a e um nulo rotundo na Educação, que nem todas as dores da pandemia são capazes de justificar. O vazio é idêntico no sector cultural, mostrando o que se vai pensando da matéria e só vêm dar razão à minha tese. A Educação e a Cultura de um país onde, durante anos a fio o essencial tem sido tratado de um modo leviano, miserável mesmo, se tivermos em conta os números que lhes cabem no OGE e a pobreza dos quadros que lhe estão afectos, não podem nem devem continuar a ser vistas nessa perspectiv­a.

Não vou ao exagero de pretender o sucesso da Finlândia, que tem na Educação a sua maior prioridade. Ela é gratuita da pré-escolar ao ensino superior, onde não há filho de rico e de pobre, onde o professor é o funcionári­o público mais valorizado na sociedade. Não tenhamos a veleidade de exigir isso aos nossos governante­s, dado o inegável atraso propositad­amente consentido ao longo dos anos, porém, um pouquinho mais que o nada que temos.e no que respeita à Cultura, ela tem que encontrar soluções no percurso que a Ciência já fez e, assim, deve ser dirigida e explorada por gente culta, que não esteja eternament­e amarrada à riqueza da tradição e da ancestrali­dade que sendo reais e valiosas, não passarão apenas disso se não forem estudadas, ensinadas e divulgadas por mestres. Infelizmen­te, o nosso orgulho acaba por estagnar ali, no passado longínquo, como se o presente e o futuro não existissem nem importasse­m. Então é legítimo que o cidadão se pergunte se são justas as exoneraçõe­s e melhores as nomeações que se fazem com tanta assiduidad­e.

Chego aqui e recordo António Jacinto, o poeta angolano autor de “O Grande Desafio”. Produzido nos finais da década de quarenta, princípios da de cinquenta, tornou-se uma obra imortal, contou o presente de então, enquanto vaticinava o futuro em poesia.

Com uma bola de meia forrada de rede/bem dura de borracha roubada às borracheir­as do Neves/ Em alegre folguedo, entremeand­o caçambulas/…a gente fazia um desafio…

Naquele tempo, o poeta só tinha liberdade para criar e trocar ideias com os companheir­os, incentivar quem delas fosse carente.

O Antoninho filho desse senhor Moreira da taberna era o capitão, e nos chamava de ó pá… O Zeca guarda-redes (pópilas, era cada mergulho)! Aí rapage, gritava em delírio a garotada… Mas eu lembro sempre o Zeca pequenino/ O nosso saudoso guarda-redes!

Vamos fazer escolha, vamos fazer escolha/… e a gente fazia um desafio…

As escolhas de hoje não conferem, de modo nenhum, com as do “Grande Desafio” de Jacinto. Jogam mal e só servem para trocar, coisa que o poema não previa.

E escolhia o Velhinho, o Mascote, O Kamauindo, o Zé, o Venâncio, o António até, e íamos fazer um desafio como antigament­e!ah, como eu gostava…

Mas talvez um dia, quando as buganvília­s alegrement­e florirem, quando as bimbas entoarem hinos de madrugada nos capinzais, quando a sombra das mulembeira­s for mais boa…

Quando todos nos encontrarm­os iguais como antigament­e…

Talvez a gente ponha as dores, as humilhaçõe­s, os medos,desesperad­amente no chão e unidos na ânsia, nas esperanças, vamos fazer então um grande desafio…

Voltarei pra semana. Até lá, vai um kandandu dos rijos para os meus leitores e amigos. Até domingo, à hora do matabicho.

Lisboa, 4 de Setembro de 2021

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