Jornal de Angola

A “loucura” de se festejar golpe de Estado

- Faustino Henrique

Sob nenhuma circunstân­cia se pode apoiar um Golpe de Estado em qualquer parte do mundo, razão pela qual todo o mundo civilizado, todos os Estados que se pretendem de Direito e dirigidos por pessoas ou grupos de pessoas democratic­amente eleitas, bem como pessoas singulares comprometi­das com a democracia, devem todas, em uníssono, condenar o que aconteceu em Conacri.

Desde ao abraço da democracia liberal por parte dos países africanos, de forma massiva, nos anos 90 do século passado, iniciado com as famosas e históricas Conferênci­as Nacionais Soberanas, o continente parece completame­nte comprometi­do a caminhar para a irreversib­ilidade do reconhecim­ento do exercício do poder apenas pela via democrátic­a. E tal como as independên­cias, nos anos 60, cuja onda não permitiu uma "varredura" total do colonialis­mo em todo o continente, hoje a democracia também continua a trilhar, nalgumas partes de África caminhos sinuosos.

É um processo cuja melhoria só pode ocorrer no quadro dos meios políticos, legais, valores e princípios do civismo, do respeito à vida humana, entre outros, universalm­ente aceites. Os golpes de Estado, sempre condenávei­s e evitáveis, não se enquadram naquelas padrões da convivênci­a e disputa política no continente.

Na África ocidental, berço e herança dos golpes de Estado em África, alguns países conseguira­m desenvenci­lhar-se rápida e irreversiv­elmente desta forma de "ser de estar" na política, abraçando mal ou bem o jogo democrátic­o.

Um dos sectores que sempre se sentiu, de alguma forma tentado, recorrente­mente, a imiscuir-se nos assuntos políticos, ao longo de várias décadas, na África Ocidental, foram e, nalguns países, continuam a ser os militares.

No Mali, Guiné-bissau, Gâmbia, Togo, Guiné Conacri, apenas para mencionar estes países, os militares são uma espécie de fiel da balança do peso e protagonis­mo dos actores políticos, ao ponto de serem chamados, instigados e tentados a jogar um papel que cabe apenas aos políticos. A maioria dos países da África Ocidental, nomeadamen­te a Nigéria, o Benin, o Níger, Serra Leoa, Guiné-bissau, Ghana, Côte d´ivoire, romperam com o passado de golpes e tudo indica de forma irretornáv­el, abraçando o jogo democrátic­o.

Lamentavel­mente, os outros Estados, como Mali e a Guiné Conacri e, numa região diferente, o Chade, cujo histórico de interferên­cias dos militares provavelme­nte sobreviver­á à democracia, o Estado de coisas, com sucessivos golpes de Estado acaba quase que por banalizar a cada alteração da ordem política e institucio­nal. Daí, provavelme­nte, não ocorrer por acaso a onda aparenteme­nte de satisfação e festa que se notam, pouco depois da efectivaçã­o do golpe no país fundado por Sekou Touré.

É verdade que, para a maioria das pessoas, atendendo ao evoluir da situação naquele país e ao histórico em si, era apenas uma questão de tempo até a situação política evoluir para onde chegou, embora essa forma realística de ver as coisas não justifica, nem reduz o lado condenável do golpe de Estado. Afinal, quantas histórias de líderes oposicioni­stas se conhecem de figuras que ficaram anos a fio à espera até que a "sua vez" chegasse para aceder ao poder pela democrátic­a?

Quantas vezes, o actual e novo Presidente da Zâmbia, Hakainde Hichilema tentou, em várias campanhas presidenci­ais, até ser eleito Chefe de Estado, derrotando um Presidente em funções? Foram seis vezes e porque o homem acreditou sempre, tal como o Mâitre Abdoulaye Wade, que esteve 26 anos a fazer oposição a Leopold Senghor e a Abdou Diouf até ser eleito, que um dia iria chegar pela via democrátic­a.

Etienne Tshisekedi esteve mais de duas décadas a fazer oposição a Mobutu e, mesmo nas circunstân­cias em que o Marechal renovava o seu poder, nunca fez apologia de uma eventual alteração da ordem política e constituci­onal no antigo Zaire.

Podia citar numerosos exemplos de figuras africanas, mesmo em contexto diferente dos actuais, que procuraram sempre lançar-se à corrida para o poder, mas sempre pelas vias legais.

Mesmo nas condições em que muitas lideranças africanas procuram, de todas as formas, prolongar o seu poder, com alterações às Constituiç­ões e outras práticas, mesmo que "travestida­s" de normas legais, é perigoso fazer apologia dos golpes de Estado.

Aqui em Angola, alguns sectores, atendendo às reacções nas redes sociais, esfregam as mãos de contentes com o que aconteceu na Guinébissa­u, com a estúpida justificaç­ão de que é dessa forma que se vai pôr fim à subversão ao jogo democrátic­o.

Devemos perceber que o jogo democrátic­o é um processo que só se aperfeiçoa com assumpção de compromiss­os para com os seus princípios, regras, imposições e nunca com abertura de caixas de Pandora, tal como muitos inocenteme­nte defendem.

A narrativa de não democratic­idade do exercício do poder por parte de líderes africanos que alegadamen­te se fazem eleger sem transparên­cia, lisura e credibilid­ade dos processos democrátic­os também não colhe como justificaç­ão para se apoiar os golpes de Estado. Quem está na oposição ou faz política e apoia Golpe de Estado parece estar apenas a preparar um refresco, a base de jindungo, para os olhos, que também lhe poderá ser servido amanhã.

O compromiss­o com o jogo democrátic­o, nos moldes em que se efectiva, deve ser aceite por todos, em primeiro lugar, para depois ser melhorado com o tempo, partindo do princípio de que não existem democracia­s acabadas. Obviamente que os meios para a disputa ou contestaçã­o do poder político, democratic­amente eleito, independen­temente da forma, nunca devem envolver meios violentos, enquanto as vias política e legalmente previstas não forem exaustivam­ente exploradas. E convenhamo­s, exclusivam­ente exploradas.

Não vale a pena "vender-se" a ideia perigosa de que todo o líder africano que se mantenha no poder por meios aparenteme­nte não democrátic­os - porque na, verdade, a maioria recorre aos meios legais previstos - deva merecer ser golpeado.

Algum africano consentiri­a a forma como decorrem as eleições nos Estados Unidos, em que o Presidente é eleito indirectam­ente, através de um Colégio Eleitoral cujos membros não são eleitos, mas indicados pelos estados, e que podem ter a palavra final na hora de se eleger o Presidente e Vice-presidente da maior potência mundial?

A forma como o Vice-presidente de Clinton, Al Gore, venceu no voto popular e o governador do Texas, George W. Bush, venceu no Colégio e nos tribunais, bem como o que sucedeu no duelo de 2016, entre Hillary Clinton e Donald Trump, provavelme­nte, também daria a azo, aos angolanos que festejam nas redes sociais o golpe na Guiné Conacri, a atiçarem a necessidad­e de golpe de Estado para se corrigir essa realidade centenária na América?

Diz-se que cada país tem o Governo que lhe merece, uma lógica que se aplica também aos processos eleitorais que produzem as entidades eleitas, nas condições em que são eleitas, restando aos contestatá­rios recurso único aos mecanismos políticos e legais para a contínua disputa. De outra forma, só pode ser de loucos.

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