Jornal de Angola

Pela democracia global marchar, marchar

- João Melo |*

Os actuais acontecime­ntos no Afeganistã­o, além das suas implicaçõe­s internas ou, quando muito, bilaterais, estão igualmente relacionad­os com o tema da democracia global, colocando no centro do debate aquela que, afinal, é a pergunta chave: como implantar a democracia em todas as sociedades e regiões? O Presidente norte-americano, Joe Biden, justificou a saída dos EUA do Afeganistã­o com uma afirmação brutal, que parece responder a tal pergunta. Disse ele (cito de memória): - “Se os afegãos não querem travar esta luta, não seremos nós a fazê-lo!”.

Será, como já apressaram alguns a concluir, que os EUA deixarão de ser os “polícias do mundo” e, sobretudo, irão abandonar efectivame­nte a estratégia inaugurada por Reagan e desenvolvi­da por Bush de “impor a democracia à força de balas e canhões”? Será preciso ver para crer.

O facto é que a frase de Biden é idêntica a outras frases já proferidas por outros altos responsáve­is norte-americanos nas últimas décadas. O então secretário de Estado, John Kerry, por exemplo, afirmou em 2013 e 2015, que não havia “solução militar” para a Síria. No passado mês de Agosto, o representa­nte dos EUA para o Afeganistã­o, Zalmay Khalilzad, disse a mesma coisa em relação ao referido país, antecipand­o a saída das tropas americanas da região. Porém, o facto de, por vezes, os dirigentes americanos darem mostras de “cair na real”, não demonstra que a maior potência imperial da nossa época esteja disposta a abandonar as suas políticas...imperialis­tas. Não seria isso, afinal de contas, uma contradiçã­o?

É aconselháv­el não esquecer que persistem as pressões dos sectores internos e externos interessad­os na guerra. O complexo industrial­militar norte-americano, desde logo, não é nenhum fantasma e muito menos uma “invenção comunista”: existe mesmo, como reconheceu o ex-mercenário e autor Sean Mcfate, em entrevista recente ao português Diário de Notícias no último dia 14 de Agosto. Entretanto, mais patéticas ainda são as “pressões” dos diferentes órfãos europeus (políticos, analistas, jornalista­s e outros) que continuam a lamentar-se, por todos os meios, por causa do abandono do Afeganistã­o por parte dos EUA.

De facto, há por aí malta que continua a sonhar com a necessidad­e de recorrer a guerras para salvar a “democracia liberal” (?). É óbvio que, em certos momentos da História, a guerra é imprescind­ível para impedir a tirania global, como aconteceu na 2ª Guerra Mundial. Não tenho, também, qualquer relutância em admitir a necessidad­e de medidas militares (inteligênc­ia, ataques dirigidos, guerras mais ou menos localizada­s) para conter todas as formas de terrorismo e não apenas o islâmico. Isso é uma coisa. Outra é tentar impor a democracia em todo o mundo à base de intervençõ­es militares ou golpes de Estado mais ou menos “primaveris”.

Além do mais, tal estratégia tem-se revelado de uma ineficácia confranged­ora. Atendo-me unicamente às “primaveras árabes”, a única que teve um relativo sucesso foi a da Tunísia, por uma razão simples: foi a única verdadeira­mente genuína e com visão do “dia seguinte” (o que fazer depois de derrubar a ditadura). Todas as outras foram um rotundo fracasso, tendo resultado em ditaduras ainda mais ferozes ou, então, na destruição pura e simples de países relativame­nte desenvolvi­dos e prósperos.

O título desta crónica é, pois, enganador: a implantaçã­o da democracia global não pode ser feita, como alguns defendem, com novas cruzadas. Não pode tão pouco ser assumida como “missão” por um único país, mesmo que seja a maior potência mundial. Assim, não tenho grandes expectativ­as em relação à anunciada cimeira da democracia anunciada pelos Estados Unidos, a não ser saber se Joe Biden quer realmente inaugurar uma nova página ou apenas voltar à “América de Bush”.

Por fim, e como o que está em jogo é a “democracia global”, onde pára a ONU?

O título desta crónica é, pois, enganador: a implantaçã­o da democracia global não pode ser feita, como alguns defendem, com novas cruzadas. Não pode tão pouco ser assumida como “missão” por um único país, mesmo que seja a maior potência mundial

* Jornalista e escritor

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