O Tempo e o mundo maravilhoso
Como em todo o lado, vivemos em Angola um tempo que crispa os sentimentos dos cidadãos. As reacções sobre o regresso ao país do antigo Presidente da República são um bom exemplo disso. Vivemos um momento em que se descobrem maldades em tudo o que vem do contrário. A desonestidade, a intriga e a ganância,são símbolos de bondade, quando vistos do lado da nossa malta. É um tempo em que quase todos os conflitos político-sociais são provocados por gritante e obscura falta de visão, seriedade política e intelectual, frutos de habilidades situacionistas, bizarras atitudes e estranhas causas. Eles, os conflitos, aí estão a soar como tiros de canhão em todas as esquinas e a atingir o âmago das populações nas cidades, nas comunas e povoações do nosso imenso país. É um momento delicado, este, em que o cidadão comum é atingido por fogo mortífero e começa, no meio de um conjunto de dúvidas, a pensar com certezas absolutas que adquiriu o direito de falar do seu semelhante, como lhe der na real gana. Fá-lo sem a noção da legitimidade e da razão suficiente para o fazer. Vivemos sim, um tempo em que eu mesmo reconheço ter sido inutilmente repetitivo, levando-me a que decida hoje falar de coisas e pessoas boas e dignas (sobretudo de pessoas) que me fazem recordar tempos em que, como agora, coexistiam também os bons, os maus e os vilões. Foram tempos em que a mentira não era tão aviltante e perigosa, a vaidade era relativa pertença dos palermas e a malandrice não mais que malandragem. O roubo era apenas pequeno desvio e a amizade coisa muito séria, sentimento para valer e durar. Pedir não constituía pecado nem era vergonhoso. Assumiam-se compromissos, pagavamse as dívidas, a alegria e a felicidade do outro nunca eram invejadas de forma tão agreste, cruel e desumana como o são hoje em dia. Enfim, a solidariedade não era palavra vã.
Usar roupa de fardo não significava pobreza extrema nem suscitava complexos. Exibíamos as farrapeiras em festas de quintais, aniversários e casamentos. Fomos assim educados, lutando, desavindos muitas vezes mas unidos no essencial, defendendo sempre a virtude e os valores da angolanidade, da verticalidade e da igualdade. Suportando estoicamente a humilhação e as desigualdades impostas pela lei colonial que tinha o intuito de mudar o rumo do nosso destino.
Agora, tudo parece esboroar-se no domínio dos sentimentos nobres. Por isso, na altura em que o ódio e o recalcamento substituíram a ética e a elegância do gesto, vou recordar pessoas com quem convivi, umas já ausentes, outras ainda entre nós.
Lembro-me delas nos momentos em que me sinto perdido na tristeza deste clima morbígeno, de falsa seriedade e de falta de amor ao próximo. Conduzem-me ao tempo em que a vida nos parecia muito boa e nos levava a cantar “o amor é uma coisa maravilhosa”, ou a aceitar a imortalidade da vida e do mundo como o fez Louis Armstrong na célebre composição “What a Wonderfulworld”. Na verdade, existia nesse tempo e ao nosso redor, sem nos apercebermos disso, um Mundo Maravilhoso que vivemos à nossa maneira, apesar de todas as diferenças nas oportunidades que nos deram. Devido a essas diferenças, fomos sendo incapazes de o viver devidamente. Com a sofreguidão sugerida pelo seu oferecimento, desleixo que vamos preservando nos dias que correm,em que conquistamos nova oportunidade de sonhar com o nosso mundo maravilhoso.
É pois, com ânimo diferente que recordo fugazmente Gabriel Leitão, uma figura que cito e lembro muitas vezes. Pela sua forma peculiar de estar na vida para vivê-la como gostava, pelo modo como se vinculava às amizades. Pelo seu patriotismo. De outro modo, lembro-me do Carlos Alberto Flores, o Cabé, pai do Paulo Flores. Estabelecemos amizade colorida com base sentimental. Falou sempre alto o nosso amor a Angola e ao clube do coração. A sua intensa ligação à música e à dança,aproximou-nos também. Passei anos a apreciar a magia dos seus passos de dança. Inimitáveis gestos no semba ou nas plenas rendilhadas de sons da América Caribenha. Na verdade, a amizade no nosso tempo fazia-se fácil nas farras e no meio de caldos suculentos e outras perspectivas. A beleza da vida ficava retratada nos rostos de Adinho Octávio, Carlitos Romão ou Álvaro Gouveia Leite, exímios bailarinos com grande jogo de pernas, cavalheiroscom os quais as moças adoravam dar passadas.
Certo dia em Lisboa, no limiar dos anos noventa, Cabé disse-me, num ambiente de música, exibindo o habitual sorriso largo de orelha a orelha, “o meu miúdo vai ser um sucesso. O rapaz é bom”. Não se enganou no vaticínio. Paulo Flores, o seu rapaz, é hoje, na minha opinião, o melhor intérprete da música popular angolana. Reconhecido internacionalmente, vai ombreando a fama com o grande Bonga e com o emblemático Elias dya Kimuezu, honrando os que partiram e sujeitandose natural e respeitosamente como faz o angolano que se preze, à idade e ao valoroso percurso dos “mais velhos”.
Para contrariar este tempo malandro, nada melhor que a música, porque,na verdade, “a vida, nada é sem música”. Vai daqui um abraço fraterno para todos quantos me lêem. Fica, igualmente, a promessa de voltar no domingo próximo, à hora do matabicho.
Para contrariar este tempo malandro, nada melhor que a música, porque,na verdade, “a vida, nada é sem música”. Vai daqui um abraço fraterno para todos quantos me lêem. Fica igualmente a promessa de voltar no domingo próximo, à hora do matabicho