A racionalidade e os fenómenos paranormais
O debate sobre a racionalidade e os fenómenos paranormais convoca vários domínios do saber e respectivos especialistas, entre os quais a antropologia, a filosofia, a linguística, a medicina e a teologia. Uma das manifestações da tematização do tópico que trazemos novamente à conversa consiste em discutir sobre a teoria da referência e a teoria da descrição do significado das palavras. Isso é, explicar o significado de uma expressão e descrever o seu modo de uso. Neste caso, a abordagem do tópico pressupõe o compromisso de explicar e descrever o uso de palavras comuns das línguas africanas, por exemplo, “wanga”, “kindoki”, “umbanda”, “liemb”... que na semântica das línguas europeias parecem encontrar equivalentes em palavras como “feitiço” em português, “sorcellerie” em francês, “witchcraft” em inglês e “hexendickicht” em alemão. Mas os referentes destas palavras em línguas europeias remetem para objectos que nada têm a ver com as experiências africanas. Como sublinhei em texto anterior, a referência é baseada no conhecimento que se tem dos objectos de acordo com a experiência imediata em qualquer língua natural. Consiste na relação entre a palavra e o objecto que se estabelece por força da experiência de um determinado sujeito conhecedor perante o mundo à sua volta.
Fenómenos paranormais
O “feitiço” e seus equivalentes em línguas europeias, no sentido mais vulgar, referem práticas mágicas e sortilégios de que as “bruxas e bruxos” são agentes. É-lhes atribuída uma conotação associada à manipulação de artefactos toscos, objectos artificiais ou falsificados, actos e comportamentos falsos. Entre os referidos domínios do saber, destaca-se a antropologia, seu aparato epistemológico e metodológico, como campo privilegiado do estudo destes fenómenos. Durante muito tempo, os investigadores africanos que trabalham em instituições e universidades africanas importavam ferramentas analíticas da antropologia ocidental, normalmente marcadas por preconceitos desqualificantes como aquele que se resume na “mentalidade pré-lógica”, fórmula do francês Lévibruhl. As rupturas radicais começam a registar-se quando os filósofos e teólogos africanos introduzem novos modelos no tratamento da problemática. A personalidade mais importante neste capítulo é, sem dúvida, uma figura igualmente representativa da Escola Filosófica da África Central, na sua âncora camaronesa. Trata-se do teólogo e filósofo camararonês Meinrad Pierre Hebga (19282008), na imagem.
Os fenómenos paranormais constituem o objecto de estudo e campo de eleição com que se ocupou Meinrad Pierre Hebga durante décadas. A singularidade dos problemas suscitados pelas crenças e pelos fenómenos paranormais é reafirmada por especialistas de diferentes áreas do saber, atestando-se assim o carácter inexplicável da ciência. A medicina tal como é exercida em África tem fornecido exemplos disso. “Médicine et pharmacopée” [Medicina e Farmacopeia] é o capítulo do livro “Les Savoirs Endogènes. Pistes de Recherche” [Saberes Endógenos. Pistas de Investigação], publicado em 1994, sob a direcção do filósofo beninense Paulin Hountondji, que reúne as comunicações apresentadas nos seminários de Mestrado em Filosofia e Sociologia da Universidade Nacional do Benin, realizados em 1987 e 1988. Do referido capítulo, destaco duas comunicações, “Corps étrangers dans l’organisme humain: témoignage d’un chirurguen et essai de interpretation” [Corpos estranhos em organismo humano: Testemunho de um cirurgião e ensaio interpretação] de Henry-valère T. Kiniffo, cirurgião e “La Médicine psychosomatique dans ses rapports avec la sorcellerie” [Medicina Psicossomática e suas relações com as práticas de wanga] de Comlan Théodore Ajido, psiquiatra. O testemunho do cirurgião traz a debate a ilustração do que para a medicina é inexplicável. Revela-se a natureza enigmática dos conhecimentos que sustentam a prática de introdução de objectos estranhos no corpo humano, procurando determinar os processos e as relações de causalidade. Tal narrativa permite reconhecer a legitimidade da perspectiva defendida por Meinrad Pierre Hebga, no que diz respeito à problematização filosófica e racionalidade dos fenómenos paranormais em África. De resto, é comum, actualmente, considerar que o fenómeno paranormal define-se pelo seu carácter inexplicável na ciência actual, requerendo, por essa razão, uma revisão dos princípios da ciência.
Nota bio-bibliográfica
Meinrad Pierre Hebga nasceu em 1928, tendo falecido na véspera da data em que completaria oitenta anos de idade. Realizou os seus estudos primários e secundários em estabelecimentos católicos. De 1938 a 1940 e de 1947 a 1948, frequentou, repectivamente, os seminários menor de Edéa e maior de Yaoundé. Ordenado padre em 1951, viria a obter a sua licenciatura em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, em 1952. Após o ingresso na congregação dos jesuítas, obtém a licenciatura em Ciências Sociais pelo Instituto Católico de Paris em 1962, a que se segue outra licenciatura e um Mestrado em Filosofia pela Universidade da Sorbonne.
Em 1968, na Universiade de Rennes, defende uma tese de Doutoramento de terceiro ciclo, intitulada “Le Concept de Métamorphoses d'hommes en Animaux chez les Basa, Duala, Ewondo, Bantu du Sud-cameroun”, [O Conceito de Metamorfose de Homens em Animais entre os Bassa, Duala, Ewondo, Bantu do Sul dos Camarões]. Na Universidade da Sorbonne (Paris IV) defende, em 1986, outra tese de Doutoramento com o seguinte título: “La Rationalité d’un Discours Africain sur les Phénomènes Paranormaux, et Composé Pluraliste du Composé Humain”, [A Racionalidade de um Discurso Africano sobre Fenómenos Paranormais e a Concepção Pluralista do Composto Humano].
Exerceu actividade docente em universidades europeias e dos Estados Unidos da América. A partir de 1985 dedicou-se ao ensino da Filosofia na Universidade de Yaoundé e no Instituto Católico da mesma cidade. É um dos fundadores da Teologia da Libertação Africana. Integra a lista dos onze teólogos que subscreveram os capítulos do livro “Des prêtres noirs s’interrogent” [Os Padres Negros Interrogam-se], publicado em 1956, ao lado de outros membros da Escola Filosófica da África Central.
Sobre a obra de Meinrad Pierre Hebga, enquanto filósofo, existem igualmente várias sínteses. Um ano após a sua morte, a Universidade de Yaoundé prestou-lhe uma homenagem com a realização de um colóquio internacional em 2009 cujas actas, publicadas em 2010, reúne o que de essencial se pode extrair da sua produção. A sua mais original tematização filosófica gravita em torno de problemas suscitados pelo conceito de “liemb” que tem equivalentes nas línguas Bantu de Angola, por exemplo, “kindoki”, “umbanda”, “wanga”. Mas os fundamentos da sua perspectiva remontam à primeira tese de Doutoramento cujo título, como convém sublinhar, por si só, é elucidativo: “Le Concept de Métamorphoses d'hommes en Animaux chez les Basa, Duala, Ewondo, Bantu du Sudcameroun”, [O Conceito de Metamorfose de Homens em Animais entre os Bassa, Duala, Ewondo, Bantu do Sul dos Camarões]. Regressa ao tema, publicando sucessivamente, “Sorcellerie et Prière de Délivrance: Réflexion sur une Expérience”, [Wanga e Oração de Libertação: Reflectindo sobre uma Experiência] 1982; “Afrique de la Raison et Afrique de Foi”, 1995. Publica, em 1998, [A Racionalidade de um Discurso Africano sobre Fenómenos Paranormais], a versão final da sua última tese de Doutoramento que desencadeia intensos debates. Alguns colegas camaroneses qualificaram-na pejorativamente como etnofilosofia. Assim, importa-se o olhar da antropologia eurocêntrica em que o debate se desenvolve na Europa e nos Estados Unidos, na medida em que constitui território do irracional. Isto é, o campo da “parapsicologia” em que se registam fenómenos psíquicos e parapsíquicos, universo de causas não-físicas, revelando-se como totalmente inexplicáveis à luz dos princípios da física, mesmo depois de demonstrada por uma investigação experimental.
Esse é o campo em que se operacionalizam os conceitos de “wanga”, “kindoki”, “umbanda”, “liemb”. Como se sabe, não são práticas exclusivas de que os africanos têm monopólio. Mas não se podem reduzir a categorias desqualificadoras de “magia”, “feitiço”, “bruxaria” ou “forças ocultas”. Não sendo necessariamente expressão de atraso, constituem sintomas e comportamentos racionais individuais e das diferentes comunidades humanas. Por essa razão, o estudo das práticas africanas não pode obedecer cegamente aos modelos de experiências históricas europeias cuja importação tem causado efeitos devastadores.
Universalidade do particular africano
Para Meinrad Pierre Hebga está em causa a tematização do carácter particular da racionalidade. Por essa razão, parte do pressuposto segundo o qual a racionalidade é necessariamente particular e, consequentemente, plural, denunciando o “universalismo ingénuo e falacioso”. Entende que as provas encontram-se quer na produção de filósofos ocidentais célebres quer na de seus epígonos africanos.
Meinrad Pierre Hebga faz a apologia de uma racionalidade aberta a que se chega após a descoberta da particularidade do universal europeu e da universalidade do particular africano. Semelhante ruptura epistemológica permite evitar o desempenho de papeis de meros glosadores e comentadores com que muitos filósofos africanos se confortam. No dizer de Hebga, os pensadores africanos, tal como os europeus, têm o direito de construir o universal a partir dos seus próprios particularismos.
Nas primeiras décadas do século, Meinrad Pierre Hebga foi revigorando a sua argumentação perante audiência constituída por pares. Tal ocorreu, por exemplo, num intervalo de dois anos, em eventos realizados no contexto académico. Em 2002, participou no colóquio subordinado ao tema “Reencontro de Racionalidades”, realizado em Porto-novo pelo Centro de Altos Estudos e pelo Conselho Internacional de Filosofia e Ciências Humanas. Entre os convidados destacavam-se o filósofo norte-americano Richard Rorty. No ano seguinte, reiterou as suas teses no colóquio realizado na Universidade Católica da África Central, Yaoundé.
Portanto, a racionalidade aberta perante fenómenos paranormais representa a base a partir da qual a interpretação pode ser posta ao serviço da epifania da pessoa, quando, como sujeito apropria-se do espaço e do tempo. Enquanto agente pratica actos que configuram manifestações dessa epifania, tais como a levitação, a multilocalização, a telepatia, para referir apenas alguns. O filósofo camaronês Nkolo Foe sintetiza o pensamento de Meinrad Pierre Hebga através de uma expressão que pode ser útil para designar o objecto de estudo. É de “saberes heterodoxos” que se trata efectivamente. Inspirando-se na metafísica da comunidade Bassa dos Camarões, o professor Meinrad Pierre Hebga sonda os fundamentos racionais das práticas de “liemb”, submetendo as crenças e os paradigmas da tradição comunitária a uma crítica sistemática.
. * Ensaísta e professor universitário