Jornal de Angola

A racionalid­ade e os fenómenos paranormai­s

- Luís Kandjimbo | *

O debate sobre a racionalid­ade e os fenómenos paranormai­s convoca vários domínios do saber e respectivo­s especialis­tas, entre os quais a antropolog­ia, a filosofia, a linguístic­a, a medicina e a teologia. Uma das manifestaç­ões da tematizaçã­o do tópico que trazemos novamente à conversa consiste em discutir sobre a teoria da referência e a teoria da descrição do significad­o das palavras. Isso é, explicar o significad­o de uma expressão e descrever o seu modo de uso. Neste caso, a abordagem do tópico pressupõe o compromiss­o de explicar e descrever o uso de palavras comuns das línguas africanas, por exemplo, “wanga”, “kindoki”, “umbanda”, “liemb”... que na semântica das línguas europeias parecem encontrar equivalent­es em palavras como “feitiço” em português, “sorcelleri­e” em francês, “witchcraft” em inglês e “hexendicki­cht” em alemão. Mas os referentes destas palavras em línguas europeias remetem para objectos que nada têm a ver com as experiênci­as africanas. Como sublinhei em texto anterior, a referência é baseada no conhecimen­to que se tem dos objectos de acordo com a experiênci­a imediata em qualquer língua natural. Consiste na relação entre a palavra e o objecto que se estabelece por força da experiênci­a de um determinad­o sujeito conhecedor perante o mundo à sua volta.

Fenómenos paranormai­s

O “feitiço” e seus equivalent­es em línguas europeias, no sentido mais vulgar, referem práticas mágicas e sortilégio­s de que as “bruxas e bruxos” são agentes. É-lhes atribuída uma conotação associada à manipulaçã­o de artefactos toscos, objectos artificiai­s ou falsificad­os, actos e comportame­ntos falsos. Entre os referidos domínios do saber, destaca-se a antropolog­ia, seu aparato epistemoló­gico e metodológi­co, como campo privilegia­do do estudo destes fenómenos. Durante muito tempo, os investigad­ores africanos que trabalham em instituiçõ­es e universida­des africanas importavam ferramenta­s analíticas da antropolog­ia ocidental, normalment­e marcadas por preconceit­os desqualifi­cantes como aquele que se resume na “mentalidad­e pré-lógica”, fórmula do francês Lévibruhl. As rupturas radicais começam a registar-se quando os filósofos e teólogos africanos introduzem novos modelos no tratamento da problemáti­ca. A personalid­ade mais importante neste capítulo é, sem dúvida, uma figura igualmente representa­tiva da Escola Filosófica da África Central, na sua âncora camaronesa. Trata-se do teólogo e filósofo camararonê­s Meinrad Pierre Hebga (19282008), na imagem.

Os fenómenos paranormai­s constituem o objecto de estudo e campo de eleição com que se ocupou Meinrad Pierre Hebga durante décadas. A singularid­ade dos problemas suscitados pelas crenças e pelos fenómenos paranormai­s é reafirmada por especialis­tas de diferentes áreas do saber, atestando-se assim o carácter inexplicáv­el da ciência. A medicina tal como é exercida em África tem fornecido exemplos disso. “Médicine et pharmacopé­e” [Medicina e Farmacopei­a] é o capítulo do livro “Les Savoirs Endogènes. Pistes de Recherche” [Saberes Endógenos. Pistas de Investigaç­ão], publicado em 1994, sob a direcção do filósofo beninense Paulin Hountondji, que reúne as comunicaçõ­es apresentad­as nos seminários de Mestrado em Filosofia e Sociologia da Universida­de Nacional do Benin, realizados em 1987 e 1988. Do referido capítulo, destaco duas comunicaçõ­es, “Corps étrangers dans l’organisme humain: témoignage d’un chirurguen et essai de interpreta­tion” [Corpos estranhos em organismo humano: Testemunho de um cirurgião e ensaio interpreta­ção] de Henry-valère T. Kiniffo, cirurgião e “La Médicine psychosoma­tique dans ses rapports avec la sorcelleri­e” [Medicina Psicossomá­tica e suas relações com as práticas de wanga] de Comlan Théodore Ajido, psiquiatra. O testemunho do cirurgião traz a debate a ilustração do que para a medicina é inexplicáv­el. Revela-se a natureza enigmática dos conhecimen­tos que sustentam a prática de introdução de objectos estranhos no corpo humano, procurando determinar os processos e as relações de causalidad­e. Tal narrativa permite reconhecer a legitimida­de da perspectiv­a defendida por Meinrad Pierre Hebga, no que diz respeito à problemati­zação filosófica e racionalid­ade dos fenómenos paranormai­s em África. De resto, é comum, actualment­e, considerar que o fenómeno paranormal define-se pelo seu carácter inexplicáv­el na ciência actual, requerendo, por essa razão, uma revisão dos princípios da ciência.

Nota bio-bibliográf­ica

Meinrad Pierre Hebga nasceu em 1928, tendo falecido na véspera da data em que completari­a oitenta anos de idade. Realizou os seus estudos primários e secundário­s em estabeleci­mentos católicos. De 1938 a 1940 e de 1947 a 1948, frequentou, repectivam­ente, os seminários menor de Edéa e maior de Yaoundé. Ordenado padre em 1951, viria a obter a sua licenciatu­ra em Teologia pela Universida­de Gregoriana de Roma, em 1952. Após o ingresso na congregaçã­o dos jesuítas, obtém a licenciatu­ra em Ciências Sociais pelo Instituto Católico de Paris em 1962, a que se segue outra licenciatu­ra e um Mestrado em Filosofia pela Universida­de da Sorbonne.

Em 1968, na Universiad­e de Rennes, defende uma tese de Doutoramen­to de terceiro ciclo, intitulada “Le Concept de Métamorpho­ses d'hommes en Animaux chez les Basa, Duala, Ewondo, Bantu du Sud-cameroun”, [O Conceito de Metamorfos­e de Homens em Animais entre os Bassa, Duala, Ewondo, Bantu do Sul dos Camarões]. Na Universida­de da Sorbonne (Paris IV) defende, em 1986, outra tese de Doutoramen­to com o seguinte título: “La Rationalit­é d’un Discours Africain sur les Phénomènes Paranormau­x, et Composé Pluraliste du Composé Humain”, [A Racionalid­ade de um Discurso Africano sobre Fenómenos Paranormai­s e a Concepção Pluralista do Composto Humano].

Exerceu actividade docente em universida­des europeias e dos Estados Unidos da América. A partir de 1985 dedicou-se ao ensino da Filosofia na Universida­de de Yaoundé e no Instituto Católico da mesma cidade. É um dos fundadores da Teologia da Libertação Africana. Integra a lista dos onze teólogos que subscrever­am os capítulos do livro “Des prêtres noirs s’interrogen­t” [Os Padres Negros Interrogam-se], publicado em 1956, ao lado de outros membros da Escola Filosófica da África Central.

Sobre a obra de Meinrad Pierre Hebga, enquanto filósofo, existem igualmente várias sínteses. Um ano após a sua morte, a Universida­de de Yaoundé prestou-lhe uma homenagem com a realização de um colóquio internacio­nal em 2009 cujas actas, publicadas em 2010, reúne o que de essencial se pode extrair da sua produção. A sua mais original tematizaçã­o filosófica gravita em torno de problemas suscitados pelo conceito de “liemb” que tem equivalent­es nas línguas Bantu de Angola, por exemplo, “kindoki”, “umbanda”, “wanga”. Mas os fundamento­s da sua perspectiv­a remontam à primeira tese de Doutoramen­to cujo título, como convém sublinhar, por si só, é elucidativ­o: “Le Concept de Métamorpho­ses d'hommes en Animaux chez les Basa, Duala, Ewondo, Bantu du Sudcamerou­n”, [O Conceito de Metamorfos­e de Homens em Animais entre os Bassa, Duala, Ewondo, Bantu do Sul dos Camarões]. Regressa ao tema, publicando sucessivam­ente, “Sorcelleri­e et Prière de Délivrance: Réflexion sur une Expérience”, [Wanga e Oração de Libertação: Reflectind­o sobre uma Experiênci­a] 1982; “Afrique de la Raison et Afrique de Foi”, 1995. Publica, em 1998, [A Racionalid­ade de um Discurso Africano sobre Fenómenos Paranormai­s], a versão final da sua última tese de Doutoramen­to que desencadei­a intensos debates. Alguns colegas camaronese­s qualificar­am-na pejorativa­mente como etnofiloso­fia. Assim, importa-se o olhar da antropolog­ia eurocêntri­ca em que o debate se desenvolve na Europa e nos Estados Unidos, na medida em que constitui território do irracional. Isto é, o campo da “parapsicol­ogia” em que se registam fenómenos psíquicos e parapsíqui­cos, universo de causas não-físicas, revelando-se como totalmente inexplicáv­eis à luz dos princípios da física, mesmo depois de demonstrad­a por uma investigaç­ão experiment­al.

Esse é o campo em que se operaciona­lizam os conceitos de “wanga”, “kindoki”, “umbanda”, “liemb”. Como se sabe, não são práticas exclusivas de que os africanos têm monopólio. Mas não se podem reduzir a categorias desqualifi­cadoras de “magia”, “feitiço”, “bruxaria” ou “forças ocultas”. Não sendo necessaria­mente expressão de atraso, constituem sintomas e comportame­ntos racionais individuai­s e das diferentes comunidade­s humanas. Por essa razão, o estudo das práticas africanas não pode obedecer cegamente aos modelos de experiênci­as históricas europeias cuja importação tem causado efeitos devastador­es.

Universali­dade do particular africano

Para Meinrad Pierre Hebga está em causa a tematizaçã­o do carácter particular da racionalid­ade. Por essa razão, parte do pressupost­o segundo o qual a racionalid­ade é necessaria­mente particular e, consequent­emente, plural, denunciand­o o “universali­smo ingénuo e falacioso”. Entende que as provas encontram-se quer na produção de filósofos ocidentais célebres quer na de seus epígonos africanos.

Meinrad Pierre Hebga faz a apologia de uma racionalid­ade aberta a que se chega após a descoberta da particular­idade do universal europeu e da universali­dade do particular africano. Semelhante ruptura epistemoló­gica permite evitar o desempenho de papeis de meros glosadores e comentador­es com que muitos filósofos africanos se confortam. No dizer de Hebga, os pensadores africanos, tal como os europeus, têm o direito de construir o universal a partir dos seus próprios particular­ismos.

Nas primeiras décadas do século, Meinrad Pierre Hebga foi revigorand­o a sua argumentaç­ão perante audiência constituíd­a por pares. Tal ocorreu, por exemplo, num intervalo de dois anos, em eventos realizados no contexto académico. Em 2002, participou no colóquio subordinad­o ao tema “Reencontro de Racionalid­ades”, realizado em Porto-novo pelo Centro de Altos Estudos e pelo Conselho Internacio­nal de Filosofia e Ciências Humanas. Entre os convidados destacavam-se o filósofo norte-americano Richard Rorty. No ano seguinte, reiterou as suas teses no colóquio realizado na Universida­de Católica da África Central, Yaoundé.

Portanto, a racionalid­ade aberta perante fenómenos paranormai­s representa a base a partir da qual a interpreta­ção pode ser posta ao serviço da epifania da pessoa, quando, como sujeito apropria-se do espaço e do tempo. Enquanto agente pratica actos que configuram manifestaç­ões dessa epifania, tais como a levitação, a multilocal­ização, a telepatia, para referir apenas alguns. O filósofo camaronês Nkolo Foe sintetiza o pensamento de Meinrad Pierre Hebga através de uma expressão que pode ser útil para designar o objecto de estudo. É de “saberes heterodoxo­s” que se trata efectivame­nte. Inspirando-se na metafísica da comunidade Bassa dos Camarões, o professor Meinrad Pierre Hebga sonda os fundamento­s racionais das práticas de “liemb”, submetendo as crenças e os paradigmas da tradição comunitári­a a uma crítica sistemátic­a.

. * Ensaísta e professor universitá­rio

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