Acesso à justiça como argumento da construção da angolanidade
São conhecidas já há algum tempo (a partir dos anos 70) reflexões a respeito da relação entre direito e literatura. Sobretudo nos Estados Unidos, mas também, mais recentemente, na Europa, fala-se do movimento “Law and Literature”. Tal movimento busca observar a forma através da qual o direito foi e é representado nos textos ficcionais da literatura, por exemplo, em Kleist, Balzac ou Shakespeare. Outro tipo de reflexão, teoricamente mais avançada, é chamada de “Law as Literature”. Trata-se de uma reflexão sobre a prática do direito, quer dizer, sobre o modo no qual a argumentação literária e a argumentação jurídica têm algo em comum. Assim, há 30 anos se discute largamente que o direito e, sobretudo a argumentação judiciária, é um mecanismo argumentativo. As teorias da argumentação têm demonstrado que não se pode falar em uma linha directa entre a lei, os factos e os juízos. As interpretações estão sempre implicadas. Isso significa que o direito, de modo geral, e a decisão judiciária, de modo particular, são uma construção no mundo interpretativo e, portanto, o resultado de uma construção linguística.
Ora, se a causalidade jurídica pode ser desta forma descrita, é bastante plausível promover uma aproximação entre as construções jurídica e poética. Se for verdade que as técnicas são retóricas – e é justamente isso que significa a observação de que o direito tem a ver sempre e unicamente com as palavras – seja no nível normativo, seja no nível fáctico, parece justo que a literatura – que tem também somente a ver com as palavras – seja um campo de reflexão muito próximo do direito. A ser assim, diremos então que, ao tratar sobre a relação literatura e realidade, claro que desembocaremos na multidisciplinaridade colhida no ofício dos profissionais do direito e da literatura, apresentando deste modo duas vertentes, segundo a sua concepção. A primeira tem como base a tradição aristotélica que defende que a literatura tem como objectivo representar a realidade. Já a segunda, denominada como moderna, entende que a literatura é, apenas, literatura e, consequentemente, fala a si mesma (Compagnon, 1999, p. 97). Toda obra artística suplica por uma leitura interpretativa progressiva, pois é dela que reside a sua contínua sobrevivência. A produção literária morre quando sobre ela se esgotam as possibilidades de produção de novos significados. Sendo assim, o exercício que procuaremos trazer aqui visa, para além da interpretação, também a hermenéutica sobre o significado dos poemas de Agostinho Neto, pois “um poema que não signifique [alguma coisa] não é poema porque não é linguagem”. Procuraremos perceber como, partindo da reinvindicação da identidade linguístico-territorial, a escrita de Agostinho Neto perpetua a consciencialização cultural e a construção da angolanidade, convindo-lhe o argumento do acesso à justiça como direito fundamental e destacando a questão do uso da língua portuguesa, até então instrumento de dominação, a língua do outro, ou seja, a do colonizador, e passa a ser utilizada contra o próprio colonizador para assumir a fala e os cantos da cultura angolana, tornando-se, então, hibridizada e, consequentemente, ecoando outras vozes e, agora, não
A prática do Direito é argumentativa. Todos os envolvidos nessa prática compreendem que aquilo que ela permite ou exige depende da verdade de certas proposições que só adquirem sentido através e no âmbito dela mesma; a prática consiste, em grande parte, em mobilizar e discutir essas proposições. No presente texto, procuraremos perceber como, partindo da reinvindicação da identidade linguístico-territorial, a escrita de Agostinho Neto perpetua a consciencialização cultural e a construção da angolanidade, convindo-lhe o argumento do acesso à justiça como direito fundamental e destacando a questão do uso da língua portuguesa
mais, apenas, a do colonizador.
Direito Fundamental
O conceito de acesso à justiça experimentou, ao longo do tempo, uma série de transformações que evidenciaram a amplitude da sua definição. “A expressão “acesso à Justiça […] serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos”.
A investigação deste conceito merece amparo também na sua concepção histórica tendo em vista a evolução do seu significado. É cediço que por muito tempo a resolução dos conflitos não era amparada pelo Estado, “aqueles que se vissem envolvidos em qualquer tipo de conflito de interesses, deveriam resolvê-lo entre si e do modo que fosse possível, prevalecendo, na maioria das vezes, a força física em detrimento da razão jurídica”. Apesar de os conflitos contarem já, naquela altura, com a intervenção de uma terceira pessoa, eleita para solucionar o litígio, ela não exercia o princípio da neutralidade, ou seja, não era desinteressada e imparcial nos processos. É nessa conformidade que, como o poder punitivo não foi garantido ou exercido com seriedade, preservando os direitos individuais, garantindo também que tal poder fosse utilizado em ataques de real gravidade de uma forma controlada e limitada, numa altura em que a adopção dos princípios limitadores do poder de punir do Estado como, por exemplo, o princípio da intervenção mínima, ou também denominado da subsidiariedade ou da última ratio não se fazia sentir, não eram tidos em conta, em uma confrontação directa com a expressão poética de Agostinho Neto. Aqui partindo de uma leitura analítica centrada no livro “Obra Poética Completa”, particularmente em “Sagrada Esperança”, é notório ressaltar que a literatura de testemunho se encontra dotada de uma ética, uma estética e um papel quase que comprometidos histórica e politicamente. Visto que a voz lírica presente nos poemas ultrapassa os limites de uma realidade para se tornar outra realidade, a qual é, simultaneamente, uma instância criativa e testemunhal, principalmente para a história de Angola.
A literatura de testemunho
No poema intitulado “Para Além da Poesia”, Agostinho Neto parte das dores que o jugo do poder colonial produziu em África, reverberando de maneira incessante a cada verso, alongando o tempo histórico e trazendo a poética de um horror por meio de uma voz, do chamado herói anónimo. Vejamos a estrofe inicial do poema:
“Lá no horizonte / o fogo / e as silhuetas dos imbondeiros / de braços erguidos. / No ar o cheiro verde das palmeiras queimadas.” (Neto, p. 43).
O poeta Agostinho Neto promove uma figuração onde a natureza africana é uma das partes da simbiose das dores sofridas pelos africanos no processo de colonização. Nesse mesmo poema, é como se esse sofrimento, da natureza e do ser humano africano, fosse crescendo dentro de um horizonte em fogo. “No ar o cheiro do verde das palmeiras queimadas” é o paradoxo da dor e da nãodor; do antes e do depois. O ritmo imposto pelo poeta é de uma dor que cresce perante um céu que reflecte toda essa imensidão dolorida. A imagem final contém um fogo, simbolizando o poder dos colonizadores que consome, gradativamente, os seres e África: “a terra quente dos horizontes em fogo.” Assim, a justaposição ética e estética resulta em uma das principais características da instauração de outras realidades, fora e dentro de um real histórico, de uma literatura que não é puramente “uma imitação do mundo” (Seligmann-silva, 2003, p. 372). Mas é, para além disso, uma imitação ficcional de uma realidade histórica, política, cultural, social e discursiva. Dessa forma, a literatura de testemunho reorganiza maneiras de estar no mundo para resultar em outros mundos históricos possíveis, conjugando principalmente a memória e a escrita. É por isso que, no poema “Mussunda Amigo”, o eu lírico nos inquire: “E escrevo versos que tu não entendes // compreendes a minha angústia? (Neto, p. 65).
A inquirição em torno da angústia é a expressão poética que Agostinho Neto encontrou, nesse poema, para problematizar todo um testemunho histórico que vivenciou em Angola e depois na condição de sujeito colonial, dentro de Portugal, quando estudava medicina. Esse verso traz à tona a relação dos olhares do outro e de si mesmo; dos olhares dentro e de fora da espacialidade africana. Agostinho Neto traz à baila diversas questões que podem criticamente ser analisadas como elementos da literatura de testemunho, categorizando, por meio de uma voz lírica, o testemunho de um espaço, nesse caso a geografia angolana, socorrendo-se de uma estratégia discursiva e poética em que a rememoração do passado e a relação directa com o presente sintetizam-se na literatura de testemunho, ao passo que o ser africano, ora em um íntimo “eu”, ora em diversos personagens afectivos e simbolicamente “colectivos”, mantém relações intrínsecas com as representações simbólicas.
Identidade e território
Agostinho Neto apresenta uma descentralização do conhecimento preestabelecido pelo poder hegemónico, permitindo-nos assim olhar para a sua produção sem a dicotomia centro/periferia, apesar desta relação estar presente na sua poesia. Numa visão mais tradicional, o lugar, como o território e o próprio espaço, era associado à homogeneidade, ao imobilismo e à reacção, frente à multiplicidade, ao movimento e ao progresso ligados ao “tempo”. Uma consciência global do lugar, defendida por Massey, embora não possa ser vista como boa ou má em si mesma, é a evidência de que hoje não temos mais espaços fechados e identidades homogêneas e “autênticas”.
A esse respeito, fazendo uma releitura à obra de Agostinho Neto, veremos que a perspectiva de multiplicidade de construção e/ou apropriação do território já estava patente na sua poesia, pois para ele, nossas vidas estão impregnadas com influências provenientes de inúmeros outros espaços e escalas. A própria “singularidade” dos lugares (e dos territórios) advém sobretudo de uma específica combinação de influências diversas, que podem ser provenientes das mais diversas partes do mundo. (Haesbaert, 2005, p. 17).
No seu livro “A Renúncia Impossível” Agostinho Neto traz um poema cujo título é “Voz do Sangue”, onde deixa clara a identificação pela cor da pele e não pela nacionalidade: “Ó negro da África / negros de todo o mundo” (Neto, p. 130). Aqui, a expressão “de todo o mundo” direcciona-nos a um processo identitário que transcende o conceito de território material. Haesbert (2005, p. 1) explica que “desde a origem, o território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão próximo de terra – territorium, quanto de térreo - territor (terror/aterrorizar).[...]”. Portanto, território refere-se tanto ao espaço político e nacional quanto ao espaço cultural que rompe com as limitações físicas.
Há o encadeamento de versos ao longo de todo o poema e o eu-lírico se apresenta em primeira pessoa. Entretanto, é possível interpretar como a voz de todo o povo, já que o poeta frequentemente escreve expressando a vida do povo africano. A forma livre do poema pode ser um esboço da constituição da identidade, que não segue um padrão, mas que está a ser questionada.
Voltando ao livro “Sagrada Esperança”, ao poema que intitulou “Confiança”, o poeta que aqui preside indica a construção de identidade fundamentada a partir do entrelugar e coloca o mar como responsável pelas rupturas advindas do hibridismo: “O oceano separou-me de mim / enquanto me fui esquecendo nos séculos / e eis-me presente / reunindo em mim o espaço / condensando o tempo” (Neto, p. 52).
Afaladoeu-líricoexpõeosentimento de cisão com a identidade, comum ao povo africano, já que, a partir do contacto com a cultura europeia, as suas tradições são reprimidas, passando a um não-pertencimento. Isto é, o mar, que no poema é chamado de oceano, é o locus da transição de culturas e transforma o colonizado em um ser híbrido, porque o coloca em contacto com a cultura do colonizador. Para o angolano o mar é marcado por sofrimentos, por ser através dele que vieram os colonizadores, que partiram muitos africanos para a escravidão, para o trabalho de contrato (sem ter previsão de retorno aos seus) e por ser ainda o local onde muitas mortes ocorreram nestes trajectos. Compreende-se, a partir dessas considerações, que o oceano é tomado pelo eu-lírico como a matéria que rompe com o conhecido e como local de limite entre o velho e o novo. A ideia de passado e presente, isto é, de cronos, é traço marcante ao longo de todo o poema com termos como “séculos” (segundo verso), “presente” (terceiro verso), “tempo” (quinto verso) e história (sexto verso). Estando a maioria dos verbos no pretérito, é possível construir a ideia de uma narrativa poética.
Na primeira estrofe lê-se ainda que o eu-lírico foi esquecendo-se de si mesmo nos séculos, isto é, ao longo da história foi perdendo sua identidade, acontecimento evidente ao povo africano colonizado devido ao contacto com o europeu e, principalmente, à exploração do mesmo povo. Aponta ainda, que no presente está reunindo em si o espaço e condensando o tempo, indicando esse terceiro ser que resultou da fusão entre a cultura afro e a cultura europeia, o verbo “reunir” traz a ideia de unir de novo e junção: o que há no presente é a reunião de tempos distintos, ou seja, a mistura do que foi e do novo que o estrangeiro trouxe, por isso o “condensar” remetendo à fixação de tempos. A ambiguidade em sua identidade é reforçada na segunda estrofe: “Na minha história / existe o paradoxo do homem disperso”. É a reafirmação da necessidade que se faz no presente de reunir o que há de si. A terceira estrofe apresenta novamente paradoxos por meio das palavras “sorrisos” e “dor”, representando a situação do negro que é explorado e trabalha para a construção da riqueza europeia. Entendemos que a obra “Sagrada Esperança” (1985) representa um grito de uma nação em prol da libertação nacional e requer, por meio da literatura, a identidade africana. Agostinho Neto, como representante do povo angolano, luta não apenas enquanto militante na guerra para libertação de Angola, mas enquanto poeta, pois usa uma escrita engajada para convocar a sociedade à luta de libertação nacional e a consequente construção da angolanidade, pois pensar a literatura é ainda, e cada vez mais, pensar a questão da identidade. “A identidade de uma nação relaciona-se a uma série de elementos que vão da língua à tradição, passando pelos mitos, folclore, sistema de governo, sistema económico, crença, arte, literatura etc., passado e presente, não sendo, portanto, um fenómeno estanque e isolado.” (Tutikain, 2008, p. 53-54).
O excerto acima nos faz compreender que a identidade não é estanque, está em constante reestruturação, pois, ela é inerente ao homem. Assim, a busca da identidade angolana não foge à regra, tendo em vista que o colonizador, segundo Silva, tinha como objectivo não só dominar economicamente o país, mas também culturalmente, pois acreditava que “para dominar economicamente o povo, era necessário dominá-lo também culturalmente” (Silva, 2008, p. 32).
Em virtude da dominação cultural por parte do colonizador, a identidade angolana foi parcialmente afectada, daí que socorrendo-se a uma das suas hábeis armas de combate, Agostinho Neto utiliza a literatura para compartilhar a memória histórica e social, visando colectivizar as angústias e aspirações com a finalidade de criar uma condição aglutinadora - a nação - com identidades que não fosse a do colonizador.
Segundo José Carlos Venâncio, “por angolanidade entende-se o resultado da maneira específica de os intelectuais angolanos, a começar pelos ‘Novos Intelectuais’…, de os dirigentes políticos, do espaço geopolítico herdado do colonialismo e a consequente a predisposição de o transformarem em espaço nacional por meio da sua (des)alienação em relação às sociedades periféricas, às sociedades tradicionais” (Venâncio, 1992, p. 21). Já para o estudioso Luís Kandjimbo “a teorização proposta por este académico não exprime a profundidade da angolanidade”. Tendo como imperativo a revogação da ideia de bivalência cultural, uma vez que se destinaria à totalidade das comunidades humanas. Endossando a aceitação de uma heterogeneidade cultural para a sociedade angolana, para Kandjimbo “o embate conceitual travado entre a crioulidade e a angolanidade é revelador de um profundo problema no campo cultural angolano, produto das distorções das definições do que de facto seria o endógeno e o universal”, percepção que o faz corroborar com Víctor Kajibanga (2015), sendo que para este outro reputado acadêmico angolano “a aplicação dessa lógica sobre o âmbito cultural faria da literatura angolana senão ‘uma coloração local da literatura portuguesa’ (Kajibanga, 2015, p.9)”. Assim, corroborando a crítica de Kajibanga e propondo uma discussão teórica mais factual da literatura angolana das décadas dos anos 60 e 70, Kandjimbo afirma que a angolanidade seria marcada pela universalidade, uma vez que a pluralidade discursiva inerente a um conjunto totalizante se fazia necessária e representaria a “apologia da resistência” (Kajibanga, 2015, p.3) na medida em que buscaria a superação dos limites culturais impostos.
É nessa vertente que enquanto poeta, intelectual e político engajado com as causas sociais de seu país, Agostinho Neto sabia que o compromisso do escritor não é com ideologias políticas, mas com a liberdade e a construção de identidades que viriam a conformar a angolanidade. As acções de Agostinho Neto tanto em sua ideologia política, como escritor e como intelectual estão interligadas em um mesmo objectivo: a libertação nacional e a luta contra o colonizador. Impregnando em sua poesia o objectivo de transformar o negro em um ser de acção, tornar o colonizado um ser activo que luta em função de um ideal, ou seja, engajar-se na construção da angolanidade, o poeta reestrutura a ordem vigente imposta pelo opressor por meio da sua escrita, visando à conquista da liberdade nacional.
Quando certo autor toma o posicionamento de utilizar a sua escrita como uma arma, que tem como objectivo desestruturar a ordem social vigente, imposta pelo opressor, a ele podemos dar o título de escritor engajado. Guimarães (2010, p. 94) dialoga com o exposto e afirma que se fosse possível definir com apenas um vocábulo, o que cabe ao escritor engajado, seria incomodar. A sua escrita tem a finalidade de perturbar e, consequentemente, desvelar à sociedade a realidade que ela insiste em ignorar. Essa literatura tem por objectivo abalar as estruturas sociais, pois coloca a massa não apenas para reflectir e chegar a uma conclusão, mas impulsiona a sociedade à mudança de consciência e advogar a liberdade. Só por isso, o autor engajado possui papel extremamente importante na sociedade em que está inserido, pois busca trazer à luz situações de alienação em que o povo está inserido.
Abrindo o livro “Sagrada Esperança”
Com o poema que intitula “Adeus à hora da largada” Agostinho Neto busca estabelecer um diálogo com o povo angolano, ainda que utilizando o termo “Mãe” para representar África. Ao estabelecer uma conversa com a “Mãe”, o poeta estabelece uma conversa com o seu país, apontando algumas consequências da colonização. Considerada escrita engajada por ser, dentre outros factores, comprometida com o social e não expor, apenas, a ideologia do autor, mas representar os objectivos comuns de um país, a palavra, neste contexto, se mostra como um dispositivo poderoso, pois é por meio dela, também, que se trava uma luta contra o colonizador. Há o que podemos definir como um diálogo entre as acções de Agostinho Neto como militante pela independência de Angola e os textos poéticos por ele produzidos, ao mesmo tempo em que ele combate por meio de acções: foi guerrilheiro e lutou com armas em prol da independência de Angola, socorrendo-se da poesia para combater o colonizador, expondo as marcas e as chagas deixadas por este.
Há em seus poemas a incessante busca de denunciar os sofrimentos causados pela colonização portuguesa e exaltar a identidade africana, quando diz:
“Minha Mãe (todas as mães negras cujos filhos partiram) /tu me ensinastes a esperar /como esperaste nas horas difíceis
Mas a vida/ matou em mim essa mística esperança/ Eu já não espero/ sou aquele por quem se espera/ Sou eu minha Mãe/ a esperança somos nós os teus filhos/ partidos para uma fé que alimenta a vida.” (Neto, p. 25).
Conclusão
De acordo com alguns teóricos na área do Direito, os processos judiciais podem suscitar três tipos de questões: (i) de facto – que investigam a veracidade dos factos apresentados. As perguntas características desse tipo de questão seriam “o que aconteceu?” e “os factos relatados são verdadeiros?”; (ii) de direito – que investigam a existência ou não de lei para o caso concreto que se apresenta. As perguntas características seriam “existe lei?” e “qual é a lei?” e “a lei existente contempla o caso fáctico?”; e (iii) de moralidade política e fidelidade – as perguntas carcterísticas seriam “se não contempla ou é contrária ao caso fáctico, é injusta?” e “se é injusta, devem os juizes ignorar a lei e indemnizar, por exemplo?”. A principal dessas questões, para Dworkin, é a de direito. Esta se apresenta como a mais problemática no processo judicial, uma vez que nela estão embutidas a principais divergências entre advogados e juizes sobre o que eles pensam ser o direito. Perante esta realidade, corroboramos com Kandjimbo (2012) citado por Silva (2014, p. 23) que dialoga com a perspectiva de que a escrita de Agostinho Neto se estrutura em prol do outro, do povo africano:
“Uma leitura global da obra de Agostinho Neto, compreendendo a poesia e os textos de carácter ensaístico sobre os quais discorremos rapidamente e que ainda se encontram dispersos por várias publicações, há-de propiciar a oportunidade de perscrutar os arcanos da personalidade de um homem de letras e de um intelectual. O homem de letras é o poeta da ‘Sagrada Esperança’ e da ‘Renúncia Impossível’. O intelectual é o sujeito que enuncia o discurso que o coloca ao lado dos pobres, dos fracos, dos humilhados de todo o mundo, universalizando a trágica condição do Homem Africano durante séculos” (Kandjimbo, 2012, p.13) (grifos nossos).
De acordo com o exposto por Kandjimbo, Agostinho Neto colocase, por meio de seu discurso/poemas, lado a lado com as pessoas que vivem à margem da sociedade, ou seja, o homem africano que carrega consigo o estigma da subjugação, imposto pelo colonizador. É nessa vertente que o poema Mussunda Amigo, que não deixa de ser um dos mais emblemáticos escritos poéticos de Agostinho Neto, traz em si alguns aspectos importantes para compreendermos uma literatura verdadeiramente testemunhal. Entre eles, há a marca preponderante da junção colectiva de um eu e de outro, figurado através do personagem Mussunda, para resultar, no final do poema, em um nós. Este é reforçado pelo somos, que, por sua vez, é marcado por várias implicações, entre elas: a reelaboração da formação de uma consciência histórica; o mesclar de um hibridismo linguístico, quando o poeta, como é próprio de sua prática, circunscreve cantos da cultura angolana no corpo do poema; a presença marcante de interrogações que corroboram a problematização do passado histórico; a rememoração e o ritmo final permeado por uma esperança. Além do mais, o poeta reinvoca o passado histórico, como é possível percebemos nessa estrofe do poema:
“Lembras-te? // Da tristeza daqueles tempos / em que íamos / comprar mangas / e lastimar o destino / das mulheres da Funda / dos nossos cantos de lamentos / dos nossos desesperos / e das nuvens dos nossos olhos / Lembras-te?” (Neto, 1976, p. 17).
No mesmo poema, Agostinho Neto traz, para o presente, uma insistente esperança. É visível que o poeta opera dentro de um pragmatismo a que alude Benjamin (2012) ao ressaltar que o texto literário deve apresentar tenuemente uma tendência política ligada a uma tendência literária, ambas se complementando, para além de incorporar a determinante substância de consciencialização do homem, muitas vezes esse homem que é escritor/sujeito cantante, perante as atrocidades impostas pelo colonialismo:
“Todos nós, creio que concordamos em que o escritor se deve situar na sua época e exercer a sua função de formador de consciência, que seja agente activo de aperfeiçoamento da humanidade. Alguns dos nossos escritores ainda choram quando é altura de cantar, embora por vezes, o choro também seja canto e a lágrima, alegria. Mas saber cantar é por vezes mais difícil do que saber chorar, porque o futuro quando se transforma em presente, não oferece a cada um o seu sonho.” (In, Sobre a literatura, Neto, p. 10/11).
Faz-se perceptível que o enquadramento intelectual, social, político e, sobretudo profético, patente na expressão poética de Agostinho Neto, traça uma simbologia de um panorama revolucionário, não no nível das convicções, superficial, mas dentro de uma atitude que se volta visivelmente para os tempos presente e futuro. Assim, a voz lírica não desiste da possibilidade de haver qualquer resquício de esperança nos caminhos
“largos para os horizontes fechados”.