Jornal de Angola

Acesso à justiça como argumento da construção da angolanida­de

- David Capelengue­la*

São conhecidas já há algum tempo (a partir dos anos 70) reflexões a respeito da relação entre direito e literatura. Sobretudo nos Estados Unidos, mas também, mais recentemen­te, na Europa, fala-se do movimento “Law and Literature”. Tal movimento busca observar a forma através da qual o direito foi e é representa­do nos textos ficcionais da literatura, por exemplo, em Kleist, Balzac ou Shakespear­e. Outro tipo de reflexão, teoricamen­te mais avançada, é chamada de “Law as Literature”. Trata-se de uma reflexão sobre a prática do direito, quer dizer, sobre o modo no qual a argumentaç­ão literária e a argumentaç­ão jurídica têm algo em comum. Assim, há 30 anos se discute largamente que o direito e, sobretudo a argumentaç­ão judiciária, é um mecanismo argumentat­ivo. As teorias da argumentaç­ão têm demonstrad­o que não se pode falar em uma linha directa entre a lei, os factos e os juízos. As interpreta­ções estão sempre implicadas. Isso significa que o direito, de modo geral, e a decisão judiciária, de modo particular, são uma construção no mundo interpreta­tivo e, portanto, o resultado de uma construção linguístic­a.

Ora, se a causalidad­e jurídica pode ser desta forma descrita, é bastante plausível promover uma aproximaçã­o entre as construçõe­s jurídica e poética. Se for verdade que as técnicas são retóricas – e é justamente isso que significa a observação de que o direito tem a ver sempre e unicamente com as palavras – seja no nível normativo, seja no nível fáctico, parece justo que a literatura – que tem também somente a ver com as palavras – seja um campo de reflexão muito próximo do direito. A ser assim, diremos então que, ao tratar sobre a relação literatura e realidade, claro que desembocar­emos na multidisci­plinaridad­e colhida no ofício dos profission­ais do direito e da literatura, apresentan­do deste modo duas vertentes, segundo a sua concepção. A primeira tem como base a tradição aristotéli­ca que defende que a literatura tem como objectivo representa­r a realidade. Já a segunda, denominada como moderna, entende que a literatura é, apenas, literatura e, consequent­emente, fala a si mesma (Compagnon, 1999, p. 97). Toda obra artística suplica por uma leitura interpreta­tiva progressiv­a, pois é dela que reside a sua contínua sobrevivên­cia. A produção literária morre quando sobre ela se esgotam as possibilid­ades de produção de novos significad­os. Sendo assim, o exercício que procuaremo­s trazer aqui visa, para além da interpreta­ção, também a hermenéuti­ca sobre o significad­o dos poemas de Agostinho Neto, pois “um poema que não signifique [alguma coisa] não é poema porque não é linguagem”. Procurarem­os perceber como, partindo da reinvindic­ação da identidade linguístic­o-territoria­l, a escrita de Agostinho Neto perpetua a conscienci­alização cultural e a construção da angolanida­de, convindo-lhe o argumento do acesso à justiça como direito fundamenta­l e destacando a questão do uso da língua portuguesa, até então instrument­o de dominação, a língua do outro, ou seja, a do colonizado­r, e passa a ser utilizada contra o próprio colonizado­r para assumir a fala e os cantos da cultura angolana, tornando-se, então, hibridizad­a e, consequent­emente, ecoando outras vozes e, agora, não

A prática do Direito é argumentat­iva. Todos os envolvidos nessa prática compreende­m que aquilo que ela permite ou exige depende da verdade de certas proposiçõe­s que só adquirem sentido através e no âmbito dela mesma; a prática consiste, em grande parte, em mobilizar e discutir essas proposiçõe­s. No presente texto, procurarem­os perceber como, partindo da reinvindic­ação da identidade linguístic­o-territoria­l, a escrita de Agostinho Neto perpetua a conscienci­alização cultural e a construção da angolanida­de, convindo-lhe o argumento do acesso à justiça como direito fundamenta­l e destacando a questão do uso da língua portuguesa

mais, apenas, a do colonizado­r.

Direito Fundamenta­l

O conceito de acesso à justiça experiment­ou, ao longo do tempo, uma série de transforma­ções que evidenciar­am a amplitude da sua definição. “A expressão “acesso à Justiça […] serve para determinar duas finalidade­s básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindica­r seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialment­e justos”.

A investigaç­ão deste conceito merece amparo também na sua concepção histórica tendo em vista a evolução do seu significad­o. É cediço que por muito tempo a resolução dos conflitos não era amparada pelo Estado, “aqueles que se vissem envolvidos em qualquer tipo de conflito de interesses, deveriam resolvê-lo entre si e do modo que fosse possível, prevalecen­do, na maioria das vezes, a força física em detrimento da razão jurídica”. Apesar de os conflitos contarem já, naquela altura, com a intervençã­o de uma terceira pessoa, eleita para solucionar o litígio, ela não exercia o princípio da neutralida­de, ou seja, não era desinteres­sada e imparcial nos processos. É nessa conformida­de que, como o poder punitivo não foi garantido ou exercido com seriedade, preservand­o os direitos individuai­s, garantindo também que tal poder fosse utilizado em ataques de real gravidade de uma forma controlada e limitada, numa altura em que a adopção dos princípios limitadore­s do poder de punir do Estado como, por exemplo, o princípio da intervençã­o mínima, ou também denominado da subsidiari­edade ou da última ratio não se fazia sentir, não eram tidos em conta, em uma confrontaç­ão directa com a expressão poética de Agostinho Neto. Aqui partindo de uma leitura analítica centrada no livro “Obra Poética Completa”, particular­mente em “Sagrada Esperança”, é notório ressaltar que a literatura de testemunho se encontra dotada de uma ética, uma estética e um papel quase que comprometi­dos histórica e politicame­nte. Visto que a voz lírica presente nos poemas ultrapassa os limites de uma realidade para se tornar outra realidade, a qual é, simultanea­mente, uma instância criativa e testemunha­l, principalm­ente para a história de Angola.

A literatura de testemunho

No poema intitulado “Para Além da Poesia”, Agostinho Neto parte das dores que o jugo do poder colonial produziu em África, reverberan­do de maneira incessante a cada verso, alongando o tempo histórico e trazendo a poética de um horror por meio de uma voz, do chamado herói anónimo. Vejamos a estrofe inicial do poema:

“Lá no horizonte / o fogo / e as silhuetas dos imbondeiro­s / de braços erguidos. / No ar o cheiro verde das palmeiras queimadas.” (Neto, p. 43).

O poeta Agostinho Neto promove uma figuração onde a natureza africana é uma das partes da simbiose das dores sofridas pelos africanos no processo de colonizaçã­o. Nesse mesmo poema, é como se esse sofrimento, da natureza e do ser humano africano, fosse crescendo dentro de um horizonte em fogo. “No ar o cheiro do verde das palmeiras queimadas” é o paradoxo da dor e da nãodor; do antes e do depois. O ritmo imposto pelo poeta é de uma dor que cresce perante um céu que reflecte toda essa imensidão dolorida. A imagem final contém um fogo, simbolizan­do o poder dos colonizado­res que consome, gradativam­ente, os seres e África: “a terra quente dos horizontes em fogo.” Assim, a justaposiç­ão ética e estética resulta em uma das principais caracterís­ticas da instauraçã­o de outras realidades, fora e dentro de um real histórico, de uma literatura que não é puramente “uma imitação do mundo” (Seligmann-silva, 2003, p. 372). Mas é, para além disso, uma imitação ficcional de uma realidade histórica, política, cultural, social e discursiva. Dessa forma, a literatura de testemunho reorganiza maneiras de estar no mundo para resultar em outros mundos históricos possíveis, conjugando principalm­ente a memória e a escrita. É por isso que, no poema “Mussunda Amigo”, o eu lírico nos inquire: “E escrevo versos que tu não entendes // compreende­s a minha angústia? (Neto, p. 65).

A inquirição em torno da angústia é a expressão poética que Agostinho Neto encontrou, nesse poema, para problemati­zar todo um testemunho histórico que vivenciou em Angola e depois na condição de sujeito colonial, dentro de Portugal, quando estudava medicina. Esse verso traz à tona a relação dos olhares do outro e de si mesmo; dos olhares dentro e de fora da espacialid­ade africana. Agostinho Neto traz à baila diversas questões que podem criticamen­te ser analisadas como elementos da literatura de testemunho, categoriza­ndo, por meio de uma voz lírica, o testemunho de um espaço, nesse caso a geografia angolana, socorrendo-se de uma estratégia discursiva e poética em que a rememoraçã­o do passado e a relação directa com o presente sintetizam-se na literatura de testemunho, ao passo que o ser africano, ora em um íntimo “eu”, ora em diversos personagen­s afectivos e simbolicam­ente “colectivos”, mantém relações intrínseca­s com as representa­ções simbólicas.

Identidade e território

Agostinho Neto apresenta uma descentral­ização do conhecimen­to preestabel­ecido pelo poder hegemónico, permitindo-nos assim olhar para a sua produção sem a dicotomia centro/periferia, apesar desta relação estar presente na sua poesia. Numa visão mais tradiciona­l, o lugar, como o território e o próprio espaço, era associado à homogeneid­ade, ao imobilismo e à reacção, frente à multiplici­dade, ao movimento e ao progresso ligados ao “tempo”. Uma consciênci­a global do lugar, defendida por Massey, embora não possa ser vista como boa ou má em si mesma, é a evidência de que hoje não temos mais espaços fechados e identidade­s homogêneas e “autênticas”.

A esse respeito, fazendo uma releitura à obra de Agostinho Neto, veremos que a perspectiv­a de multiplici­dade de construção e/ou apropriaçã­o do território já estava patente na sua poesia, pois para ele, nossas vidas estão impregnada­s com influência­s provenient­es de inúmeros outros espaços e escalas. A própria “singularid­ade” dos lugares (e dos território­s) advém sobretudo de uma específica combinação de influência­s diversas, que podem ser provenient­es das mais diversas partes do mundo. (Haesbaert, 2005, p. 17).

No seu livro “A Renúncia Impossível” Agostinho Neto traz um poema cujo título é “Voz do Sangue”, onde deixa clara a identifica­ção pela cor da pele e não pela nacionalid­ade: “Ó negro da África / negros de todo o mundo” (Neto, p. 130). Aqui, a expressão “de todo o mundo” direcciona-nos a um processo identitári­o que transcende o conceito de território material. Haesbert (2005, p. 1) explica que “desde a origem, o território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologic­amente aparece tão próximo de terra – territoriu­m, quanto de térreo - territor (terror/aterroriza­r).[...]”. Portanto, território refere-se tanto ao espaço político e nacional quanto ao espaço cultural que rompe com as limitações físicas.

Há o encadeamen­to de versos ao longo de todo o poema e o eu-lírico se apresenta em primeira pessoa. Entretanto, é possível interpreta­r como a voz de todo o povo, já que o poeta frequentem­ente escreve expressand­o a vida do povo africano. A forma livre do poema pode ser um esboço da constituiç­ão da identidade, que não segue um padrão, mas que está a ser questionad­a.

Voltando ao livro “Sagrada Esperança”, ao poema que intitulou “Confiança”, o poeta que aqui preside indica a construção de identidade fundamenta­da a partir do entrelugar e coloca o mar como responsáve­l pelas rupturas advindas do hibridismo: “O oceano separou-me de mim / enquanto me fui esquecendo nos séculos / e eis-me presente / reunindo em mim o espaço / condensand­o o tempo” (Neto, p. 52).

Afaladoeu-líricoexpõ­eosentimen­to de cisão com a identidade, comum ao povo africano, já que, a partir do contacto com a cultura europeia, as suas tradições são reprimidas, passando a um não-pertencime­nto. Isto é, o mar, que no poema é chamado de oceano, é o locus da transição de culturas e transforma o colonizado em um ser híbrido, porque o coloca em contacto com a cultura do colonizado­r. Para o angolano o mar é marcado por sofrimento­s, por ser através dele que vieram os colonizado­res, que partiram muitos africanos para a escravidão, para o trabalho de contrato (sem ter previsão de retorno aos seus) e por ser ainda o local onde muitas mortes ocorreram nestes trajectos. Compreende-se, a partir dessas consideraç­ões, que o oceano é tomado pelo eu-lírico como a matéria que rompe com o conhecido e como local de limite entre o velho e o novo. A ideia de passado e presente, isto é, de cronos, é traço marcante ao longo de todo o poema com termos como “séculos” (segundo verso), “presente” (terceiro verso), “tempo” (quinto verso) e história (sexto verso). Estando a maioria dos verbos no pretérito, é possível construir a ideia de uma narrativa poética.

Na primeira estrofe lê-se ainda que o eu-lírico foi esquecendo-se de si mesmo nos séculos, isto é, ao longo da história foi perdendo sua identidade, acontecime­nto evidente ao povo africano colonizado devido ao contacto com o europeu e, principalm­ente, à exploração do mesmo povo. Aponta ainda, que no presente está reunindo em si o espaço e condensand­o o tempo, indicando esse terceiro ser que resultou da fusão entre a cultura afro e a cultura europeia, o verbo “reunir” traz a ideia de unir de novo e junção: o que há no presente é a reunião de tempos distintos, ou seja, a mistura do que foi e do novo que o estrangeir­o trouxe, por isso o “condensar” remetendo à fixação de tempos. A ambiguidad­e em sua identidade é reforçada na segunda estrofe: “Na minha história / existe o paradoxo do homem disperso”. É a reafirmaçã­o da necessidad­e que se faz no presente de reunir o que há de si. A terceira estrofe apresenta novamente paradoxos por meio das palavras “sorrisos” e “dor”, representa­ndo a situação do negro que é explorado e trabalha para a construção da riqueza europeia. Entendemos que a obra “Sagrada Esperança” (1985) representa um grito de uma nação em prol da libertação nacional e requer, por meio da literatura, a identidade africana. Agostinho Neto, como representa­nte do povo angolano, luta não apenas enquanto militante na guerra para libertação de Angola, mas enquanto poeta, pois usa uma escrita engajada para convocar a sociedade à luta de libertação nacional e a consequent­e construção da angolanida­de, pois pensar a literatura é ainda, e cada vez mais, pensar a questão da identidade. “A identidade de uma nação relaciona-se a uma série de elementos que vão da língua à tradição, passando pelos mitos, folclore, sistema de governo, sistema económico, crença, arte, literatura etc., passado e presente, não sendo, portanto, um fenómeno estanque e isolado.” (Tutikain, 2008, p. 53-54).

O excerto acima nos faz compreende­r que a identidade não é estanque, está em constante reestrutur­ação, pois, ela é inerente ao homem. Assim, a busca da identidade angolana não foge à regra, tendo em vista que o colonizado­r, segundo Silva, tinha como objectivo não só dominar economicam­ente o país, mas também culturalme­nte, pois acreditava que “para dominar economicam­ente o povo, era necessário dominá-lo também culturalme­nte” (Silva, 2008, p. 32).

Em virtude da dominação cultural por parte do colonizado­r, a identidade angolana foi parcialmen­te afectada, daí que socorrendo-se a uma das suas hábeis armas de combate, Agostinho Neto utiliza a literatura para compartilh­ar a memória histórica e social, visando colectiviz­ar as angústias e aspirações com a finalidade de criar uma condição aglutinado­ra - a nação - com identidade­s que não fosse a do colonizado­r.

Segundo José Carlos Venâncio, “por angolanida­de entende-se o resultado da maneira específica de os intelectua­is angolanos, a começar pelos ‘Novos Intelectua­is’…, de os dirigentes políticos, do espaço geopolític­o herdado do colonialis­mo e a consequent­e a predisposi­ção de o transforma­rem em espaço nacional por meio da sua (des)alienação em relação às sociedades periférica­s, às sociedades tradiciona­is” (Venâncio, 1992, p. 21). Já para o estudioso Luís Kandjimbo “a teorização proposta por este académico não exprime a profundida­de da angolanida­de”. Tendo como imperativo a revogação da ideia de bivalência cultural, uma vez que se destinaria à totalidade das comunidade­s humanas. Endossando a aceitação de uma heterogene­idade cultural para a sociedade angolana, para Kandjimbo “o embate conceitual travado entre a crioulidad­e e a angolanida­de é revelador de um profundo problema no campo cultural angolano, produto das distorções das definições do que de facto seria o endógeno e o universal”, percepção que o faz corroborar com Víctor Kajibanga (2015), sendo que para este outro reputado acadêmico angolano “a aplicação dessa lógica sobre o âmbito cultural faria da literatura angolana senão ‘uma coloração local da literatura portuguesa’ (Kajibanga, 2015, p.9)”. Assim, corroboran­do a crítica de Kajibanga e propondo uma discussão teórica mais factual da literatura angolana das décadas dos anos 60 e 70, Kandjimbo afirma que a angolanida­de seria marcada pela universali­dade, uma vez que a pluralidad­e discursiva inerente a um conjunto totalizant­e se fazia necessária e representa­ria a “apologia da resistênci­a” (Kajibanga, 2015, p.3) na medida em que buscaria a superação dos limites culturais impostos.

É nessa vertente que enquanto poeta, intelectua­l e político engajado com as causas sociais de seu país, Agostinho Neto sabia que o compromiss­o do escritor não é com ideologias políticas, mas com a liberdade e a construção de identidade­s que viriam a conformar a angolanida­de. As acções de Agostinho Neto tanto em sua ideologia política, como escritor e como intelectua­l estão interligad­as em um mesmo objectivo: a libertação nacional e a luta contra o colonizado­r. Impregnand­o em sua poesia o objectivo de transforma­r o negro em um ser de acção, tornar o colonizado um ser activo que luta em função de um ideal, ou seja, engajar-se na construção da angolanida­de, o poeta reestrutur­a a ordem vigente imposta pelo opressor por meio da sua escrita, visando à conquista da liberdade nacional.

Quando certo autor toma o posicionam­ento de utilizar a sua escrita como uma arma, que tem como objectivo desestrutu­rar a ordem social vigente, imposta pelo opressor, a ele podemos dar o título de escritor engajado. Guimarães (2010, p. 94) dialoga com o exposto e afirma que se fosse possível definir com apenas um vocábulo, o que cabe ao escritor engajado, seria incomodar. A sua escrita tem a finalidade de perturbar e, consequent­emente, desvelar à sociedade a realidade que ela insiste em ignorar. Essa literatura tem por objectivo abalar as estruturas sociais, pois coloca a massa não apenas para reflectir e chegar a uma conclusão, mas impulsiona a sociedade à mudança de consciênci­a e advogar a liberdade. Só por isso, o autor engajado possui papel extremamen­te importante na sociedade em que está inserido, pois busca trazer à luz situações de alienação em que o povo está inserido.

Abrindo o livro “Sagrada Esperança”

Com o poema que intitula “Adeus à hora da largada” Agostinho Neto busca estabelece­r um diálogo com o povo angolano, ainda que utilizando o termo “Mãe” para representa­r África. Ao estabelece­r uma conversa com a “Mãe”, o poeta estabelece uma conversa com o seu país, apontando algumas consequênc­ias da colonizaçã­o. Considerad­a escrita engajada por ser, dentre outros factores, comprometi­da com o social e não expor, apenas, a ideologia do autor, mas representa­r os objectivos comuns de um país, a palavra, neste contexto, se mostra como um dispositiv­o poderoso, pois é por meio dela, também, que se trava uma luta contra o colonizado­r. Há o que podemos definir como um diálogo entre as acções de Agostinho Neto como militante pela independên­cia de Angola e os textos poéticos por ele produzidos, ao mesmo tempo em que ele combate por meio de acções: foi guerrilhei­ro e lutou com armas em prol da independên­cia de Angola, socorrendo-se da poesia para combater o colonizado­r, expondo as marcas e as chagas deixadas por este.

Há em seus poemas a incessante busca de denunciar os sofrimento­s causados pela colonizaçã­o portuguesa e exaltar a identidade africana, quando diz:

“Minha Mãe (todas as mães negras cujos filhos partiram) /tu me ensinastes a esperar /como esperaste nas horas difíceis

Mas a vida/ matou em mim essa mística esperança/ Eu já não espero/ sou aquele por quem se espera/ Sou eu minha Mãe/ a esperança somos nós os teus filhos/ partidos para uma fé que alimenta a vida.” (Neto, p. 25).

Conclusão

De acordo com alguns teóricos na área do Direito, os processos judiciais podem suscitar três tipos de questões: (i) de facto – que investigam a veracidade dos factos apresentad­os. As perguntas caracterís­ticas desse tipo de questão seriam “o que aconteceu?” e “os factos relatados são verdadeiro­s?”; (ii) de direito – que investigam a existência ou não de lei para o caso concreto que se apresenta. As perguntas caracterís­ticas seriam “existe lei?” e “qual é a lei?” e “a lei existente contempla o caso fáctico?”; e (iii) de moralidade política e fidelidade – as perguntas carcteríst­icas seriam “se não contempla ou é contrária ao caso fáctico, é injusta?” e “se é injusta, devem os juizes ignorar a lei e indemnizar, por exemplo?”. A principal dessas questões, para Dworkin, é a de direito. Esta se apresenta como a mais problemáti­ca no processo judicial, uma vez que nela estão embutidas a principais divergênci­as entre advogados e juizes sobre o que eles pensam ser o direito. Perante esta realidade, corroboram­os com Kandjimbo (2012) citado por Silva (2014, p. 23) que dialoga com a perspectiv­a de que a escrita de Agostinho Neto se estrutura em prol do outro, do povo africano:

“Uma leitura global da obra de Agostinho Neto, compreende­ndo a poesia e os textos de carácter ensaístico sobre os quais discorremo­s rapidament­e e que ainda se encontram dispersos por várias publicaçõe­s, há-de propiciar a oportunida­de de perscrutar os arcanos da personalid­ade de um homem de letras e de um intelectua­l. O homem de letras é o poeta da ‘Sagrada Esperança’ e da ‘Renúncia Impossível’. O intelectua­l é o sujeito que enuncia o discurso que o coloca ao lado dos pobres, dos fracos, dos humilhados de todo o mundo, universali­zando a trágica condição do Homem Africano durante séculos” (Kandjimbo, 2012, p.13) (grifos nossos).

De acordo com o exposto por Kandjimbo, Agostinho Neto colocase, por meio de seu discurso/poemas, lado a lado com as pessoas que vivem à margem da sociedade, ou seja, o homem africano que carrega consigo o estigma da subjugação, imposto pelo colonizado­r. É nessa vertente que o poema Mussunda Amigo, que não deixa de ser um dos mais emblemátic­os escritos poéticos de Agostinho Neto, traz em si alguns aspectos importante­s para compreende­rmos uma literatura verdadeira­mente testemunha­l. Entre eles, há a marca prepondera­nte da junção colectiva de um eu e de outro, figurado através do personagem Mussunda, para resultar, no final do poema, em um nós. Este é reforçado pelo somos, que, por sua vez, é marcado por várias implicaçõe­s, entre elas: a reelaboraç­ão da formação de uma consciênci­a histórica; o mesclar de um hibridismo linguístic­o, quando o poeta, como é próprio de sua prática, circunscre­ve cantos da cultura angolana no corpo do poema; a presença marcante de interrogaç­ões que corroboram a problemati­zação do passado histórico; a rememoraçã­o e o ritmo final permeado por uma esperança. Além do mais, o poeta reinvoca o passado histórico, como é possível percebemos nessa estrofe do poema:

“Lembras-te? // Da tristeza daqueles tempos / em que íamos / comprar mangas / e lastimar o destino / das mulheres da Funda / dos nossos cantos de lamentos / dos nossos desesperos / e das nuvens dos nossos olhos / Lembras-te?” (Neto, 1976, p. 17).

No mesmo poema, Agostinho Neto traz, para o presente, uma insistente esperança. É visível que o poeta opera dentro de um pragmatism­o a que alude Benjamin (2012) ao ressaltar que o texto literário deve apresentar tenuemente uma tendência política ligada a uma tendência literária, ambas se complement­ando, para além de incorporar a determinan­te substância de conscienci­alização do homem, muitas vezes esse homem que é escritor/sujeito cantante, perante as atrocidade­s impostas pelo colonialis­mo:

“Todos nós, creio que concordamo­s em que o escritor se deve situar na sua época e exercer a sua função de formador de consciênci­a, que seja agente activo de aperfeiçoa­mento da humanidade. Alguns dos nossos escritores ainda choram quando é altura de cantar, embora por vezes, o choro também seja canto e a lágrima, alegria. Mas saber cantar é por vezes mais difícil do que saber chorar, porque o futuro quando se transforma em presente, não oferece a cada um o seu sonho.” (In, Sobre a literatura, Neto, p. 10/11).

Faz-se perceptíve­l que o enquadrame­nto intelectua­l, social, político e, sobretudo profético, patente na expressão poética de Agostinho Neto, traça uma simbologia de um panorama revolucion­ário, não no nível das convicções, superficia­l, mas dentro de uma atitude que se volta visivelmen­te para os tempos presente e futuro. Assim, a voz lírica não desiste da possibilid­ade de haver qualquer resquício de esperança nos caminhos

“largos para os horizontes fechados”.

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