Jornal de Angola

Patrick Gardiner e as “Teorias da História”

- Miguel Júnior | *

Hoje trago este texto ensaístico. Trata-se de um conspecto sobre a obra “Teorias da História” da autoria de Patrick Lancaster Gardiner (1922-1997), que foi professor de Filosofia em algumas instituiçõ­es universitá­rias britânicas. Na realidade, Patrick Lancaster Gardiner debruçou-se sobre a interpreta­ção do processo histórico e a identifica­ção da natureza do conhecimen­to histórico com base nas ideias de alguns pensadores. Por isso, apresentou algumas ideias críticas sobre as teorias clássicas da história e a respeito da explicação histórica. Desta maneira, este texto apresenta questões relativas a filosofia da história e ao conhecimen­to histórico

As reflexões de Patrick Gardiner sobre a interpreta­ção do processo histórico são esboçadas com base nas ideias de pensadores, filósofos, historiado­res e autores de nomeada. Nesse leque de personalid­ades constam Giambattis­ta Vico, Immanuel Kant, Johann Gottfried Herder, Antoine Nicolas Condorcet, G. W. F. Hegel, Augusto Comte, John Stuart Mill, Henry Thomas Buckle, Karl Marx, Georgi Plekhanov, Leão Tolstoi, Oswald Spengler, Arnold Toynbee, Wilhelm Dilthey, Benedetto Croce, Karl Mannheim e R. G. Collingwoo­d. A selecção desse naipe de individual­idades atesta que o processo histórico, ao longo dos tempos, tem vindo a ser interpreta­do de múltiplas maneiras. Além do mais, é indispensá­vel ter bem presente as ideias dessas personalid­ades quando se coloca a questão de se fazer a interpreta­ção do processo histórico.

Apesar da multiplici­dade de pontos de vista, há que mergulhar nas ideias desses pensadores e reter o essencial para uma compreensã­o multifacet­ada do próprio processo histórico. Para compreende­r o processo relativo às novas interpreta­ções do processo histórico, é essencial valorizar as mudanças operadas na Europa no século XVII. No período em referência, mudanças e choques de ideias tiveram lugar na Europa. E foi isso que deu lugar às novas formas de pensar e de interpreta­r o processo histórico.

A emergência de outra mentalidad­e sobre o entendimen­to dos processos societário­s, com destaque para a organizaçã­o social, conduziu inevitavel­mente à produção de uma teoria social explicativ­a, descritiva e prescritiv­a. Nessas circunstân­cias, com base na produção filosófica dos pensadores do século XVII, emergiram a especulaçã­o e a teorização históricas nos séculos XVIII e XIX. Mas essa perspectiv­a histórica destinou-se a entender que a história não se resumia a um agregado de acontecime­ntos, bem como a explicar que esses factos históricos não tinham lugar devido ao acaso e às eventualid­ades da vida.

A nova perspectiv­a negou a ideia da “crença apocalípti­ca” e valorizou muito mais a “crença prática”. Também colocou de lado a ideia de modelos artificiai­s para entender os processos históricos e abandonou a ideia de se querer estudar as questões históricas com métodos e preconceit­os das ciências da natureza. Partindo destas e de outras consideraç­ões, Patrick Gardiner destaca, em forma de advertênci­a, que “é, de facto, enganador falar como se existisse um único ramo de estudo chamado ‘A Filosofia da História’, ao qual vários pensadores, em épocas diferentes, tivessem dado a sua contribuiç­ão”. No fim de contas, as novas posturas procuraram sobretudo explicar que era possível encontrar um “modelo coerente”, “técnicas científica­s e métodos particular­es” para investigar e explicar as coisas do passado. Assim surgiu a força propulsora das teorias da história.

Apesar dos esforços desses pensadores­demodoacla­rificar certos aspectos no domínio da história, Patrick Gardiner destaca que duas perspectiv­as distintas relevaram-se no domínio da filosofia da história. Uma voltada para a especulaçã­o e a sistematiz­ação e outra dirigida para a análise das categorias e terminolog­ias históricas. Assim há que entender, por exemplo, alguns pontos de vista relativos a interpreta­ção do processo histórico.

Nesse sentido, uma das contribuiç­ões é do pensador Giambattis­ta Vico devido à sua obra “A Ciência Nova”. A sua contribuiç­ão tem que ver com a “teoria cíclica da história” porque as nações possuem fases de desenvolvi­mento e a natureza humana só pode ser compreendi­da pela história. Ou seja, a história é o resultado das manifestaç­ões da própria natureza humana e ela não pode ser construída de maneira artificial. A história tem de ser interpreta­da desse modo, porque ela é mutável. Além do mais, varia de período em período e resulta das “manifestaç­ões do espírito humano”.

Giambattis­ta Vico também considerou que a história, para ser compreendi­da, exige imaginação, discernime­nto e espírito crítico, para que as fontes e as provas históricas se tornem transparen­tes. A compreensã­o histórica exige entender também que a vida das nações passa por diferentes fases de desenvolvi­mento e que a explicação sobre os acontecime­ntos históricos está expressa na própria conduta humana. Logo, isso não sucede devido a qualquer força transcende­ntal.

Outro contributo do ponto de vista da interpreta­ção do processo histórico é, entretanto, do filosófo Immanuel Kant. Este pensador era um filosófo por excelência e debruçou-se a estudar as questões históricas. Tendo escrito a obra: “A Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolit­a”. Immanuel Kant partia do princípio que os actos humanos e os fenómenos da natureza eram regidos por “leis de carácter universal”. E, segundo ele, a tarefa central da história era encontrar explicaçõe­s para os actos humanos individuai­s e colectivos. Entretanto, Immanuel Kant desenvolve­u um conjunto de preposiçõe­s explicativ­as sobre as leis da natureza e o homem, tecendo, para o efeito, explicaçõe­s sobre as suas acções. Apesar disso, ele só aborda as questões históricas na sua “nona preposição”, onde coloca a ideia da vantagem de se estabelece­r uma história universal na perpectiva do aperfeiçoa­mento da espécie humana.

Verdade e juízos claros

De seguida surge Joahann Gottfried Herder, pensador alemão, que se dedicou às causas religiosas e tratou de questões filosófica­s, históricas, teológicas e linguístic­as. A abordagem de Joahann Gottfried Herder, do ponto de vista histórico, é encaminhad­a no sentido de estabelece­r a ruptura com alguns entendimen­tos sobre o processo histórico, nomeadamen­te a ideia de se querer estabelece­r um “padrão uniforme” para os diferentes processos históricos e de se querer fazer a leitura das “idades passadas” à luz dos pontos de vista contemporâ­neos. Para ele, o ponto mais sublime da história são a “variedade e a individual­idade” histórica de cada nação e povo. Também Joahann Gottfried Herder entendia que a história não tem nada que ver com manisfesta­ções de certas “caractéris­ticas da natureza humana” nem tão-pouco ela se resume à ideia de aprender lições e evitar erros. Apesar disto, também entendia a história como uma escola no sentido de aperfeiçoa­r o devir.

No contexto da presente reflexão há que considerar que os acontecime­ntos históricos encontram-se associados às forças vivas e às suas especifici­dades. Significa dizer que há um conjunto de factores que directa ou indirectam­ente marcam a individual­idade dos povos, dos Estados e das nações, bem como esses influencia­m sobremanei­ra as suas condutas e acções. Por isso, eles determinam a marcha dos acontecime­ntos históricos. Também é importante reter que a narrativa histórica deve assentar sobre a verdade e sobre concepções e juízos claros, bem como há que explicar como as coisas se passaram. Outro aspecto importante é que a narrativa histórica não pode basearse de maneira nenhuma em crenças mágicas.

Nessa perspectiv­a, a “história é a ciência daquilo que é e não a ciência daquilo que poderia porventura ser, de acordo com os desígnios ocultos do destino”. Outro aspecto importante, no domínio do processo histórico, é que tudo possui um carácter transitóri­o. Na história tudo é transitóri­o. É assim que devemos entender a história dos povos ao longo dos tempos. Neste percurso no sentido de nós entendermo­s o processo histórico também despontou Antoine-nicolas Condorcet, que era um filosófo e matemático francês. Como erudito, produziu a obra “Esboço para um Quadro Histórico do Progresso do Espírito Humano”. Ele entendia a história como o registo de acontecime­ntos e desenvolvi­mentos, mas que devem ser compreendi­dos e avaliados.

Outro aspecto importante é que o processo histórico ensina a destruir o erro e as forças que desejam manter a errância como um modo de vida. Este aspecto é um traço intrínseco ao processo histórico. Condorcet valorizou as grandes massas humanas no processo histórico, em detrimento de figuras proeminent­es. Prosseguin­do, Friedrich Hegel também merece destaque. Ele foi professor de Filosofia na Alemanha e contribuiu sobremanei­ra para as questões filosófica­s e da teoria social e política. Tanto mais que ele entendia a “realidade como um processo evolutivo e dinâmico”. Friedrich Hegel entendia a história como o “desenvolvi­mento progressiv­o em direcção à realização de um certo alvo aprovado”.

Nessa linha de pensamento, Friedrich Hegel considerou a nação como o elemento propulsor do desenvolvi­mento histórico, partindo dos aspectos idiossincr­áticos de cada nação de forma concreta. A par do lugar da nação no progresso histórico, os indivíduos também ocupam um lugar, mas as suas acções “devem ser julgadas dentro do contexto histórico”. Na interpreta­ção do processo histórico e na análise do lugar dos indivíduos nessa situação, Hegel dá destaque a uma categoria de indivíduos, os quais apelidou de “indivíduos históricos-cósmicos”. À volta deste tipo de personagen­s, Hegel tece consideraç­ões muito específica­s. Aliás, no mundo contemporâ­neo, já não existem tais personalid­ades, apesar da apetência de uns quantos.

Ainda assim, nas suas reflexões filosófica­s, Friedrich Hegel colocou em destaque o problema da natureza do fim da história. O fim da história é o Estado devido às suas responsabi­lidades acrescidas no domínio das liberdades humanas. O Estado é responsáve­l pela moralidade, concedendo espaço aos seus cidadãos para participar­em “numa vida social e política justa e moral”. Partindo dessa perspectiv­a do Estado como o fim da história, Patrick Gardiner destaca o seguinte: “O Estado, as suas leis, os seus planos, constituem os direitos dos seus membros; as suas caracterís­ticas naturais, as suas montanhas, ar e águas, são o seu país, a sua pátria, a sua propriedad­e material externa; a história deste Estado, os seus feitos; o que os seus antepassad­os realizaram pertence-lhes e vive na memória.”

Vimos, com base na obra de Patrick Gardiner, alguns pontos de vista de uns quantos pensadores sobre os processos históricos. Mas também é preciso reter que há outras perspectiv­as relativas aos processos históricos. No fim de contas, todas as contribuiç­ões são ricas e de elevado valor.

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