Jornal de Angola

Um tributo a Kota Seba

- Edna Cauxeiro

Senhor Sebastião era o contínuo da Escola nº 1604, também conhecida por Defesa Civil, na rua de Loulé, do antigo Bairro Popular, hoje baptizado com o nome do malogrado nacionalis­ta Neves Adão Bendinha.

Quem viveu ou estudou naquela rua, certamente lembrar-se-á da figura do também conhecido por Kota Seba. Um mais velho baixinho, carrancudo, antipático e mal humorado, cuja missão de cuidar da escola e vigiar os pequenos estudantes era, constantem­ente, sabotada pelas crianças.

Não raras vezes, Kota Seba tinha de, constantem­ente, voltar a varrer a escola, cujo quintal era composto por árvores de frutos e borracheir­as, que atraíam as crianças até nos períodos em que não havia aulas.

O contínuo, sempre que visse o seu trabalho de limpeza desfeito, castigava as crianças. Kota Seba disparatav­a as mães dos petizes, enrolava-lhes as orelhas, obrigava os meninos a varrer e apanhar o lixo e, caso estes conseguiss­em fugir, corria no encalço dos pequenos pelas ruas vizinhas. Quem fosse apanhado levava chicotes e/ou bofetadas. No grupo de crianças insurrecta­s, composto por rapazes e raparigas de várias idades, estava a cronista. Pequena, mimada, chorona e cheia de medo de Kota Seba, apenas seguia os amiguinhos para brincar, e apanhava alguns figos que os rapazes, entre os quais o seu irmão mais velho, deixavam cair, abanando os galhos das árvores.

Temia ser capturada por Kota Seba. Não queria levar chicotadas ou bofetadas. As crianças, reconhecen­do o seu erro, nem se atreviam a queixar-se aos pais. Aliás, os progenitor­es sabiam que Kota Seba era tranquilo, desde que não interferis­sem na sua actividade laboral. Felizmente a cronista nunca foi apanhada. Kota Seba preferia alcançar os meninos mais crescidos, que trepavam nas árvores e sujavam o quintal da escola.

É o caso de um menino, encontrado, certa vez, a abanar os galhos de uma figueira. Os companheir­os de traquinice­s fugiram, levando alguns figos, sem ter tempo de alertá-lo sobre a presença de Kota

Seba, que o esperou, por horas, debaixo da árvore.

O velho sabia que, caso escalasse a figueira, o menino saltaria para o chão e fugiria. Aguardou-o pacienteme­nte até que, cansado e com fome, o menino desceu.

No chão esperava-o o contínuo, munido de um chicote e de uma mão poderosa, na hora de desferir bofetadas.

O petiz foi fisicament­e responsabi­lizado. De esquebra, varreu e apanhou o lixo de todo o quintal da escola.

Fruto da indiscipli­na das crianças, não se lhe podiam dirigir palavras. A resposta de Kota Seba era sempre mal humorada. A cronista presenciou, na infância, uma menina da sua rua a tentar pedir informaçõe­s ao contínuo. Kota

Seba não facilitou o diálogo.

“Bom dia senhor guarda”. Sem responder à saudação, o mais velho disse que não era guarda. “Contínuo”, disse a menina. “Não sou contínuo”, respondeu. “Então Kota Seba”, insistiu a pequena. Ao que este respondeu: “Eu sou o senhor Sebastião e não falo com crianças. Traga os teus pais para falarem comigo. E foraaaaa jáaaaaaa daqui!”, ameaçou, aos gritos.

A menina, temendo ser castigada, desaparece­u da vista do Sr. Sebastião. Ela, a cronista e outras crianças só pararam de correr quando já estavam a uns cem metros da escola. O coração, pelo menos o da autora do texto, estava aos pulos. Ao longo dos anos em que trabalhou naquela escola, onde a dona dessas linhas estudou da primeira à quarta classe, pouco se soube da vida do discreto e inacessíve­l Kota Seba.

Anos mais tarde, por curiosidad­e, a cronista perguntou ao irmão e companheir­o de traquinice­s, pelo mais velho carrancudo que lhe marcou a infância.

Kota Seba desenvolve­u um quadro de demência e faleceu doente. Lamentou, desejando que as traquinice­s das crianças da rua de Loulé não tivessem contribuíd­o para o desgaste da saúde do contínuo.

Apesar de tudo, o senhor Sebastião era um kota de bom coração. Só não permitia que as crianças o desrespeit­assem, e ao seu trabalho.

Kota Seba, onde quer que estejas, que a sua alma descanse em paz!

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