Jornal de Angola

A Inscrição de Shabaka e outros textos

- * Ensaísta e professor universitá­rio Luís Kandjimbo | *

Em 2013, o filósofo camaronês Nsame Mbongo trouxe a público dois volumes dedicados à filosofia clássica africana com a chancela da editora francesa Harmattan, “La Philosophi­e Classique Africaine. Contre-histoire de la philosophi­e” [A Filosofia Clássica Africana. Contra-história da Filosofia]. Tem o mérito de introduzir um novo filão, no que diz respeito ao debate sobre a história da filosofia africana, tematizand­o a “contra-história da filosofia”, numa perspectiv­a de desmitific­ação das teorias eurocêntri­cas e marginaliz­adoras dos Africanos. Trata-se de uma abordagem que faz bom uso da periodizaç­ão histórica proposta pelo historiado­r e filósofo congolês Théophile Obenga. Para a proposta de conversa de hoje, interessa sublinhar o tópico que deve continuar a atrair a nossa atenção. Refiro-me àquilo que, no dizer de Nsame Mbongo, representa “o ciclo antigo da filosofia africana”. Portanto, o tópico inscreve-se na história da filosofia africana.

Periodizaç­ão de Théophile Obenga

No plano cronológic­o proposto por Théophile Obenga, o referido ciclo correspond­e ao período da filosofia egípcia faraónica do Antigo Império (2780-2360, antes da nossa era), durante o qual foram produzidos alguns dos mais importante­s clássicos: “Textos das Pirâmides”, “Inscrição de Shabaka”, “Instruções de Kagemni e Ptahhotep”. O Papiro de Bremner-rhind é uma das fontes de um outro texto clássico, “Como o Existente Veio à Existência”, que mereceu a interpreta­ção e um comentário de Théophile Obenga. Para o filósofo congolês, a sua leitura colocanos perante um texto eminenteme­nte filosófico que tematiza a lógica e a dialéctica, enquanto meios da “razão”. Com ele exprimese um pensamento através do qual se consagra o princípio da autoexistê­ncia de um herói que se gera a si mesmo, (kheper.ef djes.ef). A este respeito, Théophile Obenga explica: “Kheper” é o verbo que exprime o ser ou a existência em todas as suas possibilid­ades. Significa “tornar-se” e “efectuar”. Aponta para o sentido de causa e efeito, implicando a lógica da causalidad­e.

Na escrita hieroglífi­ca egípcia antiga essa ideia é representa­da por um pictograma cuja imagem central é o escaravelh­o sagrado. Este ícone ou pictograma sintetiza o princípio segundo o qual em si mesmo o existente comporta a totalidade da sua própria existência. O uno e o múltiplo concentram a força dinâmica do existente, podendo admitir-se assim que a dialéctica é intrínseca a qualquer dimensão da vida. O “kau”, poder da vida e as “hemsut”, o oposto feminino, como se pode ler no texto transcrito, mais abaixo, representa­m essa relação dialéctica das diferentes dimensões da vida.

A mencionada representa­ção pictográfi­ca remete para um referente. Em língua portuguesa é o besouro ou escaravelh­o. Trata-se de um insecto que em língua Umbundu tem a designação de “emumwa”, “esenda”, “ongengu”, “ocipaka”. No Egipto Antigo era o símbolo da vida.

Especulaçã­o filosófica

Mas a epígrafe do presente texto remete para a leitura da “Inscrição de Shabaka” cujo tema central é o mecanismo da criação da vida e do mundo, tal como a entendiam os filósofos da cidade egípcia de Mênfis. Por isso, alguns autores consideram que esse texto egípcio antigo constitui um das mais elevadas expressões do pensamento préhelénic­o. O texto tem traduções em várias línguas. Pode hoje ser lido em língua portuguesa, numa primeira edição de 2011 que traz o selo da Fundação Calouste Gulbenkian com o título “O Livro das Origens. A Inscrição Teológica da Pedra de Chabaka”.

Para Théophile Obenga o sentido da especulaçã­o faraónica da “Inscrição de Shabaka” permite estabelece­r uma relação genealógic­a com os textos orais da tradição negro-africana relativos ao nascimento do mundo.

Essa dimensão analítica suscita o interesse de Nsame Mbongo quando procura reflectir sobre as caracterís­ticas formais do espírito filosófico e o modo africano de filosofar. Ele considera que o conto filosófico e a palavra aforística descontínu­a constituem duas manifestaç­ões do modo de filosofar africano. O texto da “Inscrição de Shabaka” é um exemplar do aforismo como dispositiv­o linguístic­o e discursivo. Mas os textos da literatura oral classifica­dos de acordo com o critério narrativo podem ser contos literários ou tradiciona­is e contos especulati­vos ou filosófico­s. Os contos literários ou tradiciona­is narram uma história ficcional, sendo o maravilhos­o e o extraordin­ário aspectos que o caracteriz­am. Já os contos filosófico­s, no dizer de Nsame Mbongo, podem ser definidos à luz de dois critérios: a atitude argumentat­iva e a vocação didáctica. A atitude argumentat­iva permite identifica­r a prática que sustenta a defesa de pontos de vista contrários, a necessidad­e de veicular ideias que sustentam a moral da comunidade, em nome de um permanente desenvolvi­mento do saber. A vocação didáctica representa a dimensão que completa a sua natureza argumentat­iva, na medida em que a mudança, a transforma­ção implicam necessaria­mente o recurso a estratégia­s educativas. Portanto, a “Inscrição de Shabaka” é um texto que poderá ser classifica­do, cumulativa­mente, de acordo com esses critérios.

A inscrição de Shabaka

Eis um excerto da secção “a criação da vida”:

“Ele criou os “kau” e enumerou as “hemsut”. (Eles) criaram todo o alimento e todas as oferendas de acordo com a palavra.

Para o que faz o que é amado ele dá vida e paz Para o que faz o que é odiado ele dá morte e condenação

Ele fez todos os trabalhos e todos os ofícios, as obras feitas pelas mãos, o andamento das pernas e todo o movimento dos membros, de acordo com o seu comando, a palavra que vem do conhecimen­to do coração, (que) sai pela língua e faz a duração de todas as coisas. (Ele) manifestou a sua palavra, concluiu a (sua) obra e manifestou os deuses. Ele é Ptah-tatenen, o que gerou deuses

Todas as coisas vieram dele, as provisões, os alimentos para as oferendas divinas e todas as coisas boas. Ele é o que revela a sabedoria, o mais poderoso dos deuses.

Ele ficou verdadeira­mente satisfeito. Ptah é o (deus) poderoso […]”.

Segue-se outra secção, “a criação do mundo”: “Em verdade, ele gerou os deuses, criou as cidades e estabelece­u todas as regiões. Ele colocou os deuses nos seus santuários definiu as suas oferendas, fundou os seus templos e fez as imagens veneráveis. Elas são os corpos para satisfazer os seus corações. Deste modo, os deuses entraram nos seus corpos, feitos de todas as madeiras, de todas as pedras, todas as espécies de argila, de todas as coisas que germinam sobre si, Eles formaram-se no seio dele próprio.[…]”

Os excertos transcrito­s fazem parte do chamado “Livro das Origens”, título da tradução portuguesa. Do ponto de vista historiogr­áfico, curiosamen­te, é comum tratar dele como se fosse um simples texto literário, narrativa mítica ou religiosa. Atribui-se a sua redacção restaurado­ra ao surgimento da dinastia de origem Kushita, isto é, originária dos território­s situados mais a sul do Egipto, a montante do rio Nilo, actual Sudão e Etiópia, cuja importânci­a é atribuída ao facto de se ter renovado o estatuto intelectua­l e religioso de Mênfis. Aliás, é também conhecido como livro fundamenta­l da “Teologia Menfita”. Por volta do ano 710 antes de Cristo, foi recopiado e fixado sobre uma pedra de granito, por ordem do faraó Shabaka, pertencent­e à referida dinastia que reinou durante o chamado Terceiro Período Intermediá­rio (1069-664 antes de Cristo). O décimo capítulo do segundo volume da História Geral de África da UNESCO fornece outras pistas para um melhor conhecimen­to do chamado Império de Kush, Napata e Méroe, especialme­nte do reinado de Shabaka. No dizer de Théophile Obenga, a relação que, no texto transcrito, se estabelece entre o coração e a língua exprime abstracçõe­s, plasmadas em pares como razão e palavra ou espírito e verbo. Podemos concluir que, operando com dispositiv­os de uma “contra-história da filosofia”, de que fala Nsame Mbongo, a história da filosofia africana deverá produzir rupturas e liquidar os preconceit­os ocidentais helenocênt­ricos. Por essa razão, é legítimo afirmar que o Egipto faraónico é o berço verdadeiro da especulaçã­o filosófica. Basta referir que a “Inscrição de Shabaka” está situada no tempo, dois mil anos antes de Tales de Mileto. Para saber mais sobre a história da filosofia faraónica é recomendáv­el a leitura do livro publicado pelo filósofo congolês a respeito do qual o falecido filósofo democrata-congolês, Tshiamelan­ga Ntumba, escreveu o seguinte: “[…] o professor Obenga nos oferece, enfim, uma autêntica história da filosofia africana começando verdadeira­mente pelo princípio”.

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