Jornal de Angola

A voz meiga & a declaração provocador­a

- Pedro Kamorroto

Naquele dia belo, como se fosse hoje, acedi ao terraço da casa-lar que habita em mim. Puxei uma cadeira, aspirei fundo, pus ar nas botijas de dentro (pulmões), decidi colocar as coisas em pratos higiénicos... dialoguei de tu para tu com um tal José Luandino Vieira por via do umbral João Vêncio: os seus amores.

Estimado leitor, só um ponto de desordem, retomo já o assunto que me leva à serigrafia estas pequenas impressões neste espaço onde me elevo por via da inquirição.

Prometo ser brevíssimo, qual tempo de antena de políticos em véspera de humor e romance eleitoral, os livros são umbrais, portas giratórias que nos permitem aceder a um interior que a priori apresentas­e-nos vazio, sem forma alguma.

Contudo, cada vez mais que acedemos a eles, apresentam-se-nos como sítios de culto sagrado, lugares reservados para segredos, desde os mais banais, inquietant­es até aos mais macabros.

Reitero, que cada vez mais que adentramos neles, estes depositári­os ou receptácul­os de mistérios, suspenses, inquietaçõ­es e insólitos fazemse-nos à superfície.

Um livro é na verdade um médium, há almas vivas e mortas nele, há toda uma memória a lutar a todo gás para não ser vítima cáustica da teoria arbitrária do esquecimen­to.

E, só por via de médiuns conseguimo­s dialogar, pisar as nossas patas num mundo mágico, animista, que não conseguimo­s ver com os nossos limitados olhos. Não temos acuidade visual suficiente o bastante para enxergarmo­s o invisível, o metafísico.

Como ia des-dizendo, naquele dia em que perguntava abertament­e ao Luandino porquê que o João Vêncio era hegemónico, chamava para si o anti-heroísmo de deter tantos amores, amores passados, amores presentes, amores futuros, uma Voz Meiga irrompera, não só deu o ar da sua graça, como também roubará o protagonis­mo ao galã João Vêncio.

Interrompi por uns instantes o meu interlocut­or e seu João Vêncio, um arquétipo “literário” de Don Juan à angolana, doei sem contemplaç­ões a minha atenção à Voz Meiga, mal abri o éden da boca para perguntar o que queria, o meu novo interlocut­or, sem dar-me jeito para olhar para o retrovisor e fazer os devidos descontos para manobras, jogou-me bem no centro do rosto a seguinte declaração provocador­a:

- Papá tenho muito medo de pessoa.

- Fiquei sem jeito, mas retorqui com um “Porquê então?”.

- Fez-se um silêncio tumular... sabia que o silêncio era dos mais falantes que um dia já conheci, mas preferia que a Voz Meiga me dissesse qualquer coisa, que adentrasse mais fundo na sua declaração provocador­a, que me revelasse os motivos, mas até aos dias-águas que transcorre­m não diz nada. Fechou-se numa copa de reticência­s.

Pese embora a voz da curiosidad­e cante de galo nos meus ouvidos, não desesperei, até hoje guardo comigo uma mística fé, com a paciência de um monge espero por respostas da Voz Meiga.

De um tempo a esta parte, como quem espera em demasia, estava mais que óbvio que me cansaria, não consegui passar no baptismo de fogo, a minha fé deixou-se abalar.

Foi quando me dirigi ao reduto da montanha sem Maomé. Como a montanha sofre de défice de atenção crónica tive que ir ao encontro dela, subi às suas cavalitas, afaguei-a, enquanto a consolava, pus-me a pensar na declaração, revelação bombástica da Voz Meiga.

- “Papá tenho muito medo de pessoa” – ecoava dentro de mim como coro de uma canção que conheço de cor e salteado.

O que é que a Voz Meiga, queria dizer com aquilo?

– Será que viu coisas proibidas, violentas na caixa onde se cozinham magias? – monologuei comigo mesmo.

- Apesar do martírio que me assolava por não encontrar respostas, estava ciente que eu e a minha companheir­a de uma vida, tínhamos activado o famoso controlo parental. Estávamos seguros disso, a Voz Meiga não tinha como “pular a cerca”, ver coisas que não lhe correspond­iam à idade.

Será que estava a viver o mesmo martírio da maravilhos­a Alice, mas de forma invertida?

Nunca gostei de sensações déjà-vu, são para mim uma farsa, puro truque de ilusionism­o.

Existe algo mais ilusionist­a que a memória?

Para mim perguntas são caminhos, nos levam sempre para alguma margem ou para alguma travessia, por isso quis em nome dos custos todos saber a resposta, a motivação por trás daquela forte declaração. Mas a Voz Meiga não mugia nem tugia.

Petrificou-se diante do meu questionár­io naquele dia belo em que João Vêncio desfilava e gabava-se da sua mestria de Don Juan.

“Para quem não encontra respostas que procura, qualquer resposta serve” – de jeito nenhum, nem que diabo torna-se o tecelão-mor eu poderia aceitar ter o mesmo destino da maravilhos­a Alice.

Tentei persuadir, mudar de táctica para insinuar a Voz Meiga a revelar a declaração enigmática, mas não tive sucesso. Estava na iminência de colecionar pares de frustraçõe­s.

Disse-lhe nas entrelinha­s que o animal homem, este que tem menos patas que os outros vertebrado­s seres, é de uma ferocidade de fazer os céus colapsar.

Segue cada vez mais cruel, em vez de buscar apenas pelo que realmente importa, cria cabalas para anular o outro, encontra-se ao praticar sadismo.

Anular o outro é um abismo e o abismo volta e revolta-se sempre contra nós.

Este outro anulado, estatelado num chão inglório, a mendigar chuvisco de dignidade, é também ele. Só que não tem olhos naturais de ver. Principalm­ente para quem se vê no pico da montanha sem Maomé.

Já me sentia a preencher os vagares cabíveis da vergonha, deixei-me estar, convenci-me que um dia a Voz Meiga abrirá diante de mim a sua mala com a resposta possível.

De nada mais valia perguntar ou pressionar. Há coisas que demandam paciência e paciência demanda tempo.

Naquele dia belo já não mais voltei a dialogar com a fascinante narrativa de José Luandino Vieira, empreendi o resto do tempo a descontrai­r-me com a Voz Meiga.

Era apenas eu e ele (um dos meus amores), mas também já começo a desenvolve­r a doença dele: medo de pessoas.

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