Abdulrazak Gurnah e o Prémio Nobel
O Governo da Tanzânia felicitou efusivamente o romancista Abdulrazak Gurnah por ter ganho o Prémio Nobel de Literatura, dizendo que é uma grande honra para a Tanzânia e o continente africano! Conheci Abdulrazak Gurnah em Londres, onde ele nunca faltava quando havia qualquer acontecimento relacionado à Literatura Africana. Havia muitos escritores africanos em Londres, sobrevivendo dando aulas em faculdades britânicas; a Universidade de Kent, onde Gurnah foi professor de Literatura por décadas, é que vai ter a honra de ter tido um professor que ganhou o Prémio Nobel de Literatura.
Passei muito tempo na Tanzânia e na ilha de Zanzibar, onde Abdulrazak Gurnah nasceu. Fui a Zanzibar, pela primeira vez, através dos romances de Gurnah. Quando estive em Dar-es-salaam e em Zanzibar nunca vi um único exemplar das obras de Gurnah; quase ninguém sabia dele. Abdulrazak Gurnah foi ao Reino Unido nos anos 60. Em 1964, houve uma revolução em Zanzibar, uma ilha cuja liderança era composta por uma maioria árabe. Havia, também, diferenças ideológicas. Abdulrazak Gurnah foi forçado a ir para o Reino Unido como refugiado; ele só regressou à sua terra natal em 1984 para ver o pai, que estava às portas da morte.
Abdulrazak Gurnah é um escritor muito sério; o escritor tem muito em comum com a pessoa com quem me encontrei: educadamente muito curioso; um pensador profundo. Abdulrazak Gurnah fez-me muitas perguntas sobre Angola e sobre a Zâmbia, onde eu tinha passado a minha infância, e sobre o que eu pensava do Reino Unido.
Abdulrazak Gurnah disse-me, uma vez, que o grande problema da literatura africana, com os novos escritores africanos, era uma certa timidez, que fazia com que eles não abordassem os grandes temas do nosso tempo, corajosamente. Gurnah sentia que havia uma profunda timidez. Relendo as obras dele, vejo agora exactamente o que ele estava a tentar dizer-me. A geração de Ngugi Wa Thiongo, Luís Bernardo Honwanwa, Ferdinand Oyono tinha que lidar com a questão do colonialismo. A nova geração tinha que lidar com o fenómeno pós-colonial.
Uma vez em Londres, eu disse ao grande escritor nigeriano Chinua Achebe que tinha dificuldades para entender o seu último romance “Anthills of the Savannah”, que analisava o falhanço de um país pós-colonial. Chinua Achebe, naquela calma sacerdotal, disse-me que um dia eu iria entender. Lembrei-me disso ligando o que Abdulrazak Gurnah me tinha dito sobre a falta de seriedade dos jovens escritores. O romance de Achebe era complicado e sério porque ao tentar entender a podridão de um país póscolonial ele recorre a caricaturas. É exactamente isso que se nota nas obras de Abdulrazak Gurnah; os seus narradores são africanos no Ocidente, fisicamente longe das suas raízes, mas intensamente ligados às mesmas intelectualmente. Abdulrazak Gurnah retrata aquele desassossego que resulta da ansiedade para tentar pertencer a uma sociedade (Ocidental) quando se tem um relacionamento, às vezes conflituoso, com segmentos da sua terra natal.
No fim, o exilado/emigrante leva tudo na sua memória. Nas narrativas de Gurnah, o filho que deixa a sua terra volta; tudo que ele encontra agora são pessoas idosas, cujo valor principal, para ele, é terem sido testemunhos da sua infância. As ansiedades do passado desapareceram no passado; o filho regressado já não entende a sociedade à sua frente porque têm outros valores. Nos últimos anos, Abdulrazak Gurnah tem regressado ao Zanzibar quase anualmente para ver os parentes, que talvez sejam os únicos que sabem que ele tem escrito livros. É que quando Abdulrazak Gurnah deixou a Tanzânia, em 1968, o Presidente da República era o Mwalimu Julius Nyerere, um político altamente culto, que tinha feito um Mestrado em Língua Inglesa na Escócia e que tinha traduzido obras do grande Shakespeare para o Kiswahili. O Mwalimu acreditava em Ujamaa — uma espécie de Socialismo Africano. O Mwalimu não gostava muito de críticas; para ele, quem discordava com a sua visão, era um reaccionário que deveria ser reeducado.
Abdulrazak Gurnah tem regressado para uma Tanzânia onde o fervor ideológico já não existe, onde o que conta é o dinheiro, onde ministros são também empresários multimilionários. Abdulrazak Gurnah é ignorado porque ninguém tem tempo ou mesmo interesse para ler as suas obras. As obras de Gurnah são como as obras cinematográficas de Manuel de Oliveira; elas requerem muita concentração e interesse. Em certas obras, Gurnah faz muitas referências literárias, históricas, etc. Estou a reler as obras de Gurnah aqui na Zâmbia. Gostaria muito de ensinar alguns dos textos de Gurnah aos jovens por cá — mas não seria fácil, porque duvido se muitos deles entendem a Bíblia, o al Corão, ou mesmo vários aspectos da história contemporânea do continente africano.
Abdulrazak Gurnah é um produto da Tanzânia, mas é muito mais produto do Reino Unido, que tem a cultura de valorizar a cultura de ideias. Da mesma forma que os africanos ficam cheios de orgulho num Kylian Mbappé, filho de um camaronês e de uma argelina, ignorando o meio sociocultural que o produziu, vai-se louvar Abdulrazak Gurnah como um grande escritor africano, ignorando o meio que o produziu. Em todo o caso, o Prémio Nobel poderá reanimar o nosso interesse pela Literatura.