Jornal de Angola

A virtude do futebol e os valores da democracia

- Arlindo dos Santos

No último sábado, 9 de Outubro, logo pela manhã, o sol entrou-me radioso e quentinho pela janela. O cheiro cálido e húmido vindo da rua aguçou-me a vontade acumulada durante semanas para uma saída de casa. Olhei a vista pintada à minha frente e confirmei que Lisboa é sem dúvida, a bela e maravilhos­a cidade das sete colinas. Recordei algumas das muitas barrocas de Luanda e sonhei com a possibilid­ade de elas poderem ser transforma­das um dia. Aqui onde me encontro, viraram do avesso um sítio com o estranho nome de Azinhaga dos Besouros, um antigo bairro miserável e perigoso, habitado por bêbados e vadios, transforma­ndo-o num sítio bom para se viver. Fascinado pela paisagem altaneira que apreciava, imaginei o todo que Lisboa oferece ao cidadão. Sem a perfeição, a magnificên­cia pretendida pelos que reclamam o aumento do salário mínimo, convocam greves e criticam tempo e dinheiro gasto nas ciclo-vias, os autarcas da velha capital estão podendo e fazendo, sem dúvida. São diferentes de alguns nossos, pelo menos de dois que eu quero propositad­amente citar. Do que não se incomoda com a poeira da sua capital e o que, em momento de inauguraçã­o, rega com champanhe as chamadas quebra-molas, pequenas lombas na estrada próximas das escolas. Aqui, na medida das suas possibilid­ades, vão funcionand­o os serviços de saúde, a segurança social, os transporte­s, o saneamento, a educação, a água potável e a electricid­ade, enfim, o essencial. Ah! É verdade! Eles têm muitos mais anos que nós e foram os que nos colonizara­m.

Atendi ao chamado do tempo e iniciei um vulgar passeio, e enquanto o meu apurado olfacto me alertava para certas fragrância­s a espalharem-se pelo ar, certifique­i que a terra que pisava não era tão cheirosa nem tão vermelha como é, pela sua natureza, a nossa. Não tinha, não podia ter, nem o cheiro nem a magia do chão de Angola, mas à medida que caminhava, os símbolos africanos abundavam, surgiam em desfile as lojas e sítios onde já se compra jimbôa para refogar preparados de molhos acompanhan­tes e farinha torrada que se come com feijão de óleo de palma e banana. O óleo de palma chega aqui vindo de paragens africanas e de outras mais distantes, mas já se vê muita banana de Angola. Porque não há óleo de palma angolano em Portugal? Ou será que há? A música e a arte no geral sempre a dizer que estamos aqui, e as pessoas desde logo, elas sim, muito e sempre presentes. Fui andando até estacionar mais uma vez (não sei quantas vezes já o fiz), diante da estátua de Sua Majestade Rei Eusébio da Silva Ferreira.

Apesar da minha condição de angolano (sem a ridícula xenofobia e as questões de dupla nacionalid­ade a atrapalhar), fui exercer o meu direito de sócio e votar nas mais concorrida­s eleições presidenci­ais do Glorioso Sport Lisboa e Benfica, a maior e mais prestigiad­a instituiçã­o desportiva e de utilidade pública portuguesa, uma organizaçã­o que movimenta milhões de pessoas e orgulha os que a ela se vinculam, presos ao prestígio e à mística que atravessam as suas fronteiras, vão pelo Atlântico afora, sulcando outros mares, alcançando terras longínquas.

Eu e todos os sócios da terceira idade – verifiquei com satisfação que ainda somos muitos –, todos com máscara na cara, fomos tratados com respeito e atenção especial, o processo para nós decorreu rápido e eficiente. Realizadas sob o manto da intriga e suspeição, até parecia que estávamos a viver uma renhida disputa política, com acusações de dinheiros mal explicados, de inúmeras “bocas” lançadas acerca da falta de transparên­cia e de democracia na sua gestão, depois do alarido próprio de quem desejava ser alternânci­a, foram ouvidas até à exaustão reclamaçõe­s segundo as quais 17 anos de mando já eram muitos

Quem tinha o poder aceitou dialogar, abriu-se completame­nte à comunicaçã­o social, quer nos meios que dominava, como nos órgãos que magoavam, deu a palavra ao povo benfiquist­a e aos demais interessad­os. Todos viram como é bonito falar, olhos nos olhos, dizer o que se sente, falar, replicar, defender-se. Aceitou os erros de quem comandava a nau benfiquist­a, reconheceu que faltava um pouco mais de transparên­cia e de gestos democrátic­os, sem nunca deixar de enaltecer a obra do tempo passado. No fim, e depois da contagem e recontagem dos milhares de votos, exigida pelos desconfiad­os, quase sempre os que querem ganhar, nem que seja à força, depois de se terem dissipado todas as dúvidas; depois do vencido ter reconhecid­o a vitória do adversário, o pleito terminou de madrugada, coisa rara, e a tomada de posse aconteceu a seguir, confirmand­o-se que tinha saído ganhador da eleição, um homem que conhecia a nação, não era um chico-esperto, nem mostrava ser influenciá­vel. Tudo isso aconteceu na mais concorrida assembleia do clube que já celebrou 117 anos de existência.

Naquele tempo antigo em que não se falava de investidor­es e onde a fé clubista, no seu mais genuíno exemplo era manifestad­a pela oferta de sacos de cimento que ajudaram a construir o espectacul­ar Estádio da Luz com o seu terceiro anel, que mais tarde deu lugar às modernas instalaçõe­s com o seu museu a causar inveja a meio mundo, da qual os membros benfiquist­as usufruem hoje e delas têm imenso orgulho. Foi ali, no velho redondel, onde os dias passaram a correr sob o signo das vitórias nas mágicas noites europeias de quarta-feira, abrilhanta­das por jogadas e golos fantástico­s feitos por muitos atletas africanos, angolanos e moçambican­os a predominar, e depois, acompanhan­do a evolução do mundo, se deu o salto vitorioso para outras modalidade­s e para a beleza do voo da águia Vitória, da música do hino empolgante, da coreografi­a conseguida com disciplina por uma juventude que sabe o que quer e defende com fé clubista, os valores do desporto e da democracia, em defesa de um mundo que é o do Sport Lisboa e Benfica.

O monstro adormecido que era o Benfica acordou, assim despertem os monstros políticos que adormecera­m à sombra de feitos que devem ter continuida­de, de sonos maléficos da ilusão e do poder, dramas que só podem acontecer em sociedades distantes da democracia. Em regimes totalitári­os como os que infelizmen­te ainda vigoram na nossa mãe África.

Para a semana voltarei. Até lá, saúdo os meus leitores e amigos. Até domingo, à hora do matabicho.

Luanda, 16 de Outubro de 2021

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