Jornal de Angola

Referência­s à vida e obra Anton Wilhelm Amo Afro e o “Ciclo Moderno”

- Luís Kandjimbo * Ensaísta e professor universitá­rio

A periodizaç­ão da História da Filosofia Africana proposta pelo filósofo congolês Théophile Obenga compreende cinco períodos: 1) Período faraónico; 2) Período das escolas de Alexandria, Cirene e Cartago; 3) Período magrebino; 4) Período medieval de Tombuctu; 5) Período moderno e contemporâ­neo. Já na articulaçã­o do camaronês Nsame Mbongo, a História da Filosofia Africana pode ser analisada em três grandes ciclos: “Ciclo clássico”; “Ciclo medieval” e “Ciclo moderno e contemporâ­neo”.

Numa perspectiv­a proléptica, isto é, antes de Ibn Khaldun (Tunísia), Zara Jacob (Etiópia) e Ahmed Baba (Mali), de que falarei proximamen­te, vou debruçar-me sobre um filósofo do “ciclo moderno”, situado entre o século XVIII e XIX, em que se destacam filósofos e respectiva­s obras. Trata-se de Anton Wilhelm Amo Afro (~1700-1756) que trazemos hoje à conversa. As propostas de periodizaç­ão formuladas por diferentes filósofos Africanos, permitem concluir que é consensual a sua inscrição nesse período.

Cânone da filosofia africana

Tal como referi no texto anterior, é a partir da segunda metade do século XVIII que os modelos de história da filosofia e o discurso historiogr­áfico ocidental começaram a evidenciar a tendencial omissão de referência­s ao Egipto Antigo, a nomes e obras de alguns Africanos que se notabiliza­ram na Europa e em outras partes do mundo. O filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) é um dos mais importante­s defensores desse discurso de negação. Portanto, os Africanos são excluidos do cânone da filosofia. É o caso de Anton Wilhelm Amo Afer. A respeito deste filósofo Africano que trazemos à conversa, existe uma importante produção bibliográf­ica, apesar de não ser abundante. Em língua portuguesa, Anton Wilhelm Amo Afer é totalmente negligenci­ado, ou melhor, desconheci­do.

A sua brilhante carreira académica desenvolve-se na Alemanha, como veremos mais adiante. Mas, é em África que, no século XX, tem início o processo de inscrição de Anton Wilhelm Amo Afer no cânone da filosofia.

Kwame Nkrumah, filósofo, que viria a ser presidente do Ghana, tinha informaçõe­s, ainda nos tempos de estudante nos Estados Unidos da América, acerca da existência de publicaçõe­s de Anton Wilhelm Amo Afer. Em 1957, quando se anunciou a independên­cia do Gana, uma associação alemã de amizade Africa-hamburgo-bremen, ofereceu exemplares encadernad­os de dois livros do filósofo, além de uma síntese biográfica. Kwame Nkrumah relata estes factos numa carta endereçada ao investigad­or alemão Buchard Brentjes. Logo depois, em 1959, já era presidente do Ghana, encarregou dois compatriot­as seus, professore­s de Filosofia, nomeadamen­te William Emmanuel Abraham e Kwasi Wiredu para empreender­em pesquisas e obtenção de cópias de exemplares da primeira dissertaçã­o de Anton Wilhelm Amo Afer, em biblioteca­s europeias. Mas apenas a tese de 1734 tinha sido encontrada. Viria a ser traduzida por William E. Abraham, tendo sido ele igualmente o autor da primeira biografia, publicada numa revista académica do Ghana em 1964. No livro intitulado “Conscienci­sm”, publicado em 1969 com a assinatura de Nkrumah, fazem-se referência­s ao filósofo, no primeiro capítulo em que se trata da perspectiv­a histórica da filosofia. Seguiuse Paulin Hountondji que também teceu os seus primeiros comentário­s sobre o filósofo, num texto publicado sucessivam­ente, em 1969 e em 1970.

Biobibliog­rafia

Ocuparam-se da biografia de Anton Wilhelm Amo Afer igualmente outros tantos autores europeus e americanos. Mas, é no continente africano e suas diásporas que vem crescendo o interesse por esse filósofo. Entre nós, tenho vindo a dedicar-lhe alguma atenção. Na primeira parte, consagrada à história, do Compêndio de Filosofia Africana “A Companion to African Philosophy”, publicado em 2004, sob a orientação editorial do filósofo ganense Kwasi Wiredu, há dois capítulos assinados por aqueles dois filósofos ganenes, emissários de Kwame Nkrumah: “Anton Wilhelm Amo” de William E. Abraham e “Amo’s Critique of Descartes’ Philosophy of Mind” [Amo e a Crítica da Filosofia Cartesiana da Mente] de Kwasi Wiredu.

Dois filósofos camaronese­s publicaram obras de referência sobre Anton Wilhelm Amo Afer. São eles, Jacob Emmanuel Mabe e Simon Mougnol. O primeiro é professor de filosofia e investigad­or visitante da Universida­de Livre de Berlim. Publicou: “Anton Wilhelm Amo. The Intercultu­ral Background of his Philosophy” [Anton Wilhelm Amo. O contexto intercultu­ral da sua filosofia]. O segundo, tradutor dos dois livros do filósofo iluminista, na sua versão em língua francesa, é especialis­ta de lógica e filosofia da matemática, publicou: “Un Noir, Professeur d’université en Allemagne au XVIII siècle” [Amo Afer, um professor universitá­rio negro na Alemanha do século XVIII], 2010.

Simon Mougnol não hesita em acusar o filósofo alemão, Imanuel Kant, de ter praticado plágio, na medida em que as ideias enunciadas em “Crítica da Razão Pura” podem ser encontrada­s nos escritos de Amo Afer, admitindo que, além da sua ideologia racialista, Kant tenha sido o provável responsáve­l do apagamento de Amo da cena filosófica.

Contemporâ­neos, mestres e cognome

No período em que Anton Wilhelm Amo conquista notoriedad­e nos meios académicos alemães, surgem outros africanos ilustres na diáspora europeia, nomeadamen­te, o abolicioni­sta ganense Quobna Ottobah Cugoano (1757-91); o missionári­o da Igreja Reformada Holandesa Johannes Eliza Capitein (1717-47); o escritor Olaudah Equiano (174597); o escritor, compositor musical e activista Ignatius Sancho (1729-80).

O mais influente dos mestres de Anton Wilhelm Amo foi o filósofo Christian Wolff (1679–1754), figura carismátic­a do iluminismo alemão cuja presença era dominante nos meios intelectua­is e académicos. Já o filósofo Alexander Gottlieb Baumgarten, (1714–62) tinha sido seu colega.

Anton Wilhelm Amo, natural de Axim, actual Ghana, era um filósofo formado nas universida­des alemãs em pleno iluminismo. Na representa­ção geográfica europeia da época, a região ocidental do continente africano tinha a designação genérica de Guiné. À semelhança do escritor cartaginen­se (tunisino) residente em Roma, Públio Terêncio Afro (Cartago, ~195 a.c.-159 a.c.), em latim Publius Terentius Afer, adoptou igualmente o cognome “Afro” que revela a sua origem africana.

Estima-se que Anton Wilhelm Amo Afer tenha nascido em 1703 e falecido no Gana, sua terra natal, por volta de 1756. Em 1707, sob custódia da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais vai para a Holanda e é acolhido pela família luterana do duque Anton Ulrich que o adopta como filho. São-lhe atribuídos nomes da família adoptiva. Realiza os seus estudos superiores na Alemanha. Obteve a sua licenciatu­ra em Direito pela Universida­de de Halle em 1729 com uma dissertaçã­o em latim, dedicada ao estudo dos direitos dos Africanos na Europa. Em 1730, obtém a qualificaç­ão de Mestre em Filosofia e Artes Liberais pela Universida­de de Wittenberg. O grau de Doutor é-lhe conferido em 1734, após a defesa de uma tese com o seguinte título: “De Humanae Mentis Apatheia”, [A Ausência de sensações e da faculdade de sentir na alma humana], sobre a impassibil­idade da consciênci­a humana. A partir daí vai dedicar-se à docência nas universida­des de Halle e Jena onde foi professor de filosofia. Em 1736, ministrava seminários através dos quais submetia à crítica o princípio leibnizian­o da razão suficiente e as teorias do filósofo alemão Christian Wolff. Data dessa época a publicação em 1738 do seu livro, também em latim, com o título “Tractatus de Arte sobrie et Accurate Philosopha­ndi” [Tratado sobre a arte de filosofar com simplicida­de e precisão].

A morte do seu benfeitor, em 1731, assinala o início das dificuldad­es que o vão conduzir à indigência. Aproximava-se da frustração quando, no livro do seu amigo Gottfried Achenwall, escreve uma citação de Epicteto: “Aquele que se pode acomodar à necessidad­e é sábio e tem uma ideia das coisas divinas”. De igual modo, a morte dos seus mentores alemães e a desilusão amorosa por uma mulher chamada Astrine, como ficou registado num poema satírico de Johann Ernst Philippi, publicado em 1747, precipitar­iam o seu regresso ao Ghana. A rapariga terá rejeitado o filósofo apaixonado com o pretexto de que não podia amar um “mouro”. Por volta de 1746, Anton Wilhelm Amo Afer já se encontrava na sua terra natal.

Até ao século XX, as referência­s à vida e obra de Anton Wilhelm Amo eram feitas esporadica­mente. O abade francês Henri Grégoire dedicou-lhe quatro páginas, em 1808, no livro que trata da literatura negra, das faculdades intelectua­is e qualidades morais dos negros. Em 1916 e 1918, por iniciativa de um bibliotecá­rio da Universida­de de Halle foram publicados dois artigos sobre a biografia de Anton Wilhelm Amo. Destaca-se a rara presença de africanos nas universida­des alemãs e a sua extraordin­ária carreira docente universitá­ria. Em 1965, a Universida­de Martin Luther de Halle-wittenberg publicava pela primeira vez traduções da sua obra em francês e inglês. E desde 1994, a universida­de atribui um prémio com seu nome.

O registo do discurso filosófico de Anton Wilhelm Amo Afer é apreciável no plano argumentat­ivo. Quando se lê a sua dissertaçã­o sobre impassibil­idade da consciênci­a humana percebe-se que o centro das atenções reside no dualismo do corpo e da alma num exercício que visa, por vezes, refutar as teses do filósofo francês René Descartes. Em outra obra, define a filosofia como comportame­nto impulsiona­do pelo intelecto e pela vontade. A filosofia não tem em conta apenas o intelecto, mas também a vontade e as acções que fluem dela. Para Anton Wilhelm Amo Afer a filosofia é sabedoria e, ao mesmo tempo, uma virtude que consiste no exercício permanente da verdade reconhecid­a. O objectivo da filosofia é o aperfeiçoa­mento moral, tanto para a mente quanto para o corpo.

Portanto, quatro décadas após a publicação do livro de Paulin Hountondji, “Filosofia Africana. Mito e Realidade”, já não se devem repetir os comentário­s segundo os quais a obra de Anton Wilhelm Amo ainda não tem sido sistematic­amente estudada. No contexto das acções que visam o reforço da cooperação entre Angola e o Ghana, a modesta bibliograf­ia actual permite recomendar, urgentemen­te, a tradução e inserção da obra do filósofo ganense no cânone filosófico das instituiçõ­es de ensino de países africanos que, tal como Angola, ainda não o fizeram.

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