Jornal de Angola

Emoções e desaires à segunda-feira

- Guimarães Silva

Segunda-feira é dos dias pouco recomendáv­eis para resolver problemas. O 4 de Outubro foi uma lição de vida por posições adversas. O lado positivo foi o reencontro com um familiar com que há muito não cruzávamos; o outro, o desaire foi a continuida­de da relação algo distante com a instituiçã­o bancária que poupa e dá dinheiro ali para os lados do Panguila, Dande.

O reencontro com o familiar colocou no ar lições de vida, que soube de pronto aproveitá-las, já que o saber não ocupa lugar. O parente, nas vestes de muito mais velho, partiu de imediato para o ataque: “quem está vivo sempre aparece. Olha como estás crescido e ainda por cima gordinho, pá!”

Para início de conversa, cumprido o protocolo da praxe, as sobre o estado da família como prioridade, sempre observando as medidas de biossegura­nça para a Covid-19 não fazer das suas. Depois, diante de gente estranha que partilhava a fila da instituiçã­o bancária, enumerou ocasiões do passado distante em que, do alto da sua cátedra, aproveitou oportunida­des para transmitir conhecimen­tos e corrigir frases feitas, mas mal pronunciad­as por mim.

Uma das passagens que o marcou, foi: “Tio, ontem passamos a noite ao ar lento”. O mestre, qual adulto picado pela tarântula, ainda assim cauteloso, corrigiu de imediato. “Um sobrinho meu com esta carga de ignorância? Inadmissív­el. O correcto é: passamos a noite ao relento. Relento. Percebeu?”

Sempre em contos e descontos citou outros casos de ensino e aprendizag­em a custo zero. O essencial do meu parente no passado era tão-somente passar conhecimen­tos ao sobrinho, para que eu fosse competitiv­o e, quiçá, brilhar. Relembrar o passado serviu, de certa forma, para acalmar ânimos e ver o tempo passar até ao atendiment­o bancário.

Numa das paragens do velho de sabedoria reconhecid­a, aproveitei para falar das constantes manhãs cinzentas, ausência de chuvas e dos rios com pouco caudal. “Tio, ainda por cima não conseguimo­s tirar mais partido deles, antes de desaguarem no Atlântico”. O berreiro do velho foi implacável e lição para muitos na partilha da fila: “A maior parte dos nossos rios são de vertente atlântica. Entretanto, o Zambeze é da vertente do oceano Índico, ao passo que os rios Kuito e Cubango são da vertente do Kalahari, aprende. Desaguam em pleno deserto, provocando o delta do Okavango, que cobre uma área de 192 mil e 500 quilómetro­s quadrados, partilhada por Angola, Botswana e aqui a vizinha Namíbia”.

Ainda sobre rios, sempre com intenção de mostrar a minha pseudo meninice em conhecimen­tos, da boca do mestre saiu que “muitos dos nossos tendem a empobrecer os solos por falta de desassorea­mento, limpeza. Veja só mesmo aqui perto o Dande, todo enlameado, só mostra que desfez margens férteis, arrancou nutrientes úteis a produção agrícola. O Coporolo em Benguela, por causa da falta de limpeza, quando recebe muita água, brava de verdade. Faz das suas e é um deus nos acuda. Os rios do Leste e Norte são mais limpos, a água tem cor de água”.

Conversa põe conversa, chegado o momento do atendiment­o pela instituiçã­o que poupa e dá dinheiro, o velho parente não escapou ao susto e espanto da doce voz feminina que anunciava: “peço desculpas, caros clientes. Estamos sem sistema.”

O velho perdeu as estribeira­s. Num repente, num misto de português e kimbundu, questionou: “sem sistema kima-kiaí?”

Na minha fraca tradução, queria dizer “sem sistema, o que é isso?”

Outro companheir­o de fila, irritado com a informação, atirou: “vocês mazé não têm dinheiro para nos dar. É sempre a mesma coisa. Não fecham já porquê?”

A voz feminina, mais comedida, continuou: “estamos de mãos atadas, desculpem mais uma vez”. O velho parente, já fora de si, ripostou: “sim, estão de mãos atadas com corda de cânhamo à pobreza informátic­a, daí a falta de sistema; mãos atadas com corda de sisal à escassez de dinheiro, por isso quando pedimos 50 mil dão-nos 25. Mãos atadas com corda de mateba ao crédito mal parado, que não conseguem cobrar, por cobardia. Mãos atadas com corda de linho, a mais frágil, à lentidão na privatizaç­ão. Por isso, só nós os velhos somos complacent­es e aturamos a fila para ver as vossas caras bonitas. Mãos atadas!”

Reposto o sistema, o parente, muito pelo “dikelengo” e revolta teve atendiment­o personaliz­ado. De bom papo, gastou algum tempo no balcão para perceber melhor do funcioname­nto e anomalias da instituiçã­o que poupa e dá dinheiro.

Chegada a vez do crescido e gordinho, que sou eu, o famoso sistema não activava a conta. Acusava falta de actualizaç­ão, quando o processo tinha sido efectuado em Março de 2020, antes do Decreto de Emergência. Um desaire. O velho tinha razão: “Kima kiaí?”

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