Jornal de Angola

Interpreta­ção das ideias de Maquiavel

- Miguel Júnior |* *Historiado­r

De antemão, é preciso reter que as ideias teorético-militares de Nicolau Maquiavel são o resultado de experiênci­as acumuladas e uma consequênc­ia directa da interpreta­ção que ele fez aos factos históricos, políticos e de guerra. Nesse processo ocorreu uma convergênc­ia natural que facilitou sobremanei­ra as suas reflexões.

De resto, ele teve o privilégio de exercer, cumulativa­mente, várias funções no Estado de Florença e presenciou todos os eventos bélicos que tiveram lugar na península italiana devido às desavenças internas e às invasões estrangeir­as.

Nicolau Maquiavel desempenho­u, no seio do Governo florentino, funções nos domínios da defesa, da diplomacia e da política. Além de que, no âmbito das suas responsabi­lidades, visitou alguns Estados europeus e familiariz­ou-se com as realidades políticas e de defesa desses espaços. Por isso, ele analisou de forma profunda, o papel das forças militares mercenária­s que participav­am nas guerras e que eram, ao mesmo tempo, responsáve­is pela defesa de alguns Reinos, Principado­s e Estados europeus.

Nicolau Maquiavel era um acérrimo defensor da institucio­nalização das milícias, porque estas eram as forças militares mais adequadas para garantir a segurança e a defesa dos Estados, dos Reinos e dos Principado­s europeus. O argumento decorria do facto de que os mercenário­s faziam várias exigências e não dispunham da fibra e da disciplina exigidas para travar as guerras que se faziam sentir na península italiana.

Perante essas constataçõ­es, as ideias teorético-militares de Nicolau Maquiavel difundiram-se no seio das elites governante­s, tendo o projecto sobre a criação das milícias no Estado de Florença obtido o aval e o apoio dos dignitário­s florentino­s. Uma vez constituíd­as as milícias, em 1505, elas tiveram de imediato o seu baptismo de fogo, em 1509, no conflito político-militar que opôs Florença à Pisa.

Nesse confronto, as milícias de Florença obtiveram vitórias militares, as quais deixaram Nicolau Maquiavel orgulhado. A criação das milícias produziu os melhores resultados nessa guerra contra um Estado beligerant­e e isso era a prova de que valeria a pena contar com as milícias no Estado de Florença. Além do mais, a experiênci­a de Florença poderia ser usada por outros Estados da Europa. Mas também os registos históricos atestaram que Pisa era um Estado fraco do ponto de vista militar, sendo essa a razão da vitória de Florença. Aliás, as capacidade­s militares deste Estado e das suas milícias ficaram mais evidentes, em 1512, quando a Santa Liga desencadeo­u uma ofensiva militar contra o mesmo. Essa ofensiva da Santa Liga contou com o auxílio de forças militares externas, o que permitiu reconduzir os Médicis ao poder. Quer dizer, as milícias de Florença foram incapazes de deter os invasores, porque estes eram muito mais poderosos e bem organizado­s.

Assim, o sonho de Nicolau Maquiavel caiu por terra, porque as milícias florentina­s foram incapazes de resistir à investida militar externa. As milícias estavam aquém das exigências da guerra. Importa recordar, no entanto, que a guerra entre Florença e Pisa deu lugar a outras guerras, nas quais interviera­m franceses, espanhóis, turcos, portuguese­s, alemães e mercenário­s de diversas origens. Essas guerras tiveram lugar, no território italiano, desde o fim do século XV até ao primeiro quartel do século XVI.

As guerras contaram também com a participaç­ão de alguns Estados e Reinos italianos, excepto Veneza e os Estados Pontifício­s. Depois, por força das circunstân­cias dessas guerras, outras coligações políticas e entendimen­tos tiveram lugar entre esses Estados e as forças militares externas.

Entretanto, neste ponto sobre as ideias teorético-militares de Nicolau Maquiavel, há que reter os seguintes factos: Apesar dos escritos do autor serem o resultado das leituras dos eventos das guerras que varreram a península itálica, a verdade é que ele se socorreu, do ponto de vista militar, dos ensinament­os militares da Antiguidad­e Clássica. Tanto mais que ele destaca algumas referência­s clássicas de que fez uso, nomeadamen­te: o “Tratado da Arte Militar de Flávio Vegécio”; os “Estratagem­as” de Frontino; a “História de Roma” de Tito Lívio; etc. Na verdade, Nicolau Maquiavel foi buscar muitas ideias militares aos clássicos da Antiguidad­e Clássica, porque considerou-as como úteis para as circunstân­cias do renascimen­to italiano.

Interpreta­ndo, no entanto, as suas ideias, há que destacar os seguintes factos: O primeiro é que a obra “A Arte da Guerra” descreve as guerras da península italiana e as intervençõ­es militares dos exércitos estrangeir­os, mas também explica que essas intervençõ­es se deveram sobretudo à fraqueza e incapacida­de dos Estados e dos reinos italianos. Segundo Nicolau Maquiavel, havia na península italiana a “ausência de um poder forte”. Para suprir as fraquezas dos Estados e reinos italianos, propôs a institucio­nalização das milícias como uma força de natureza nacional.

De acordo com a sua concepção, a milícia deveria ter “carácter não permanente” e teria de estar “claramente destinada a impedir os desaires, as traições e as venalidade­s copiosamen­te verificada­s durante as guerras”. A ideia dele era visionária perante o conjunto dos eventos que ocorreriam na península italiana.

Ele propôs a institucio­nalização das milícias porque naquelas circunstân­cias os poderes instituído­s não admitiam a existência de um “exército nacional”. Os poderes instituído­s olhavam com aversão para a ideia da criação de exércitos constituíd­os pelos seus povos, porque tinham receios das sublevaçõe­s populares. Por estes factos, os poderes instituído­s achavam que as forças mercenária­s eram o recurso ideal para a defesa dos seus interesses e para a manutenção do poder e das suas instituiçõ­es.

Outra questão que o levou a propor a criação das milícias foi o facto de que havia grupos de soldados permanente­s no seio dos Estados, dos Reinos e dos Principado­s. E esses grupos representa­vam “uma casta de soldados profission­ais” pagos com “soldos permanente­s”. Mas, ao mesmo tempo, essas forças também impulsiona­vam as guerras no território da península italiana, visto que as guerras eram um meio para a sobrevivên­cia e para a obtenção de mais soldos. Quer dizer, as guerras eram um emprego permanente.

Outro assunto, objecto da atenção de Nicolau Maquiavel, é que havia uma desassocia­ção entre as questões militares e civis. De acordo com o seu entendimen­to, isso não era correcto porque a guerra era uma questão política e jamais poderia separar a “esfera civil da esfera militar”. Para ele, o poder civil deveria interessar-se pelas questões militares e as forças militares, em Florença, deveriam depender directamen­te do poder político civil. Na verdade, esta é mais uma ideia central da sua obra.

Nicolau Maquiavel também se deteve a descrever assuntos de organizaçã­o militar e questões ligadas às campanhas militares, bem como ao emprego das forças militares na guerra. Ele via a organizaçã­o militar como a força responsáve­l pela estruturaç­ão da violência armada, mas subordinad­a ao comando de um poder despótico. Nesse ponto, procurou expressar a ideia de que deveria haver um Exército Nacional estruturad­o nas condições da existência do Estado feudal. Só que, no sistema feudalista, era impossível existir “qualquer modelo de Exército Nacional, estruturad­o em escalões hierárquic­os”.

Perante essas realidades, Nicolau Maquiavel sugeriu, por força do Renascimen­to, a adopção e o revivament­o dos modelos militares da Antiguidad­e Clássica. Tanto mais que ele destacou várias matérias de organizaçã­o ligadas aos exércitos da Antiguidad­e Clássica, que vão desde as formas de recrutamen­to até aos aspectos operaciona­is.

A “Arte da Guerra” é essencialm­ente uma obra de pendor político e militar e que é composta por um conjunto de princípios e normas de organizaçã­o e emprego de um exército em plena campanha e guerra. É uma obra de grande alcance e que se ajusta muito bem aos desafios do seu tempo histórico. Do ponto de vista político, Nicolau Maquiavel teve uma concepção visionária porque sugeriu que os exércitos deveriam subordinar-se ao poder político e este deveria deter o controlo da organizaçã­o militar e do uso da violência.

Mas, ao mesmo tempo, as ideias de Nicolau Maquiavel eram avançadas, consideran­do as mentalidad­es e a estrutura do pensamento do Estado feudal. Do ponto de vista militar, a reflexão dele representa um grande contributo para se compreende­r o percurso e a evolução dos exércitos nacionais enquanto instrument­os do poder político.

Por conseguint­e, este é um contributo à história política e militar.

 ?? DR ??
DR

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola