Jornal de Angola

A doce e arrepiante voz do bandido

- Edna Dala |

Poucos minutos passavam da 12h00. Era o princípio de uma tarde ensolarada, com um clima fresquinho. Estava eu na famosa Paragem da Padaria, entre a escola Comandante Paiva e o Tanque do Zamba 1, no Cazenga. De repente, ouço uma voz suave e terna a sussurrar bem perto do meu ouvido : “você, aqui, tem que se comportar bem e respeitar todo o mundo. Entendeste né?”.

Com os meus botões disse para mim mesma: Rheee… mas quem é esse, que a essa hora do dia está a falar assim bem baixinho no meu ouvido?

Antes mesmo de virar o rosto para ver quem era o dono da doce, porém malévola voz, senti um arrepio do alto da cabeça à planta dos pés. O meu sexto sentido alertoume: tratava-se da presença do maligno.

Levantei o rosto, deparei-me com uns olhos avermelhad­os e meio entorpecid­os, de um jovem de quase 30 anos. Uma cicatriz bem marcante “enfeitava-lhe” o rosto. O corte do seu cabelo lembrava um cão raivoso e a sua estatura era média e robusta.

O primeiro instinto foi de me impor e mostrar que não tinha medo do sacana. Mas aqueles olhos avermelhad­os, sob o efeito da “diamba”, como diz a minha mãe, deixaram-me ciente de que o jovem não estava para brincadeir­as.

Enquanto olhava para o servo do mal, a minha mente trabalhava a 360 graus, a voz que ecoava do meu intelecto contrastav­a com os meus actos. O meu interior gritava para despertar o espírito guerreiro que me é caracterís­tico, mas a voz da razão apelava a manter a calma e cooperar com o bandido.

Atendendo à razão, simulei calma e olhei-o nos olhos. Como quem percebera a lógica do meu raciocínio, o lúmpen continuou com o seu sermão: “Eu sou o Telmo. Já ouviste falar do grupo xxx sei lá das quantas?”, perguntou. Eu, com tudo o que vivi, já nem sequer me lembro do nome horroroso da quadrilha.

“Não”, respondi.

“Sou um dos responsáve­is desse território. Se te comportare­s mal vais te arrepender. Vou te espetar uma merda, vou te fatigar e ninguém vai te acudir. Agora, para mostrares que vais colaborar dá aqui um kule”, ordenou, enquanto eu olhava petrificad­a para as mãos do jovem, movida por muita raiva e indignação. Depois de alguns segundos, que pareceram intermináv­eis, correspond­i à saudação kulesa. A essa altura, crescia a minha vontade de chorar.

Apesar de calmo e sem demonstrar nervosismo, o Telmo não conseguia camuflar a maldade que o seu rosto denunciava.

Com o corpo todo arrepiado diante daquele cenário, disse a mim mesma: “o que se passa contigo jovem? A senhora até é uma Mulher destemida…” Concentrad­a, silenciei o modo rabugenta e decidi colaborar com o Telmo.

Com a mente num turbilhão de ideias e o corpo a correspond­er de forma mecânica, enquanto matutava com o meu interior, apercebi-me que o Telmo não estava só. Afinal eram dois bandidos.

“Oh, Jesus! Agora é que está bom”, pensei. O segundo bandido pareceu-me mais sereno e menos drogado. De cabelos pintados a loiro, manteve-se quase o tempo todo atrás de mim, para controlar os meus movimentos.

“Para nos meter feliz, agora tira já o kumbú e começa a colaborar”, ordenou o Telmo. Sorte ou azar, eu tinha apenas 200 kzs em mãos, porque a viatura estava com o mecânico, aí nas imediações, para trocar filtros. “Não tenho dinheiro, as máquinas estão sem valores”, respondi.

“Não tens dinheiro?”, inquiriu, começando a ficar irritado. No mesmo instante, pondo em seguida as mãos nos meus ombros, como se de um amigo ou namorado se tratasse, disse:

“Vem aqui”.

Nesse instante, a voz da razão calou-seme. Irritada, ordenei-lhe, aos gritos, que tirasse os braços dos meus ombros. Por instantes esqueci que ele era bandido e eu sua vítima. Detesto abraços de desconheci­dos. Odeio mesmo.

Olhou para mim meio inquieto mas, ainda assim, não baixou a guarda. Encaminhou­me até um moto-táxi e ordenou: “vais subir nessa motorizada, ele vai me dar um kumbú. Depois tira no multicaixa para lhe devolver”.

Com medo, o moto-taxista disse que não tinha dinheiro e, na primeira oportunida­de, pós-se em fuga. Houve ainda uma segunda tentativa, sem êxito.

As duas tentativas fracassada­s deixaram Telmo com muita raiva. Começou a gritar comigo: “filha disso e daquilo… não queres colaborar, sua p… Vou te fatigar, merda. Não tens dinheiro? Estás a gozar né, sua…”

Eram tantos apelidos ofensivos, que podiam ser usados em dois anos ou mais. Entretanto, suportei todos naquele dia. Enquanto isso, revirei o olhos a procurar os agentes que, horas antes, estavam na paragem. Nada! Para deixar claro que não estava aí para fazer amigos, Telmo interpelou um mais velho que fazia serviço de táxi. Com o dedo indicador no rosto do senhor, disse: “mais velho, confirma aí nessa mboa quem é o chefe desse mambo!”.

O mais velho, coitado, cabisbaixo, entrou para o carro, trancou-se e disse que não sabia, tendo arrancado, de imediato, a viatura. “Agora é que estou tramada”, pensei.

Foi quando Telmo, de repente, apercebeu-se que eu tinha o telefone na mão. Com os olhos a brilharem, como se tivesse descoberto o ouro, disse: “Já que não queres colaborar, dá aqui essa mer... sua cabra...”

Visivelmen­te aborrecido, Telmo levou o meu aparelho A20, companheir­o de jornada laboral.

Que raiva! Não apenas pelo aparelho, porque com o trabalho e algumas economias comprase outro. A raiva era resultante da perda das minhas memórias registadas naquele telefone, que muitas vezes foi usado como gravador e computador, para produzir textos. Não era justo que, de repente, aparecesse um sacana para roubar o meu meio de trabalho. Ao bandido Telmo, um kule, já que não o posso encher de bofetadas nem obrigá-lo a devolver o meu telefone.

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