Sabotagens
Tomo de empréstimo, mas não sem propósito, uma expressão ou um conceito de Economia Política, muito recorrente também entre nós por altura em que alimentávamos o sonho de um Estado Socialista. Se alguma coisa corria mal, atirava-se com o conceito: “é sabotagem”. Todas as ideias eram boas, quando mal executadas só havia uma explicação: “sabotagem”. Então quando se chegava à economia, “a sabotagem” equivalia a metade do produto interno bruto.
Seja como for, esse excesso metáfora tinha alguma razão de ser porque vivíamos um tempo de um projecto comum, conceito, entretanto, privatizado por alguns. E nesse tempo de infindáveis “sabotagens” ao projecto comum, muitas eram as coisas que ainda assim corriam bem. Talvez porque éramos todos menos solipsistas. Menos umbiguistas, e, quicá, com menos acesso a mais dinheiro. Talvez porque havia maior responsabilização e menos o perigoso espírito do deixa-fazer, deixa-andar que isto passa, tolera, aguenta, e esquece-se lá que isto pode ficar tudo lixado, nessa altura teremos sempre os “sabotadores”.
Naquele tempo, e ao contrário do poema, nem tudo era bonito, mas havia coisas que funcionavam.
Estava há dias numa conferência internacional e houve uma falha na conexão de Internet, o que dificultou a intervenção de um dos oradores que falava a partir do exterior. E o moderador disparou, quando a situação se repetia e se prolongava o confrangedor silêncio por parte de quem devia assumir algum tipo de responsabilidade, duro e certeiro: “se isto fosse no tempo do partido único, rolavam cabeças”, enfim, mais coisa menos coisa, mas o sentido é esse.
Não temos um deus punitivo dentro de nós, não é isso que nos inspira, mas a verdade é que naquele tempo havia um forte compromisso com a excelência e com o rigor na execução das tarefas, sendo que certas falhas eram efectivamente sancionadas, também para que não se voltassem a repetir.
O que se passa agora é exactamente o contrário. Há um laxismo preocupante que provoca a degradação dos serviços, ante o silêncio cúmplice de alguns responsáveis por estes mesmos serviços.
Por isso, comecei o texto com a provocatória expressão da “sabotagem”. Se quisermos ser ainda mais específicos é a “sabotagem” económica o que fazem alguns grupos que se dedicam à destruição sistemática de bens e património público, com os fins mais diversos.
Por exemplo, como podemos entender que, não obstante toda a discussão que possamos fazer sobre a qualidade das obras das estradas nacionais, haja grupos identificados de pessoas que se dediquem, com picaretas nas mãos, a destruir as estradas para acelerar a sua degradação, conscientes da ineficiência dos serviços de manutenção?
Um outro exemplo, que vai sendo mais escabroso, é o dos postos de iluminação pública e cabines eléctricas cujo material, quando não é vandalizado, é mesmo roubado para depois ser comercializado, e isso é feito nas barbas das entidades de segurança e ordem pública. Para acentuar a perplexidade e o escândalo, tudo isto se passou, há pouco tempo, na Praça da Independência, no coração de Luanda, um ponto demasiado público e onde ninguém diria que uma coisa destas pudesse acontecer.
Continuando, a corrupção é, acima de tudo, um acto de “sabotagem” que prejudica a economia em larga escala. Ainda há dias alguns armadores de pesca queixavam-se das dificuldades porque passam para abastecer as suas embarcações e o quanto essas dificuldades afastam alguns que procuram irromper em certos segmentos de negócio, tomados por mafias que vão controlando e afastando “estranhos”.
Armadores nacionais preferem alugar a terceiros do que manter-se em actividades… e depois vemos estupefactos e incrédulos o que se passa no Namibe, onde os arrastões delapidam para o estrangeiro o nosso pescado, sem rei nem roque, como se não houvesse um mar que nos pertence e uma economia azul que tem de estar nas nossas mãos.
Só pode ser “sabotagem” esta coisa de armadores angolanos que preferem actuar noutros mares ou alugar os seus barcos do que “aturar estas chatices”.
A sabotagem resolve-se com responsabilização. O combate ao entranhado cabritismo faz-se sem desculpas, sem sabotagem. Temos de parar de complicar e burocratizar para tirar vantagens, isso, sim, é “sabotagem”. Como a evitar? É simples, basta agir de acordo com a lei e não de acordo com as oportunidades que a lei nos dá de não seguirmos de acordo com a lei.
Gostaria de terminar esse artigo com uma breve reflexão sobre a geopolítica do covid-19, dada a pressa com que alguns Estados ocidentais encerraram as suas fronteiras aos voos provenientes da vizinha África do Sul devido à descoberta de uma nova variante.
Não só os estudos são inconclusivos quanto à sua perigosidade, como, para mais, antes do anúncio da nova variante, os países ocidentais já se confrontavam com um aumento do número de casos e do índice de contágios, o chamado Rt, com quartas e quintas vagas da pandemia, por sinal, muito superiores ao que se passa na África do Sul, mesmo com a nova variante.
Por tudo isso, há os mesmos vícios no olhar e na abordagem quando o assunto é África e como continuamos a piscar o olho a uma certa teoria da conspiração no que tem a ver com aparecimento ou gestão global da pandemia. É caso para dizer... temos gato escondido com o rabo de fora e esse gato não é africano, nós por cá é mais leopardos.