A detenção de João Rendeiro salvou a justiça portuguesa?
A detenção de João Rendeiro não me faz esquecer que alguém o deixou fugir, depois do banqueiro ter sido condenado e de, esgotados os recursos, dever estar a cumprir pena numa cadeia portuguesa.
A detenção de João Rendeiro não me faz esquecer que o processo que levou à sua condenação ter resultado de um inquérito datado de Fevereiro de 2010 sobre crimes cometidos em 2008. A acusação do Ministério Público saiu em 2014 e só em 2021, 11 anos depois do início da investigação, é que dos tribunais portugueses saíram decisões definitivas, transitadas em julgado.
A detenção de João Rendeiro não me faz esquecer outros processos e julgamentos em que ele é arguido e que começaram a ser inquiridos na mesma altura, mas que não foram ainda concluídos.
A detenção de João Rendeiro não me faz esquecer todas as vítimas financeiras que acreditaram nele e foram prejudicadas, direta ou indiretamente, pelos seus crimes.
A detenção de João Rendeiro não me faz esquecer os vários poderosos que, até à sua queda em desgraça, rasgavam as vestes pela honorabilidade do “banqueiro dos ricos”, como era chamado.
A detenção de João Rendeiro não me faz esquecer o incompetente, mas também desumano, arrastar de processos de gente acusada como Ricardo Salgado, José Sócrates, Joe Berardo, entre muitos outros que se envolveram na órbita sob suspeita do planeta BES e respetivos satélites. Quantas vidas teremos de viver para saber o que a Justiça, finalmente, irá decidir nestes casos?
Adetençãodejoãorendeironão mefazesqueceroexemplodeoliveira e Costa, falecido o ano passado, presidente do banco BPN, detido em 2008, em prisão domiciliária desde 2009, condenado pela primeira vez a 14 anos de cadeia em 2017 e que morreu em casa o ano passado. Pelo meio, em Novembro de 2018, o Tribunal da Relação, ao apreciar um recurso, percebeu que no julgamento de primeira instância os juízes se tinham esquecido de decidir sobre um dos crimes da acusação!
A detenção de João Rendeiro não me descansa sobre a sensatez do andamento do processo que levou ontem à detenção de Manuel Pinho, ex-ministro da Economia.
A detenção de João Rendeiro não me faz esquecer a quantidade de crimes de colarinho branco que prescreveram nas últimas décadas - como a noticiada ontem pelo jornal Público, relativa a negociações de Parcerias Público-privadas em 2009 e 2010, que envolveram vários governantes dessa época.
A detenção de João Rendeiro não me faz esquecer a utilização sistemática da comunicação social para condenar pessoas na praça pública antes de elas irem a julgamento nos tribunais e a utilização do segredo de justiça como arma política - tudo venenos que matam a credibilidade da Justiça e vitimam potenciais inocentes.
A detenção de João Rendeiro lembra-me que a Justiça, agora, é um espetáculo como o futebol, com o instant replay pronto a disparar - quantas vezes mais terei de ver na televisão o homem, em pijama, a ser detido?
A detenção de João Rendeiro não me faz esquecer que a Assembleia da República, graças aos partidos do chamado “arco do poder” - PS, PSD e CDS - nunca conseguiu legislar de forma constitucional sobre enriquecimento ilícito ou para penalizar quem mete dinheiro em offshores.
A detenção de João Rendeiro não me faz esquecer que o poder político não demonstra nem capacidade nem vontade de atacar seriamente o problema da corrupção de grande dimensão - atitude que um eventual governo de bloco central PS/PSD, resultante das eleições de 30 de Janeiro, irá agravar, dada a natureza dessa união de interesses “obrigar” a eliminar instrumentos fiscalizadores políticos, económicos, judiciais ou dos media. Numa altura de circulação de milhares de milhão de euros vindos da União Europeia, um bloco central a governar o país seria como meter uma raposa numa capoeira...
A detenção na África do Sul do banqueiro João Rendeiro é uma pequena boa notícia para a justiça portuguesa, mas não chega para me fazer esquecer uma enorme e assustadora lista de horrores.
*Jornalista. Texto saído no Diário de Notícias e escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico