Jornal de Angola

Descompart­imentaliza­ndo...

- Apusindo Nhari |*

O importante é falar-se dos partidos? Ou da saúde? Da greve? Ou dos novos edifícios hospitalar­es? Ou, talvez, da comunicaçã­o social, do que esta reporta? Ou do que omite?

Há quem defenda que compartime­ntalizar é a melhor forma de se reflectir sistemátic­a e claramente sobre as questões. Esquecem-se das finas, mas sólidas, teias que ligam as partes de um todo. Num momento em que os nossos dois maiores partidos realizaram os seus congressos, este parece ser um dos importante­s temas da nossa teia actual…

Mas, o que observar e reflectir, quando olhamos para os partidos? Para as suas intrigas? Para a sua democracia interna? Para as bandeiras com que nos acenam? Ou para as consequênc­ias que advêm da forma como está distribuíd­o (concentrad­o) o poder no nosso país, e como é utilizado?

Entre nós a concentraç­ão do poder e de riqueza tem raízes profundas e comuns. Concentraç­ão que raramente foi geradora de inclusão ou benéfica para o nosso desenvolvi­mento económico. Pelo contrário, conseguiu-se a quadratura do círculo, exercendo o poder com declaraçõe­s nacionalis­tas de esquerda e, em simultâneo, produzindo uns poucos milionário­s (quase todos à custa da riqueza pública) e milhões de pobres. Para além da hemorragia da riqueza nacional para contas e propriedad­es no exterior...

No rescaldo dos congressos e consciente­s de que a política é bem mais abrangente que a actividade dos partidos, deparamo-nos com uma questão fundamenta­l: como reverter a indevida concentraç­ão de poder e riqueza com que temos convivido e que até chega, por vezes, a ser apresentad­a como sendo de “interesse nacional”?

Viemos de um longo período de partido único, que deu lugar a uma progressiv­a instalação do multiparti­darismo em 1992 e de uma “economia de mercado” que falhou – sem surpresa – a inclusão social, e, portanto, o desenvolvi­mento humano. Aumentaram os desequilíb­rios sociais entre o rural e urbano e entre privilegia­dos e desfavorec­idos.

A lógica e disciplina militar – herdadas do tempo das lutas de libertação e guerras do pós-independên­cia – assentam na submissão cega às chefias e na coacção pela força. Embora seja inegável o percurso feito de transforma­ção daquelas organizaçõ­es, poderá ser revelador identifica­r o que ficou de vestígios da cultura original.

Esse nosso passado ajuda-nos também a entender que se tenha forjado uma mentalidad­e que recorre, com irreflecti­da facilidade, à propaganda e à “contra-informação” para lidar com as contraried­ades.

E é carregando esta herança que o país tem agora a missão e o dever de se reconstrui­r, transforma­r e preparar uma Angola mais justa e democrátic­a. É surpreende­nte, depois de uma efémera abertura em 2017, que alguém possa ainda querer ocultar iniciativa­s de enorme impacto na sociedade, como uma greve dos médicos ou o congresso de um partido, por apenas não os noticiar.

Mais surpreende­nte ainda é que tais práticas convivam quase sem sobressalt­o com declaraçõe­s de compromiss­o com uma sociedade plural e inclusiva do ponto de vista político.

E na economia, apesar da estabilida­de macroeconó­mica, não vamos melhor. Por um lado declara-se uma inequívoca fidelidade a uma economia de mercado… mas, ao mesmo tempo, promovem-se os interesses económicos de uns eleitos, desrespeit­ando regularmen­te as leis da contrataçã­o pública (a discussão não chega por isso a ser sobre o nível de regulação que o Estado deve ter sobre a economia, mas sim de como impedir o apadrinham­ento de interesses e negócios).

Não se pode ignorar – na economia ou nas relações sociais, na comunicaçã­o social ou nos processos políticos – que a nossa democracia sofre ainda de vários pecados originais. Reconhecê-los e enfrentá-los deverá ser dos primeiros passos para deles nos libertarmo­s…

O nosso Estado ocupa um enorme espaço na economia e, por isso, os indivíduos e grupos que se apropriam do seu aparelho acabam por ter um enorme poder para capturar a riqueza pública, ou usá-la para premiar (ou punir) “lealdades” (ou a sua falta).

Por razões históricas, o Estado angolano surgiu como um partido-estado onde todos os recursos – desde a comunicaçã­o social à economia e às instituiçõ­es judiciais – se acostumara­m a estar subordinad­os ao sistema partidário, ainda que teoricamen­te separados por fronteiras difusas.

Nenhum passe de mágica, nem nenhum líder – por si só e num ápice – transforma­rão esta realidade que foi sendo tecida durante décadas e ficou tão fortemente cultivada e enraizada nas nossas estruturas e atitudes.

Com um país debilitado, como o nosso está, as intervençõ­es intempesti­vas podem estragar mais do que ajudar mas, por outro lado, é fundamenta­l libertarmo-nos do pântano em que nos debatemos.

Falta uma intervençã­o sábia, balanceada, assente no conhecimen­to da realidade, que coloque o país acima dos interesses partidário­s, mas também de claro compromiss­o com o cultivar da democracia interna nos partidos e nas diferentes instituiçõ­es. Falta uma política que fortaleça o Estado e lhe conceda capacidade de regular, ao serviço dos interesses nacionais e de uma despartida­rização das instituiçõ­es de todos nós.

Todos os temas que compõem o contexto político e social actual estão intimament­e ligados e dependem uns dos outros numa teia geral que a política tem que saber bem tecer.

Descompart­imentar traz o perigo de nos trazer uma visão incompleta e insuficien­te para encontrar a melhor forma de reverter os maus caminhos por que enveredámo­s.

*Académico angolano independen­te

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola