“January 6th” – a verdadeira ameaça à democracia
Como muitos cidadãos de diferentes países do mundo (eu diria “de todos”), torci pela eleição de Joe Biden em 2020, não porque tivesse quaisquer ilusões sobre a Política Externa dos EUA caso ele vencesse, como acabou por ocorrer, mas porque a reeleição de Donaldtrump, um declarado autocrata, racista, misógino, homofóbico e fascista, seria um péssimo exemplo para a democracia no resto do planeta.
De facto, não se pode pedir a nenhum império que deixe, talvez por artes mágicas, de ser imperial, mas, no caso dos EUA, a eventual capitulação da sua inegável e vibrante (embora imperfeita) democracia interna seria inevitavelmente uma espécie de luz verde a todos os bolsonaros deste mundo, qualquer que seja a sua cor.
O actual Presidente americano parece ter entendido o significado global da sua vitória, ao colocar o tema da democracia no centro da agenda universal. Lamentavelmente, trata-se, ao que tudo indica, apenas de aparência, pelas razões que a seguir indico.
Primeiro, a maneira como Biden tem tratado desse tema não é muito diferente da de muitos dos seus antecessores, mantendo-se a estratégia de usar a ameaça da força, inclusive militar, para impor a democracia liberal (a extensão da OTAN ao Leste europeu e até aos confins da Ásia demonstra-o, para quem achar a afirmação um exagero).
Segundo, ele não tem dado sinais consistentes de preocupação com a própria democracia interna dos Estados Unidos, que vive um momento de notória degradação e ameaça, não podendo, pois, ser um exemplo apropriado para o resto do mundo.
Dentro de dois dias, faz um ano que ocorreu na principal democracia do mundo uma tentativa de Golpe de Estado. Eu estava lá e não queria acreditar nas imagens que via, em directo, na televisão. Mas era tudo pura verdade factual. O golpe – que, na realidade, foi muito mal amanhado – falhou, mas o que preocupa muita gente é que, um ano depois, nem os seus responsáveis parece que venham a ser punidos nem os esforços para subverter a democracia americana cessaram, pelo contrário, prosseguem à vista de todos.
“À medida que o aniversário da invasão do Capitólio se aproxima, nota-se clima de desânimo com a percepção de que o 6 de Janeiro foi um ensaio” – escreveu no último dia 22 de Dezembro a correspondente nos EUA do jornal Folha de São Paulo, Lúcia Guimarães. Ela recordou que, igualmente em Dezembro, três generais na reserva publicaram um artigo de opinião no Washington Post sob o título “Os militares têm de se preparar para a insurreição de 2024” [ano em que terão lugar as próximas presidenciais americanas].
Coincidentemente, também a 22 de Dezembro do passado ano, o The Guardian publicou um longo artigo assinado por Jason Stanley e que é obrigatório ler sobre as acções em curso nos Estados Unidos, impulsionadas pelos republicanos e pela Extrema-direita, para subverter a democracia e instaurar um sistema fascista no país.
Nesse artigo – “America is now in fascism´s legal phase” -, pode ler-se, por exemplo, que nos estados republicanos (a maioria do país) há um declarado processo de gerrymandering, a fim de criar dificuldades a determinadas comunidades para exercerem o seu direito ao voto; que 45 estados aprovaram 230 leis criminalizando os protestos, cujo alvo são os movimentos negros e as organizações progressistas;e que em 29 estados foram aprovadas leis proibindo as escolas de debater assuntos como racismo ou género.
Stanley não tem dúvidas: tudo isto faz parte do crescimento social e político, que vem ocorrendo há décadas, do movimento fascista nos EUA. O autor mostra também os profundos vínculos existentes entre o fascismo e o racismo no país. Segundo ele, Trump mostrou que esse movimento pode chegar ao poder, mas o mesmo não só o precede, como há-de sobreviver-lhe.
Esta é a verdadeira ameaça à democracia, não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. Se a principal potência mundial soçobrar ao fascismo, será talvez o início do fim.
A maneira como Biden tem tratado desse tema não é muito diferente da de muitos dos seus antecessores, mantendo-se a estratégia de usar a ameaça da força, inclusive militar, para impor a democracia liberal (a extensão da OTAN ao Leste europeu e até aos confins da Ásia demonstra-o, para quem achar a afirmação um exagero)
* Jornalista e escritor