Teremos um Ano Novo?
O vírus do individualismo radical é o vírus mais difícil de derrotar (Papa Francisco, encíclica Fratelli Tutti, 2020)
É difícil escrever no Ano Novo quando não se sente em parte nenhuma a novidade. Por certo, a humanidade foi capaz de inventar uma vacina contra esta pandemia que monopoliza há dois anos as nossas atenções e os nossos esforços. Mas a distribuição desigual das vacinas, a fim de deixar intocados os lucros das farmacêuticas, fez que continuássemos à mercê de variantes que o vírus cria a toda à hora no grande terreno de provas que lhe foi abandonado no seio das imensas populações por vacinar.
Passar para 2022 do mesmo modo furtivo com que nos esgueirámos de 2020 para 2021 parece uma exasperante repetição, como se fosse um eterno retorno sem qualquer possibilidade de amor fati. Como desejar, segundo os ensinamentos de Nietzsche, que este mesmo momento seja vivido por nós por toda a eternidade, ou ao menos por toda a duração da nossa vida humana? E, no entanto, uma plena aceitação da vida até ao fim deveria levar-nos a aceitar este ponto de vista, a ponderar que é porque sabemos hoje melhor enfrentar este desafio que o sofremos, não de modo passivo, como se viveu a gripe espanhola, mas sujeitos a um ativismo profilático que invade e subjuga as nossas vidas, é certo, mas que procura responder à situação.
Entre nós, os partidos à esquerda do PS tiveram entretanto a ideia de génio de fazer cair o governo, não viabilizando o Orçamento. Entendo que, face à crise social que se avizinha, prefiram estar a combater um governo de direita do que continuando a apoiar um governo que não consideramsuficientementeàesquerda e resoluto quanto se deve nas decisões. Entendo, mas não compreendo nem aceito. Estamos demasiado vulneráveis para nos permitirmos entrar de novo no ciclo dos cortes e privatizações, com que se distinguiu o governo subrogado da troika e a que se reduz infelizmente o pensamento da nossa direita, tão estagnado nas utopias ultraliberais dos anos 1980 como a esquerda se deixou estagnar muito tempo nos mecanicismos de um marxismo de cartilha.
Hoje a esquerda tornou-se, na suaprática,social-democratamais ou menos avançada, enquanto a direita se divide entre thatcherianos do último dia e musculados racistas de todos os tempos. Lenine hoje por certo não reconheceria os seus, eivados que estariam aos seus olhos de "cretinismo parlamentar", mas Hayek e Friedman por um lado, Mussolini ou Salazar por outro, facilmente reconheceriam os seus filhos nas diferentes fileiras da nossa direita e até Hitler só lamentaria que se ficasse apenas pelos ciganos...
Ainda aqui, Nietzsche teria razão. Amor fati! O confronto entre tantas ideias velhas e desligadas dos problemas atuais vai forçosamente levar as novas gerações a procurarem outros caminhos e novos paradigmas. Os jovens liberais descobrirão um dia que, tal como o comunismo pôde levar ao gulag, o liberalismo pôde também fazer crescer Madoffs, Salgados e Rendeiros, que transformaram o livre mercado num jogo de póquer financeiro. Os jovens socialistas descobriram já (como Mário Soares o fez, nos últimos anos da sua vida) que o inimigo dos socialistas não é a iniciativa privada produtiva, mas sim a elite financeira especulativa, fugitiva dos impostos e destruidora da economia real, e que nem os adversários principais dos socialistas estão hoje à esquerda nem os seus amigos podem ser os mesmos amigos de todas as troikas.
Esperemos e lutemos por que de todos estes invernos do nosso descontentamento não venha ainda mais avassalar-nos o vírus fascista. É certo que, segundo a melhor ciência política, o fascismo nunca existiu (parece que nem na Itália...). Mas, parafraseando o provérbio, "fia-te na ciência política e não corras e verás o que te acontece!"
Começamos o ano com uma pandemia que ninguém quer e umas eleições que ninguém quis. Resta-nos manter o amor fati, e responder com o nosso querer ativo a tudo aquilo que não quisemos. Assim poderemos um dia vir a ser senhores dos nossos destinos.
Feliz Ano Novo!
Texto saído no jornal Diário de Notícias e escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico
*
Começamos o ano com uma pandemia que ninguém quer e umas eleições que ninguém quis. Resta-nos manter o amor fati, e responder com o nosso querer ativo a tudo aquilo que não quisemos. Assim poderemos um dia vir a ser senhores dos nossos destinos. Feliz Ano Novo!