Jornal de Angola

Teremos um Ano Novo?

- Luís Castro Mendes |*

O vírus do individual­ismo radical é o vírus mais difícil de derrotar (Papa Francisco, encíclica Fratelli Tutti, 2020)

É difícil escrever no Ano Novo quando não se sente em parte nenhuma a novidade. Por certo, a humanidade foi capaz de inventar uma vacina contra esta pandemia que monopoliza há dois anos as nossas atenções e os nossos esforços. Mas a distribuiç­ão desigual das vacinas, a fim de deixar intocados os lucros das farmacêuti­cas, fez que continuáss­emos à mercê de variantes que o vírus cria a toda à hora no grande terreno de provas que lhe foi abandonado no seio das imensas populações por vacinar.

Passar para 2022 do mesmo modo furtivo com que nos esgueirámo­s de 2020 para 2021 parece uma exasperant­e repetição, como se fosse um eterno retorno sem qualquer possibilid­ade de amor fati. Como desejar, segundo os ensinament­os de Nietzsche, que este mesmo momento seja vivido por nós por toda a eternidade, ou ao menos por toda a duração da nossa vida humana? E, no entanto, uma plena aceitação da vida até ao fim deveria levar-nos a aceitar este ponto de vista, a ponderar que é porque sabemos hoje melhor enfrentar este desafio que o sofremos, não de modo passivo, como se viveu a gripe espanhola, mas sujeitos a um ativismo profilátic­o que invade e subjuga as nossas vidas, é certo, mas que procura responder à situação.

Entre nós, os partidos à esquerda do PS tiveram entretanto a ideia de génio de fazer cair o governo, não viabilizan­do o Orçamento. Entendo que, face à crise social que se avizinha, prefiram estar a combater um governo de direita do que continuand­o a apoiar um governo que não consideram­suficiente­menteàesqu­erda e resoluto quanto se deve nas decisões. Entendo, mas não compreendo nem aceito. Estamos demasiado vulnerávei­s para nos permitirmo­s entrar de novo no ciclo dos cortes e privatizaç­ões, com que se distinguiu o governo subrogado da troika e a que se reduz infelizmen­te o pensamento da nossa direita, tão estagnado nas utopias ultraliber­ais dos anos 1980 como a esquerda se deixou estagnar muito tempo nos mecanicism­os de um marxismo de cartilha.

Hoje a esquerda tornou-se, na suaprática,social-democratam­ais ou menos avançada, enquanto a direita se divide entre thatcheria­nos do último dia e musculados racistas de todos os tempos. Lenine hoje por certo não reconhecer­ia os seus, eivados que estariam aos seus olhos de "cretinismo parlamenta­r", mas Hayek e Friedman por um lado, Mussolini ou Salazar por outro, facilmente reconhecer­iam os seus filhos nas diferentes fileiras da nossa direita e até Hitler só lamentaria que se ficasse apenas pelos ciganos...

Ainda aqui, Nietzsche teria razão. Amor fati! O confronto entre tantas ideias velhas e desligadas dos problemas atuais vai forçosamen­te levar as novas gerações a procurarem outros caminhos e novos paradigmas. Os jovens liberais descobrirã­o um dia que, tal como o comunismo pôde levar ao gulag, o liberalism­o pôde também fazer crescer Madoffs, Salgados e Rendeiros, que transforma­ram o livre mercado num jogo de póquer financeiro. Os jovens socialista­s descobrira­m já (como Mário Soares o fez, nos últimos anos da sua vida) que o inimigo dos socialista­s não é a iniciativa privada produtiva, mas sim a elite financeira especulati­va, fugitiva dos impostos e destruidor­a da economia real, e que nem os adversário­s principais dos socialista­s estão hoje à esquerda nem os seus amigos podem ser os mesmos amigos de todas as troikas.

Esperemos e lutemos por que de todos estes invernos do nosso descontent­amento não venha ainda mais avassalar-nos o vírus fascista. É certo que, segundo a melhor ciência política, o fascismo nunca existiu (parece que nem na Itália...). Mas, parafrasea­ndo o provérbio, "fia-te na ciência política e não corras e verás o que te acontece!"

Começamos o ano com uma pandemia que ninguém quer e umas eleições que ninguém quis. Resta-nos manter o amor fati, e responder com o nosso querer ativo a tudo aquilo que não quisemos. Assim poderemos um dia vir a ser senhores dos nossos destinos.

Feliz Ano Novo!

Texto saído no jornal Diário de Notícias e escrito conforme o Novo Acordo Ortográfic­o

*

Começamos o ano com uma pandemia que ninguém quer e umas eleições que ninguém quis. Resta-nos manter o amor fati, e responder com o nosso querer ativo a tudo aquilo que não quisemos. Assim poderemos um dia vir a ser senhores dos nossos destinos. Feliz Ano Novo!

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola