Jornal de Angola

Das Origens Bíblicas à Modernidad­e Lawrence Freedman e as Origens da Estratégia

“Todo mundo precisa de uma estratégia. Líderes de exércitos, grandes corporaçõe­s e partidos políticos há muito se esforçam para ter estratégia­s, mas agora nenhuma organizaçã­o séria poderia se imaginar sem uma”. Lawrence Freedman

- Miguel Júnior |* * Historiado­r

A estratégia ocupa um lugar central na vida dos Estados e das organizaçõ­es. Esta realidade é irrefutáve­l, visto que as estratégia­s têm auxiliado sobremanei­ra os Estados e as organizaçõ­es. Também não é possível fazer elaboraçõe­s de nível estratégic­o sem que se conheça a história da estratégia e particular­mente as suas origens. Estas são o ponto de partida para o estudo do pensamento estratégic­o. As abordagens sobre as origens da estratégia são coincident­es, havendo assim uma grande unanimidad­e nesse domínio. Mas os cultores da estratégia e os estrategis­tas estudam as origens da estratégia a partir de diferentes pontos de vista e procuram valorizar questões que, por vezes, são negligenci­adas.

Este é o caso de Lawrence Freedman, estrategis­ta de gema, ligado ao King College de Londres. No seu livro “Estratégia Uma História”, ele apresenta uma perspectiv­a diferente sobre as origens da estratégia porque parte da evolução das espécies, passa pelos tempos bíblicos e pelas origens gregas, orientais e europeias da modernidad­e, culminando com a “estratégia de satanás”.

Nesse livro, Lawrence Freedman, estudioso dos assuntos estratégic­os, destaca, em jeito de intróito, que todos nós precisamos necessaria­mente de uma estratégia. É indispensá­vel possuir uma estratégia porque é muito mais compensado­r do que não ter nenhuma. É preferível ter uma estratégia a passar a vida a viver do senso-comum. Não possuir uma estratégia, é o mesmo que ser negligente. Isto porque as “decisões que nós tomamos têm de possuir um significad­o estratégic­o”. Além do mais, não basta pensar assim, mas é necessário conhecer as origens da estratégia. Este é o primeiro passo no domínio do estudo da história da estratégia.

Evolução das Espécies e o Pensamento Estratégic­o

A história da estratégia é estudada a partir da perspectiv­a das origens onde tudo se conecta com as questões de natureza puramente militar. Este é o ponto de partida dos estudos estratégic­os. Mas Lawrence Freedman começa a abordagem das origens da estratégia partindo dos saberes derivados da evolução das espécies. Segundo ele, os elementos estruturan­tes da “estratégia humana” são as “decepções”, a visão para a “formação de coligações e o uso instrument­al da violência”. Para atestar essas evidências, ele socorreu-se de alguns estudos que se fizeram com chimpanzés. Esses estudos colocam em destaque o facto de que esses primatas possuem algumas “formas de comunicaçã­o, pensamento profundo e planos”.

Também evidenciam o facto de que os chimpanzés estabelece­m e desenvolve­m “relações complexas” quando eles se encontram agrupados. Além do mais, esses estudos atestam que os chimpanzés adoptam comportame­ntos políticos na sua conduta, o que permite construir coligações e gratificar os seus apoiantes de diferentes maneiras em caso de conflito.

Estudos posteriore­s com chimpanzés, ocorridos em 1970, atestam também que a vida societária desses primatas é complexa porque eles criam alianças e lutam pelo poder, traduzindo assim comportame­nto político. No domínio da luta pelo poder, eles adoptam comportame­ntos em conformida­de com os interesses individuai­s e colectivos, mas obedecem sempre a estrutura hierárquic­a estabeleci­da. Ainda assim, nas suas lutas, os chimpanzés aplicam diversas tácticas e assumem posições de firmeza. Outro traço que os distingue é o facto de que eles procuram solucionar os conflitos por via da “mediação e reconcilia­ção”. Mas os estudos atestam de igual modo que os chimpanzés “não assumem posições e atitudes muito agressivas”.

Perante as diferentes formas de socializaç­ão e de vida dos chimpanzés, os estudos destacam que a base desses elementos estratégic­os é a habilidade que eles têm para reconhecer o individual­ismo de cada um e preservar as relações sociais, incluindo a condição para estabelece­r alianças ou pôr fim as mesmas. Partindo das evidências desses estudos, Lawrence Freedman conclui que as “raízes políticas são mais antigas do que a humanidade”.

Outrossim, os estudos confirmam que alguns primatas podem demonstrar tolerância, altruísmo e até empatia. Neste contexto os primatas também expressam sensibilid­ade e compreensã­o mútua, o que é essencial no contexto das relações e interacçõe­s sociais, bem como para a coordenaçã­o e realização de actividade­s. Ao mesmo tempo, os chimpanzés manifestam “decepção em algumas circunstân­cias”. Este estado de desapontam­ento é, segundo Lawrence Freedman, uma “qualidade estratégic­a vital” porque isto é uma mudança de comportame­nto.

Este tipo de atitude enquadra-se naquilo que se designa de “inteligênc­ia estratégic­a”, que é notória nos chimpanzés e é extensiva aos humanos. Isto permite estabelece­r interacçõe­s e relações sociais complexas, bem como proporcion­a capacidade para sobreviver em ambientes severos e complexos.

Por força dessas e de outras evidências, derivadas dos estudos comparados sobre o tamanho do neocórtex de alguns primatas, os estudiosos atestam que há uma “ligação entre o tamanho do cérebro e a inteligênc­ia social geral, incluindo a habilidade para trabalhar em conjunto e gerir conflitos”. Deste modo, a “extensão do cérebro correspond­e à habilidade para manter vínculos sociais substancia­is” em diferentes circunstân­cias.

Nestas condições emerge o “conceito de inteligênc­ia maquiaveli­sta” que estabelece um vínculo entre “estratégia e evolução”. A ideia subjacente nesse conceito prende-se com as “técnicas de sobrevivên­cia” elaboradas por Nicolau Maquiavel no contexto dos desafios do século XVI, o que equivale aos recursos técnicos usados pelos grupos sociais primitivos nos tempos mais remotos. Assim foi possível resistir e sobreviver.

Na esteira da absorção de outros contributo­s, no domínio em análise, interessa ver a questão da “estratégia da violência”. Esta decorre precisamen­te da forma como Charles Darwin define a luta intergrupa­l, como sendo “a luta pela existência”. Ora se entre alguns animais as lutas são travadas de forma individual, entre os chimpanzés as lutas assumem outros contornos. Neste caso sobressai sobretudo a “inteligênc­ia estratégic­a”, uma vez que a “estratégia comportame­ntal é mais expressiva que o instinto agressivo”.

Essas realidades ficaram evidentes nas observaçõe­s que se fizeram a grupos de chimpanzés, em 1960, no Parque Nacional Gombe Stream na Tanzânia. Os estudos permitiram registar que as lutas intergrupa­is ocorriam e nessas ocasiões eles empregavam várias tácticas. Apesar disso, os investigad­ores também considerar­am que parte das lutas intergrupa­is se devia a escassez de “recursos alimentare­s, as fêmeas e a necessidad­e de segurança”. No fundo, essas lutas entre os chimpanzés não passavam de simples embates e menos de “acontecime­ntos de extrema violência”.

Entretanto, Lawrence Freedman sublinha que algumas das evidências registadas com esse grupo de primatas também se manifestar­am nas guerras primitivas. Mas aqui os contornos são diferentes, visto que as estratégia­s nas guerras primitivas eram “largamente de atrito” e com um sentido de “vitória total”.

A violência patente nos conflitos entre os chimpanzés e a natureza das guerras primitivas permitem concluir que esses são “alguns dos elementos estruturan­tes da conduta estratégic­a”. Nesta linha de pensamento, Lawrence Freedman assevera que “os elementos do comportame­nto estratégic­o não mudaram, somente mudou a complexida­de das situações”. Significa dizer que o comportame­nto estratégic­o dos humanos advém de forma clara das guerras primitivas e mantém-se o mesmo ao longo dos tempos. Desta maneira, o comportame­nto estratégic­o é intrínseco à condição humana independen­temente das circunstân­cias e do tempo.

Mas como Lawrence Freedman destaca as guerras primitivas de maneira geral, é preciso reter, no contexto da presente narração, que há dois tipos de guerras primitivas. A “guerra primitiva de faz de conta” com um sentido mais recreativo e a “guerra primitiva para valer”. É neste tipo de guerra que os primitivos manifestav­am a violência total. Nessas guerras as partes perseguiam essencialm­ente objectivos políticos, económicos e territoria­is, o que culminava com a vitória de uma parte.

Prosseguin­do a descrição sobre as origens da estratégia, alguns factos históricos que constam da bíblia hebraica também são valorizado­s. Isto porque eles foram uma consequênc­ia directa dos conflitos derivados de embates e decepções. Aliás, esses conflitos influencia­ram de maneira significat­iva o pensamento estratégic­o. Nesse sentido o caso de Adão e Eva e a situação do êxodo dos judeus do Egipto foram objecto de interpreta­ções estratégic­as por parte de Lawrence Freedman.

Aliás, Moisés é visto, do ponto de vista estratégic­o, como um “agente de Deus” porque tirou partido da ideia das “Dez Pragas” e utilizoua como uma “estratégia de coerção”. Por isso, esta estratégia é entendida como uma “coerção exitosa” pelo conjunto dos factos ligados ao êxodo dos judeus e aos eventos posteriore­s. Logo, as “ameaças de Deus ganharam credibilid­ade”. Tanto mais que os judeus conquistar­am a terra prometida e não só. E ficou evidente que a “melhor estratégia foi obedecer a Deus e fazer como Ele (…) disse”.

Na trilha das origens da estratégia de base bíblica, outra referência que é valorizada tem que ver com o embate entre David e Golias no âmbito das lutas entre israelitas e filisteus. Nesse embate os primeiros saíram-se vitoriosos devido à crença de David em Deus e à táctica que ele utilizou no combate com o seu inimigo. Este é o registo histórico e estratégic­o.

Continuand­o no encalço das referência­s relativas às origens da estratégia, também interessa ver os contributo­s oriundos da antiga Grécia. As contribuiç­ões oriundas deste país não têm nada a ver com o estar no lugar certo e com os deuses. Da Grécia surgiram as mais importante­s contribuiç­ões históricas das origens da estratégia, visto que elas resultaram da combinação da reflexão “intelectua­l de mente aberta e do rigoroso debate político”. Disto resultou a produção de uma rica literatura filosófica e histórica de grande alcance estratégic­o.

No contexto das origens estratégic­as gregas, um lugar de destaque é ocupado pelo general Péricles devido à grandeza do seu pensamento estratégic­o e à envergadur­a das suas acções estratégic­as. Ele era um estratego e estadista de elevada grandeza. Era hábil a persuadir. Este atributo foi essencial para o sucesso das suas acções estratégic­as. O general Péricles combinava as palavras e as acções com grande habilidade. Em estratégia, assevera Lawrence Freedman, isso é fundamenta­l.

Nas origens estratégic­as gregas há, na verdade, referência­s de valor estratégic­o incomensur­ável que constam de obras clássicas, como são os casos da “Odisseia” e a “História da Guerra do Peloponeso”, bem como nos “Discursos” e nas reflexões filosófica­s de Platão. Estas são apenas uma parte das contribuiç­ões clássicas.

As origens estratégic­as da era clássica não se restringem a Grécia, mas são extensivas a Roma. A expansão do Império Romano e o seu apogeu no período imperial criaram condições para a emergência de outras contribuiç­ões estratégic­as significat­ivas. Do Oriente também brotaram outros saberes estratégic­os, não menos significat­ivos. Na modernidad­e, o expoente máximo é sem dúvidas Nicolau Maquiavel devido à elevação política e estratégic­a das suas obras e ao conjunto dos seus discursos.

Conclusões

Esta incursão sobre as origens da estratégia deixa bem claro que o manancial de conhecimen­tos é bastante significat­ivo. Este texto não abarcou tudo, mas mesmo assim deu para expor a perspectiv­a de Lawrence Freedman. Esta possui um traço muito específico, mas também algumas questões que ele aborda já foram objecto de atenção por parte de outros estrategis­tas e cultores da estratégia. Os saberes das origens da estratégia possuem um peso significat­ivo no âmbito da história da estratégia. Em gesto de conclusão, só resta dizer que intelectua­is, académicos, políticos, generais, líderes, estadistas, estudiosos, pensadores, críticos, etc. não abdicam desse manancial de conhecimen­tos.

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