A Rádio Cultura – entre a crítica antecipada e os elogios precipitados
Antes mesmo da Rádio Cultura ter sido inaugurada, foi desencadeada uma onda de críticas contra o desaparecimento da Rádio FM Stéreo. Como é obvio, não está em causa o nome da estação, nem o facto da maior parte dos programas transitar para a nova rádio. O que se questiona é a filosofia da FM Stéreo, uma rádio pública de programação à base da divulgação dos hits internacionais e sucessos americanos, europeus e brasileiros, salvo um programa ao final do dia e dois ou três ao fim de semana virados para a música africana, dos trópicos e afro descendente.
Se inicialmente, sem rádios privadas nem outras alternativas, fazia todo o sentido ter um canal público, então designado por programa C, de matriz educativa para influenciar na vocação dos jovens e no bom gosto musical, hoje, num contexto completamente diferente, tanto em termos de oferta radiofónica como de meios individuais para a cultura individual, não se justifica ter uma estação pública com o mero propósito de promover e divulgar música ocidental. A crítica antecipada de certas elites luandenses tem mais a ver com o facto delas (essas elites) terem a cultura ocidental como sua matriz estética e referencial de qualidade cultural, o que lhes leva à partida a ver a Rádio Cultura como um produto de menor qualidade que a FM Stéreo.
Do mesmo modo que as críticas, os elogios também são precipitados. Há que esperar para vermos que rumo terá a RCA.
Ter ou não uma rádio dedicada à cultura é uma decisão estratégica de grande alcance. Um projecto desta ambição tem, naturalmente, desafios a enfrentar, razão que deveria levar o conselho de administração da RNA a criar um conselho de membros da sociedade para fiscalização e supervisão da programação, linha editorial e desempenho da RCA.
A programação numa rádio do género, deve ter como objectivo prestar serviços informativos, artísticos, educativos e culturais à sociedade em geral e garantir a pluralidade e a diversidade culturais. A sua grande missão tem de ser a promoção da cultura local e regional, produção de educação e cidadania, de acordo, em primeiro lugar com a nossa condição de angolanos com identidade própria; em segundo como africanos inseridos na África Austral e central e, em terceiro e último, como cidadãos de um mundo global e diverso.
Um dos principais desafios da RCA será o equilíbrio de não ser como a FM Stéreo, (que era uma rádio pública de promoção de música estrangeira) e também não ser como a generalidade das outras rádios, (que se transformaram em espaços de divulgação sem critério da lógica dos DJS, do que “está a bater”, ou do que dá audiências). Para isso, há que ser uma rádio especializada com recurso a agentes culturais, estudiosos, críticos de arte e a programas educativos.
O conselho de administração tem de ter consciência de que não se trata de um caminho fácil e barato. A globalização e as novas tecnologias oferecem hoje um conjunto de facilidades de acesso aos hits internacionais, tornandose modismos virais falar (até nas histórias mais absurdas,) de Madonna, Lady Gaga ou Beyoncé enquanto a maior parte do público luandense nunca ouviu falar da família Chikile ou de Tiviné ou não há dinheiro para salvar as bobines com gravações de Tchianda que estão a sol e chuva no Museu do Dundo ou para gravar um Cd com as danças das mamãs do grupo Agostinho Neto, do Huambo.
Outro desafio é a RCA libertarse da tentação de ser uma rádio apenas de música. Tanto a literatura como o teatro, artes plásticas, artesanato, dança e cinema têm sido filhos muito mal-amados pelas rádios angolanas, inclusive nas públicas. Esperamos todos que a RCA possa ter um projecto estruturado e pensado onde se possam encontrar conteúdos sobre as diferentes disciplinas, para além da componente informativa (com um serviço regular de informação sobre lançamentos espectáculos, eventos e factos do mundo das artes em geral). Mesmo os programas musicais que vão, obviamente, ser dominantes, não podem ser mais do mesmo que já temos visto noutras rádios, exigindo-se mais especialização, mais conteúdo e menos amadorismo e improviso.
Por fim, o desafio maior desta rádio será o de estar à altura da construção de uma nação plural e diversa. Em primeiro lugar, uma rádio cultura deveria ser, logo á partida nacional, pensada para ter a contribuição de todos e ouvida por todos. Em segundo lugar, a coabitação entre as diferentes culturas dos grupos angolanos, a representação do outro no espaço público e a não imposição de valores de uns sobre outros, não são fáceis de alcançar, mas devem ser uma preocupação constante. Quase cinquenta anos depois da independência não há nenhuma razão para que continuemos a não promover a angolanidade e a permitir que certos grupos nos imponham as referências ocidentais em detrimento das nossas próprias raízes e vivências culturais. Não se trata de uma mera mudança de nome, mas de uma decisão profunda que pode servir de ponto de viragem para o modo como sobretudo certas rádios e programas de televisão não têm conseguido fazer da cultura um factor de reforço da pluralidade e da diversidade dos povos de Angola na música, dança, literatura, teatro, cinema, pratos típicos, os usos e costumes.