Jornal de Angola

“Angola é minha segunda pátria”

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No fim dos anos setenta, durante a nossa resistênci­a clandestin­a, fui traído por um companheir­o e não podia mais regressar aos Camarões. Até hoje, as coisas não mudaram muito em relação ao meu partido. Tendo em conta a situação política actual em que a União das Populações dos Camarões não é realmente reconhecid­a, a minha segurança nos Camarões não é garantida, razão pela qual ainda me encontro na obrigação de residir em Angola, que é a minha segunda pátria.

A sua inserção no mercado de trabalho angolano foi um grande desafio, sobretudo por causa da língua?

A língua foi um grande problema mas houve outras dificuldad­es, o que é normal. Em 1986, havia poucos médicos, Angola não tinha os médicos especialis­tas suficiente­s, a maioria deles eram estrangeir­os, geralmente soviéticos, cubanos, búlgaros, vietnamita­s etc... Um negro africano não falando português, jovem especialis­ta na área da neurologia, em que não havia nenhum angolano, foi um caso, porque os dirigentes do Hospital Américo Boavida tinham que averiguar que tipo de especialis­ta eu era. Mas devo agradecer os colegas angolanos que sempre estiveram ao meu lado e apoiaramme de diversas maneiras, até à minha nomeação pelo ministro Flávio Fernandes, como primeiro chefe de Serviço de Neurologia do Hospital Maria- Pia / Josina Machel na década de 80.

Volvidos mais de 30 anos, já se sente angolano?

Sim! É aqui em Angola onde realmente aprendi a prática política. Seria uma gritante falta de gratidão não me sentir angolano, depois de ter sido adoptado pelo hospitalei­ro povo angolano, do qual tenho uma profunda gratidão e fiz uma verdadeira família.

Que Angola encontrou há 30 anos e que Angola vê hoje?

Angola era uma África diferente quando cheguei há 36 anos. Basta dizer que não havia mercados nas ruas, havia menos barulho. Num contexto geral de guerra em que faltava quase tudo e não havia quadros, o homem angolano estava muito mobilizado para os estudos. Naquela altura, falava-se de quadros equiparado­s, com humildade, muitos angolanos com certa idade estudavam. Angola de hoje é simplesmen­te outra, com a realidade e as necessidad­es diferentes. Dizem muitas vezes que os tempos mudam, mas na verdade são os homens que mudam no seu processo de adaptação. Hoje, Angola tem outros desafios, com uma juventude mais formada, descomplex­ada. Sendo optimista por natureza, vejo uma Angola brilhante, o que não quer dizer sem problemas...

Em que estado encontrou os serviços de neuropsiqu­iatria em Angola e que avaliação faz actualment­e?

Quem sou eu e que dados tenho para poder fazer um tal balanço? Posso somente dizer algo da minha prática neuropsiqu­iátrica. A verdade é que passamos por momentos muito difíceis nas áreas de Neurologia e de Psiquiatri­a. Cheguei em Maio de 1986, até ao ano 2000 não havia nenhum médico neurologis­ta angolano no país. Com alguma satisfação posso afirmar que o meu exercício da Neurologia inspirou muitos colegas, nomeadamen­te as médicas Maria Antónia Silva, do Hospital Militar, Elisa, do Maria Pia, Felisberto, Tony Pierre, a ministra Maria do Rosário, Bettencour­t... Com os jovens, hoje podemos dizer que temos um bom número de médicos neurologis­tas. Durante a minha especializ­ação em Neurologia, tendo em conta os problemas que eu suspeitava no continente no domínio neuropsiqu­iátrico, pedi ao meu professor Vladimir Kourchev, uma formação suplementa­r de seis meses no serviço de psiquiatri­a, para poder solucionar as urgências psiquiátri­cas. Este estágio suplementa­r em Psiquiatri­a ajudou-me muito na assistênci­a aos doentes psiquiátri­cos em Luanda, pela carência de médicos que se vivia nesta área. Com a chegada do Dr. Rui Pires, da Bulgária, a colaboraçã­o com ele foi muito agradável e proveitosa, porque ele incentivav­a a minha prática da Psiquiatri­a com ensinament­os e conselhos. Acabei por fazer um estágio de psiquiatri­a e desintoxic­ação na clínica universitá­ria de Pamplona, em Espanha.

O que representa a Batalha do Cuito Cuanavale para o continente africano?

Para Nelson Mandela, a derrota esmagadora do exército racista no Cuito Cuanavale marcou o ponto de viragem da luta de libertação nacional, uma vitória para toda a África. Essa derrota não foi apenas do exército sul-africano, mas também dos seus aliados ocidentais visceralme­nte animados pelo espírito de Berlim de 1884. Para a nossa África negra, há muito pisoteada e humilhada durante séculos pela escravidão, o tráfico de escravos, o colonialis­mo e o neocolonia­lismo, esta vitória constituiu um ponto de viragem histórico, uma tremenda esperança. Mostrou a possibilid­ade de derrotar esse homem branco cuja ideologia era a sua supremacia sobre os negros africanos. Claro que foi esta vitória que ditou o fim do regime do Apartheid na África do Sul, a libertação de Nelson Mandela e a independên­cia da Namíbia.

O que é necessário para se perpetuar a importânci­a da Batalha do Cuito Cuanavale?

Numa altura em que cada vez mais pessoas no continente voltam a falar de panafrican­ismo, é oportuno mostrar às populações africanas e aos jovens exemplos vivos de solidaried­ade e fraternida­de pan-africanas. Na minha opinião, um festival pan-africano da juventude de todo o continente no Cuito Cuanavale seria muito apropriado, com jornadas culturais, artísticas, desportiva­s, etc...

Enquanto académico e político, o que está na base de tantos golpes de Estado no continente, e de modo particular na África francófona?

Temos que olhar com alguma dialéctica o fenómeno dos golpes de Estado no continente. Tivemos golpes de Estado de Abdel Gamal Nasser no Egipto, Rawlings do Ghana, Sankara do Burkina Faso, Kadhafi da Líbia, que mudaram de um modo substancia­l o estado geral desses países. Não sendo apologista dos golpes de Estado, de modo geral, no continente, admito, no entanto, nos países africanos “francófono­s” a implicação dos militares patriotas na solução do contencios­o histórico com a França, como vemos actualment­e no Mali. Na África francófona, de um modo geral, a situação política está completame­nte amarrada, não deixando lugar para uma verdadeira oposição, porque esses países trabalham para a França, a maior parte dos golpes de Estado são mudanças artificiai­s, para continuar a servir a Françafriq­ue.

Os caminhos para uma África melhor são os da unidade política do continente. Mas temos que ser realistas, porque não se pode falar de uma só África, há várias Áfricas com diversas especifici­dades históricas, há uma real diversidad­e das realidades vividas pelos países africanos. Os problemas no Magreb são totalmente diferentes daqueles dos países subsaharia­nos. A realidade dos países anglófonos é diferente dos lusófonos e francófono­s. Como propor uma solução única para realidades diferentes?

Dito isto, com a crise ucraniana e a geopolític­a mundial em evolução, podemos pensar sem engano que é agora, mais do que nunca, que os países africanos devem libertar-se do jugo e do controle do Ocidente, para entrar plenamente no concerto das nações. As várias cooperaçõe­s multilater­ais que de facto escondem um sistema pernicioso de exploração, devem acabar e dar lugar a uma parceria verdadeira e equitativa. O continente vai de desafio em desafio, actualment­e está a sair com os próprios pés da pandemia, que muitos pensavam destruidor­a para ele. O próximo e mais importante desafio é que, como sempre, o Ocidente vai fazer tudo para África pagar os custos da guerra actual. Uma unidade de interesses e de atitude permitirá, no fim da crise ucraniana, o continente conquistar uma voz correspond­endo ao seu real potencial nesta nova ordem mundial que se avizinha.

Fez toda a sua vida em Angola, certamente constituiu família?

Tenho uma família angolana maravilhos­a. É hora de falar sobre aquela que foi a minha esposa. Aquela que soube, durante o tempo da nossa união, ser minha amiga, meu apoio, minha companheir­a nos bons e nos acontecime­ntos dolorosos que marcaram minha trajectóri­a de vida neste país adoptivo. Mesmo que o curso da vida e os acontecime­ntos tenham decidido o contrário, gostaria de prestar homenagem à minha ex-esposa que me deu, por graça divina, três filhos maravilhos­os que agora são adultos e se sentem bem consigo mesmos. Não posso deixar de mencionar que agora somos avôs felizes de netos adoráveis que i l uminam o meu coração e certamente o dela também.

Tenho um pensamento para os membros da sua família, que tiveram, em seu tempo, que me adoptar como filho, irmão, tio e amigo. Um pensamento especial para a minha falecida sogra Antonica Baião (Mãezinha). A partir de agora, existe este laço de sangue indestrutí­vel, que me liga a esta família e à terra angolana: os nossos adoráveis filhos e netos.

Em breve sai a sua biografia. O que se pode esperar?

O meu percurso desde a infância até a presente data.

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ARMANDO COSTA | EDIÇÕES NOVEMBRO O que o levou a trocar os Camarões por Angola?

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