Jornal de Angola

Estórias à margem do rio Cuebe

- Soberano Kanyanga

O Cuebe rasga,

misturando vagar e pressa, a capital do Kwandu nyi Kuvangu (infelizmen­te grafado oficialmen­te com “cês”). Andando sobre margens, seja a esquerda ou direita, do Mis(s)ombo à cidade o rio é fonte de vida em alimentaçã­o (irrigando e dando peixe) como também de fertilizaç­ão da memória. Estórias e história são contadas à margem do Cuebe pelas mamãs que lavam roupas do marido ou do patrão; que buscam água para casa ou como kandonga; que se lavam ao amanhecer ou anoitecer e que jogam detritos no mesmo rio da vida.

Num 18 de Maio “estacionei” à beira do Cuebe, junto à ponte que nos leva ao término do caminho-de-ferro. Emprestei os ouvidos às mamãs que lamentavam o descaso dado à esplanada inacabada, aos balneários públicos erguidos nas proximidad­es e ao lixo que corria rio abaixo. E a velha Nacitula começou assim:

- Ó chefe, ainda aquele dirigente deixou saudade. É verdade. Ele, onde chegava, fazia. Ainda aqui mesmo deixou emprego. Hotê, restaurant­es, etecetera. Ainda vê aqui. Aquele, lá, ao fundo, era para ser lavandaria. Era para as pessoas não lavarem mais no rio. As pessoas deviam vir cartar1 só água no rio e lavar na lavandaria. Lá, junto à ponte, eram as casas de banho. Veio lavar ou veio se divertir, a higienizaç­ão seria já ali. Aquele, tipo armazém, que está a ver aí, é o gimnodespo­rtivo. Ó mano, o homem ainda trabalhou. Ainda estamos a lhe sentir mesmo saudade. Aqui, era para fazer esplanada com cadeiras dentro e fora, a olhar para o rio Cuebe, e ainda dizem, devia subir mais. Era para ser mesmo um hotê. Assim, a pessoa mesmo que lhe falem gatuno, ainda vale a pena gatuno que trabalha e não os outros. Ainda se terninasse­m só essas e outras coisas, o povo ia se beneficiar e ia gostar. Vê ainda, ó mano, o que o kaputu cikol o nya 2 d e i x o u : p r é di o s , caminho-de-ferro, pontes, e muitos eteceteras. Vocês ainda que andam a sentar com os governante­s lhes avisem só. Obra do outro que saiu é melhor acabar. O povo vai gostar.

A senhora, nos seus aparentes setenta anos, parecia lavada, manhã cedo, de um fermentado ou destilado abundante e de pouco preço no sudeste. Apesar de o cacimbo ter menos de setenta e duas horas, o frio era já de rasgar as fossas nasais e rachar os lábios. A lagartagem­3 via-se por todos os lados e repartiçõe­s, os linhos e algodão l eves tinham dado corpo aos casacos pesados e peludos por dentro. Ainda bem que a covid-19 impôs as máscaras faciais. Aqui, são também apelidadas de “trava bafo”.

- Pessoa você lhe vê bem vestida, ó mano, lhe manda desmascara­r. Já saiu na casa do kacipembe4. Quando a pessoa l hes fala verdade, l hes tira o capuz, me falam sai daqui, ó velha bêbada. Bebi na tua casa? Pronto, ó chefe, vou atravessar. Se quer galinha eu vendo na estação. Me encontra lá, pergunta mamã Nacitula.

...............

1- Encher o recipiente de água e levá-lo, nornalment­e, à cabeça. A expressão deriva de acarretar. 2- Colono português. 3- Relativo ao acto de colocar-se ao sol, à semelhança do que faz o lagarto que procura pelo sol nascente.

4- Bebida fermentada usada no sul e sudeste.

NB: A mulher, no seu discurso vezeiro e ao vento, referia-se ao Gen. Higino Carneiro.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola