Jornal de Angola

“Vamos conseguir uma vacina para acabar com o vírus da Sida”

- Alexa Sonhi

Em entrevista ao Jornaldean­gola, o representa­nte da ONU/SIDA em Angola, Michel Kouakou, disse ser um facto as empresas farmacêuti­cas não estarem dispostas a investir em ensaios clínicos dispendios­os, enquanto a comunidade científica não fornecer provas mais concretas para a produção de uma vacina contra o vírus da Sida. “Quando se cria uma indústria é para ganhar dinheiro”, sublinhou Michel Kouakou, defendendo que o mundo precisa de investigad­ores que trabalham sem fins lucrativos, para desenvolve­r uma vacina contra o vírus da Sida. Michel Kouakou disse que os governos africanos deviam ser uma alternativ­a às indústrias farmacêuti­cas, financiand­o investigad­ores para a descoberta de uma vacina contra a Sida

Na sua opinião, qual é o i mpacto que uma vacina contra a Sida terá no combate à doença no mundo, principalm­ente em África, o continente com mais casos no Planeta?

Uma vacina seria um passo importante para acabar com a epidemia da Sida. Tem havido avanços científico­s que nos dão esperança para o futuro desenvolvi­mento de uma vacina contra o VIH. As vacinas promovem a equidade, sendo este um dos seus grandes benefícios, e podem ser usadas eficazment­e em todas as comunidade­s e contextos, especialme­nte onde muitos outros serviços de saúde podem ser mais difíceis de fornecer.

Como explicar a um leigo o facto de, até hoje, 41 anos depois da descoberta do vírus da Sida, não ter sido encontrada ainda uma vacina contra a doença e já haver uma contra a Covid-19?

A investigaç­ão e desenvolvi­mento de uma vacina contra o VIH regista, desde 2008, o maior declínio no investimen­to. A fim de transforma­r conceitos promissore­s numa vacina eficaz e acessível, um maior financiame­nto e sustentáve­l será crucial, assim como beneficiou a resposta mundial ao coronavíru­s. Ao mesmo tempo, o acesso universal à prevenção, tratamento, cuidados e apoio às pessoas que vivem com o VIH deve continuar a ser uma prioridade.

Como é sabido que existem várias vacinas experiment­ais contra a Sida, o que se deve esperar, por uma vacina preventiva ou curativa? Qual é a sua expectativ­a?

As vacinas erradicara­m, por exemplo, a varíola. A erradicaçã­o da poliomieli­te está próxima. As vacinas conseguira­m conter a difteria, o tétano, o sarampo e a rubéola, entre outras doenças infecciosa­s, sem falar agora do coronavíru­s. Então, não tenho dúvida de que vamos conseguir, também, uma vacina para acabar com o VIH.

Muitos leigos acham que, para as farmacêuti­cas, não há grande interesse ou urgência numa vacina contra a Sida, por a doença ser, agora, uma doença do "Terceiro Mundo", havendo, também, leigos que admitem que possa existir maior interesse financeiro por parte da indústria farmacêuti­ca em manter a continuida­de da produção dos anti- retrovirai­s. Acha que faz algum sentido o "relaxament­o", entre aspas, da indústria farmacêuti­ca?

Não c onheço nenhuma indústria farmacêuti­ca que t rabalha com objectivos humanitári­os ou filantrópi­cos. Quando se cria uma i ndústria é para ganhar dinheiro. Assim, acredito que precisamos de investigad­ores que trabalham sem fins lucrativos para desenvolve­r a vacina contra o vírus da Sida. Os governos africanos, através das comunidade­s económicas regionais, como a SADC, podem ser a alternativ­a.

Depois da aprovação de uma ou mais vacinas contra a Sida, pela Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS), na sua opinião, como deve ser definida a prioridade em termos de distribuiç­ão continenta­l de vacinas?

Fácil. Seguir as lições aprendidas com as vacinas contra a Covid-19. Nós, da ONU/SIDA, continuamo­s a clamar pela “vacina do povo”. Além dos desafios científico­s que a caracteriz­am, a procura da vacina contra o VIH tem sido, há muito, dificultad­a pela perda de um certo sentido de urgência. A vontade pública e política, apoiada por grandes investimen­tos do sector privado, tem avançado a causa da vacina contra a Covid-19 a uma velocidade recorde. Mas o VIH é uma doença que afecta desproporc­ionalmente grupos marginaliz­ados e as empresas farmacêuti­cas não

estão dispostas a investir em ensaios clínicos dispendios­os até que a comunidade científica forneça provas mais concretas.

Os governos africanos não deveriam estar ainda mais

mobilizado­s e falar a uma só voz, no sentido de financiare­m a comunidade científica africana para a descoberta, em África, de uma vacina contra a Sida?

Só posso concordar. Não acho viável cada país construir uma usina para fabricar medicament­os, nem mesmo criar laboratóri­os de pesquisas. Devemos trabalhar junt os e t er mais t rocas de informaçõe­s científica­s. Infelizmen­te, não acredito que i sso esteja a ser feito no momento. À medida que o mundo vê as vacinas contra a Covid-19 a derramarem­se a uma velocidade sem precedente­s, espera-se que este entusiasmo gere impulso para apoiar os esforços a longo prazo que serão necessário­s para derrotar o VIH.

Quando se fala da evolução do combate à Sida em Angola, o que tem sido dito é que o primeiro caso no país foi notificado em 1985. Mas nunca se disse como o vírus da Sida entrou em Angola e como o número de casos foi aumentando. Sabe dizer-nos como entrou e qual era a orientação sexual do primeiro seropositi­vo?

Para mim, esse debate está ultrapassa­do. O mais importante é olhar para frente e tentar resolver o problema. Nessa óptica, tenho que reconhecer os enormes progressos f eitos pelo Governo angolano. Há poucos países em África que t êm uma Comissão de Luta contra as Grandes Endemias e a Sida sob a tutela do Presidente da República. Testar e tratar, sem distinção, foi um outro passo importante. O novo Código Penal, que descrimina­liza a orientação sexual e criminaliz­a o estigma e a discrimina­ção, é um avanço no reconhecim­ento dos direitos humanos. Como agência das Nações Unidas, vamos continuar a dar as evidências científica­s aos legislador­es para reverter a questão da infecção dolosa que pode ser contraprod­ucente na luta para acabar com o VIH/SIDA, que passa pela testagem. Temos, também, de trabalhar com o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos para a revisão da lei sobre o VIH, encontrand­o um i nstrumento legal que beneficie as pessoas que vivem com o VIH. Devemos, também, continuar a trabalhar com diversos ministério­s, em particular os da Educação, da Acção Social, Família e Promoção da Mulher, do Interior, d a C u l t u r a , Tur i s mo e Ambiente, Juventude e Desportos e das Telecomuni­caç õ e s , Te c n o l o g i a s d e Informação e Comunicaçã­o Social, só para citar alguns.

Em Angola, temos um número expressivo de sobreviven­tes do VIH de longo prazo e vários casais serodiscor­dantes?

Sim, temos várias pessoas que vivem com o VIH há décadas. São aquelas que seguem rigorosame­nte o tratamento e estão mais do que saudável e assim estarão enquanto estiverem sob medicação.

Quantos subtipos de VIH circulam em Angola?

Que eu saiba, não existem, por enquanto, estudos no país para responder a essa pergunta.

A existência de subtipos de VIH não pode vir a compromete­r a eficácia terapêutic­a da primeira vacina a ser aprovada pela Organizaçã­o Mundial da Saúde?

A procura por uma vacina contra o VIH começou em 1984, logo após os cientistas isolarem o vírus da Sida. Desde então, esta missão científica tem visto três ondas de investigaç­ão: A primeira onda focou-se na ideia mais óbvia: tentar estimular o sistema imunitário a produzir os chamados anticorpos neutraliza­ntes, que desactivam vírus específico­s. É assim para muitas vacinas que funcionam, incluindo algumas usadas contra a Covid19. Durante anos, os investigad­ores trabalhara­m para identifica­r anticorpos produzidos em resposta à infecção pelo VIH e, em seguida, desenvolve­r vacinas que desencadea­riam a produção de anticorpos semelhante­s. Mas o VIH sofre mutações rápidas e há variantes que os anticorpos não são capazes de reconhecer, o que significa que está sempre um passo à frente do sistema imunitário.

O vírus da Sida continua a um passo à frente do sistema imunitário?

Na alvorada dos anos 2000, os investigad­ores conduziram uma segunda vaga de pesquisas de vacinas contra o VIH, projectada com a ideia de visar as células T do corpo humano, estas células "assassinas" valentes, em vez de tentar estimular os anticorpos. A imunidade a longo prazo depende de dois grupos celulares principais: linfócitos B e linfócitos T. Ambos permitem a produção de anticorpos, mas as células T também eliminam as células infectadas. A ideia por trás das vacinas com células T era estimular as células que reconhecem proteínas dentro do vírus. O ensaio clínico falhou miseravelm­ente. A terceira onda de investigaç­ão, que está actualment­e a ocorrer, começou no final dos anos 2000, quando os investigad­ores descobrira­m que uma pequena minoria de pessoas seropositi­vas produzia anticorpos, particular­mente p o t e n t e s , q u e poderiam neutraliza­r várias estirpes de VIH ao mesmo tempo. Até à data, os cientistas identifica­ram dezenas destes anticorpos neutraliza­ntes de largo espectro, que visam partes da superfície viral (tal como com as proteínas do pico SARS-COV-2) que permanecem as mesmas.

Em Angola, há programas de pesquisa e acompanham­ento científico de pessoas infectadas pelo vírus da Sida?

Não existe esse tipo de iniciativa. O Instituto Nacional de Luta contra a Sida está muito empenhado na coordenaçã­o estratégic­a e com muito êxito. Temos alguns desafios logísticos, que têm sido resolvidos, e estamos no bom caminho. Angola faz parte da Aliança Global para a prevenção, constituíd­a por um grupo de países, que trocam experiênci­as e apoios técnicos para acabar com a Sida como problema de saúde público até 2030. Nos três últimos anos, tivemos o apoio inestimáve­l da Primeira-dama na luta contra a transmissã­o do VIH de mãe para filho. Dobramos a cobertura de mulheres grávidas em tratamento, passando de 34 por cento para 68 por cento. O meu apelo pessoal à Primeira-dama é para levar adiante esse projecto. A protecção social, a educação, incluindo a educação sexual abrangente, e os serviços de prevenção do VIH, integrados nos serviços de saúde sexual e reprodutiv­a, melhoram a saúde e a capacitaçã­o das jovens mulheres e adolescent­es. Investir na educação e nos serviços de saúde, prevenir e proteger as mulheres e raparigas da violência, erradicar o casamento precoce, forçado e infantil, e promover os direitos das mulheres. Através destas acções, as jovens mulheres e adolescent­es podem ser protegidas contra o VIH e o mundo pode ajudar a eliminar a Sida até 2030.

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