“Vamos conseguir uma vacina para acabar com o vírus da Sida”
Em entrevista ao Jornaldeangola, o representante da ONU/SIDA em Angola, Michel Kouakou, disse ser um facto as empresas farmacêuticas não estarem dispostas a investir em ensaios clínicos dispendiosos, enquanto a comunidade científica não fornecer provas mais concretas para a produção de uma vacina contra o vírus da Sida. “Quando se cria uma indústria é para ganhar dinheiro”, sublinhou Michel Kouakou, defendendo que o mundo precisa de investigadores que trabalham sem fins lucrativos, para desenvolver uma vacina contra o vírus da Sida. Michel Kouakou disse que os governos africanos deviam ser uma alternativa às indústrias farmacêuticas, financiando investigadores para a descoberta de uma vacina contra a Sida
Na sua opinião, qual é o i mpacto que uma vacina contra a Sida terá no combate à doença no mundo, principalmente em África, o continente com mais casos no Planeta?
Uma vacina seria um passo importante para acabar com a epidemia da Sida. Tem havido avanços científicos que nos dão esperança para o futuro desenvolvimento de uma vacina contra o VIH. As vacinas promovem a equidade, sendo este um dos seus grandes benefícios, e podem ser usadas eficazmente em todas as comunidades e contextos, especialmente onde muitos outros serviços de saúde podem ser mais difíceis de fornecer.
Como explicar a um leigo o facto de, até hoje, 41 anos depois da descoberta do vírus da Sida, não ter sido encontrada ainda uma vacina contra a doença e já haver uma contra a Covid-19?
A investigação e desenvolvimento de uma vacina contra o VIH regista, desde 2008, o maior declínio no investimento. A fim de transformar conceitos promissores numa vacina eficaz e acessível, um maior financiamento e sustentável será crucial, assim como beneficiou a resposta mundial ao coronavírus. Ao mesmo tempo, o acesso universal à prevenção, tratamento, cuidados e apoio às pessoas que vivem com o VIH deve continuar a ser uma prioridade.
Como é sabido que existem várias vacinas experimentais contra a Sida, o que se deve esperar, por uma vacina preventiva ou curativa? Qual é a sua expectativa?
As vacinas erradicaram, por exemplo, a varíola. A erradicação da poliomielite está próxima. As vacinas conseguiram conter a difteria, o tétano, o sarampo e a rubéola, entre outras doenças infecciosas, sem falar agora do coronavírus. Então, não tenho dúvida de que vamos conseguir, também, uma vacina para acabar com o VIH.
Muitos leigos acham que, para as farmacêuticas, não há grande interesse ou urgência numa vacina contra a Sida, por a doença ser, agora, uma doença do "Terceiro Mundo", havendo, também, leigos que admitem que possa existir maior interesse financeiro por parte da indústria farmacêutica em manter a continuidade da produção dos anti- retrovirais. Acha que faz algum sentido o "relaxamento", entre aspas, da indústria farmacêutica?
Não c onheço nenhuma indústria farmacêutica que t rabalha com objectivos humanitários ou filantrópicos. Quando se cria uma i ndústria é para ganhar dinheiro. Assim, acredito que precisamos de investigadores que trabalham sem fins lucrativos para desenvolver a vacina contra o vírus da Sida. Os governos africanos, através das comunidades económicas regionais, como a SADC, podem ser a alternativa.
Depois da aprovação de uma ou mais vacinas contra a Sida, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), na sua opinião, como deve ser definida a prioridade em termos de distribuição continental de vacinas?
Fácil. Seguir as lições aprendidas com as vacinas contra a Covid-19. Nós, da ONU/SIDA, continuamos a clamar pela “vacina do povo”. Além dos desafios científicos que a caracterizam, a procura da vacina contra o VIH tem sido, há muito, dificultada pela perda de um certo sentido de urgência. A vontade pública e política, apoiada por grandes investimentos do sector privado, tem avançado a causa da vacina contra a Covid-19 a uma velocidade recorde. Mas o VIH é uma doença que afecta desproporcionalmente grupos marginalizados e as empresas farmacêuticas não
estão dispostas a investir em ensaios clínicos dispendiosos até que a comunidade científica forneça provas mais concretas.
Os governos africanos não deveriam estar ainda mais
mobilizados e falar a uma só voz, no sentido de financiarem a comunidade científica africana para a descoberta, em África, de uma vacina contra a Sida?
Só posso concordar. Não acho viável cada país construir uma usina para fabricar medicamentos, nem mesmo criar laboratórios de pesquisas. Devemos trabalhar junt os e t er mais t rocas de informações científicas. Infelizmente, não acredito que i sso esteja a ser feito no momento. À medida que o mundo vê as vacinas contra a Covid-19 a derramaremse a uma velocidade sem precedentes, espera-se que este entusiasmo gere impulso para apoiar os esforços a longo prazo que serão necessários para derrotar o VIH.
Quando se fala da evolução do combate à Sida em Angola, o que tem sido dito é que o primeiro caso no país foi notificado em 1985. Mas nunca se disse como o vírus da Sida entrou em Angola e como o número de casos foi aumentando. Sabe dizer-nos como entrou e qual era a orientação sexual do primeiro seropositivo?
Para mim, esse debate está ultrapassado. O mais importante é olhar para frente e tentar resolver o problema. Nessa óptica, tenho que reconhecer os enormes progressos f eitos pelo Governo angolano. Há poucos países em África que t êm uma Comissão de Luta contra as Grandes Endemias e a Sida sob a tutela do Presidente da República. Testar e tratar, sem distinção, foi um outro passo importante. O novo Código Penal, que descriminaliza a orientação sexual e criminaliza o estigma e a discriminação, é um avanço no reconhecimento dos direitos humanos. Como agência das Nações Unidas, vamos continuar a dar as evidências científicas aos legisladores para reverter a questão da infecção dolosa que pode ser contraproducente na luta para acabar com o VIH/SIDA, que passa pela testagem. Temos, também, de trabalhar com o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos para a revisão da lei sobre o VIH, encontrando um i nstrumento legal que beneficie as pessoas que vivem com o VIH. Devemos, também, continuar a trabalhar com diversos ministérios, em particular os da Educação, da Acção Social, Família e Promoção da Mulher, do Interior, d a C u l t u r a , Tur i s mo e Ambiente, Juventude e Desportos e das Telecomunicaç õ e s , Te c n o l o g i a s d e Informação e Comunicação Social, só para citar alguns.
Em Angola, temos um número expressivo de sobreviventes do VIH de longo prazo e vários casais serodiscordantes?
Sim, temos várias pessoas que vivem com o VIH há décadas. São aquelas que seguem rigorosamente o tratamento e estão mais do que saudável e assim estarão enquanto estiverem sob medicação.
Quantos subtipos de VIH circulam em Angola?
Que eu saiba, não existem, por enquanto, estudos no país para responder a essa pergunta.
A existência de subtipos de VIH não pode vir a comprometer a eficácia terapêutica da primeira vacina a ser aprovada pela Organização Mundial da Saúde?
A procura por uma vacina contra o VIH começou em 1984, logo após os cientistas isolarem o vírus da Sida. Desde então, esta missão científica tem visto três ondas de investigação: A primeira onda focou-se na ideia mais óbvia: tentar estimular o sistema imunitário a produzir os chamados anticorpos neutralizantes, que desactivam vírus específicos. É assim para muitas vacinas que funcionam, incluindo algumas usadas contra a Covid19. Durante anos, os investigadores trabalharam para identificar anticorpos produzidos em resposta à infecção pelo VIH e, em seguida, desenvolver vacinas que desencadeariam a produção de anticorpos semelhantes. Mas o VIH sofre mutações rápidas e há variantes que os anticorpos não são capazes de reconhecer, o que significa que está sempre um passo à frente do sistema imunitário.
O vírus da Sida continua a um passo à frente do sistema imunitário?
Na alvorada dos anos 2000, os investigadores conduziram uma segunda vaga de pesquisas de vacinas contra o VIH, projectada com a ideia de visar as células T do corpo humano, estas células "assassinas" valentes, em vez de tentar estimular os anticorpos. A imunidade a longo prazo depende de dois grupos celulares principais: linfócitos B e linfócitos T. Ambos permitem a produção de anticorpos, mas as células T também eliminam as células infectadas. A ideia por trás das vacinas com células T era estimular as células que reconhecem proteínas dentro do vírus. O ensaio clínico falhou miseravelmente. A terceira onda de investigação, que está actualmente a ocorrer, começou no final dos anos 2000, quando os investigadores descobriram que uma pequena minoria de pessoas seropositivas produzia anticorpos, particularmente p o t e n t e s , q u e poderiam neutralizar várias estirpes de VIH ao mesmo tempo. Até à data, os cientistas identificaram dezenas destes anticorpos neutralizantes de largo espectro, que visam partes da superfície viral (tal como com as proteínas do pico SARS-COV-2) que permanecem as mesmas.
Em Angola, há programas de pesquisa e acompanhamento científico de pessoas infectadas pelo vírus da Sida?
Não existe esse tipo de iniciativa. O Instituto Nacional de Luta contra a Sida está muito empenhado na coordenação estratégica e com muito êxito. Temos alguns desafios logísticos, que têm sido resolvidos, e estamos no bom caminho. Angola faz parte da Aliança Global para a prevenção, constituída por um grupo de países, que trocam experiências e apoios técnicos para acabar com a Sida como problema de saúde público até 2030. Nos três últimos anos, tivemos o apoio inestimável da Primeira-dama na luta contra a transmissão do VIH de mãe para filho. Dobramos a cobertura de mulheres grávidas em tratamento, passando de 34 por cento para 68 por cento. O meu apelo pessoal à Primeira-dama é para levar adiante esse projecto. A protecção social, a educação, incluindo a educação sexual abrangente, e os serviços de prevenção do VIH, integrados nos serviços de saúde sexual e reprodutiva, melhoram a saúde e a capacitação das jovens mulheres e adolescentes. Investir na educação e nos serviços de saúde, prevenir e proteger as mulheres e raparigas da violência, erradicar o casamento precoce, forçado e infantil, e promover os direitos das mulheres. Através destas acções, as jovens mulheres e adolescentes podem ser protegidas contra o VIH e o mundo pode ajudar a eliminar a Sida até 2030.