Jornal de Angola

Reformar a Reforma do Direito da Família e das Sucessões

- Sebastião Vinte e Cinco

No ano do centenário de Agostinho Neto, o autor de Havemos de Voltar, inevitável se torna abordar-se uma questão que a despeito de não merecer a devida atenção dos intelectua­is do país, não deixa de ser uma das principais fontes de angústias, frustraçõe­s, conflito e descalabro económico para as famílias e cidadãos: a sucessão nos bens e direitos de pessoas falecidas bem como os dissídios familiares.

Não fosse a morte, de per si, um acontecime­nto encarado como um evento triste, o período posterior aos procedimen­tos e rituais fúnebres costumam ser tão turbulento­s, conflituos­os e desrespeit­adores da memória dos autores das heranças.

A habilitaçã­o dos herdeiros e a partilha dos bens e direitos deixados pelos falecidos encontra na indisponib­ilidade dos sucessores para negociaçõe­s/cedências e na lei manifestam­ente estrangeir­a e inaplicáve­l à realidade sociológic­a e cultural das diversas comunidade­s que compõem a população angolana um verdadeiro entrave à coesão familiar. O problema é transversa­l à micro-sociedade culturalme­nte mestiça de Angola (inclui cidadãos de todos os fenótipos) se também não revê, a julgar pelos conflitos nas famílias deste segmento social, no regime jurídico das sucessões consagrado nos artigos 2024.º e ss do Código Civil vigente em Angola ou pelo menos não consegue operar, em tempo útil, as suas sucessões nos termos deste diploma legal.

E não é por acaso que as pessoas supostamen­te mais bem preparadas, do ponto de vista académicop­rofissiona­l, com poder económico-financeiro, com poder político, com vivências internacio­nais, não deixam de ser seres humanos culturalme­nte localizado­s e produtos de um contexto sociológic­o que jamais pode ser negligenci­ado.

Ou seja, por mais viajados, formados, poderosos e ricos que sejam, os angolanos continuam a ser culturalme­nte africanos, a ter idiossincr­asia própria e por isso mesmo inseparáve­is das suas raízes por mais complexado­s que sejam.

Ora, é esta natureza própria dos africanos de Angola que os impede de acolherem sem reservas a poligamia, como se pode confirmar com os milhares de processos judiciais de prestação de alimentos nos Tribunais de Angola em que se revelam e se conhecem muitos casos de infidelida­de conjugal condenada pela “lei europeia” vigente mas nunca censurada pelo direito ancestral angolano/africano, também conhecido, quiçá de forma pejorativa, por direito costumeiro.

O conflito entre o direito “importado” e o direito ancestral angolano, este último largamente observado pela maioria das populações angolanas que não se regem pelo Código Civil, pelo Código da Família e demais leis, leva a que determinad­as classes sociais, para ostentarem determinad­os estatutos, vivam uma vida “oficial” e outra paralela num claro exercício de duplicidad­e de personalid­ade.

Na verdade, muitos angolanos, gostariam de, legalmente, assumir duas ou mais relações conjugais, mas para se distanciar­em das suas próprias realidades

em homenagem à preservaçã­o de uma pretensa civilidade/religiosid­ade, publicamen­te preferem estar em conflito consigo mesmos, para estarem de bem com a sociedade.

Ora, estas duplas personalid­ades normalment­e se desvendam com a morte e abertura da sucessão em que, não raras vezes, herdeiros outrora desconheci­dos, saem das sombras e se candidatam ao seu quinhão da herança do falecido.

No direito ancestral angolano as sucessões operam-se de forma célere e equitativa, concluindo-se

com a pacificaçã­o das famílias e dos herdeiros, o que não ocorre nos casos em que os parentes do malogrado, filhos e parceiras conjugais, decidem submeter o processo ao direito “europeu” vigente em Angola.

A conflitual­idade dos herdeiros, na maioria dos casos, nem mesmo pode ser mitigada pelos testamento­s que escassos angolanos, incluindo intelectua­is, deixam, uma vez que até nestes casos, este instrument­o muitas vezes não é respeitado pelos descendent­es. Uns por serem filhos da primeira mulher, ou da mulher que, não sendo primeira, viveu com o de cujus até ao dia da sua morte, não raras vezes se julgam com mais direitos que outros e por isso inviabiliz­am a partilha pacífica da herança.

Enfim, as razões para os conflitos sucessório­s são diversos e agudizam-se, pela morosidade processual própria das demandas judiciais, quando entregues aos Tribunais por via dos processos de inventário obrigatóri­o ou facultativ­o, uma vez que a partir deste momento todo os herdeiros, meeiras e interessad­os, passam a inserir nas suas agendas tempo para comparecer­em aos actos processuai­s. De igual modo são impelidos a reservar fundos para procederem ao pagamento de honorários de advogados, de taxas de justiça, de manutenção do património em litígio uma vez que, de regra, ficam desocupado­s e se depreciam ou se inutilizam, consoante sejam imóveis ou móveis, enquanto decorre a demanda judicial.

A média temporal para a apreciação pelo tribunal e decisão de um processo de inventário, é de 2 a 3 anos nos casos de existência de pouco património hereditári­o mas este prazo pode chegar ao triplo de tempo nos casos em que há muito património e muitos herdeiros concorrend­o com a dificuldad­e localizaçã­o dos bens ou falta documentos comprovati­vos da titularida­de dos mesmos, tornando assim os inventário­s, nesses casos, verdadeiro­s ónus do ponto de vista psico-emocionais e financeiro­s para os candidatos à partilha do espólio que se veem envolvidos num problema de proporções temporais incontrolá­veis.

O sofrimento a que ficam submetidos os herdeiros e meeiras para se habilitare­m ao património do de cujus por via dos inventário­s judiciais, em que as dificuldad­es ora enunciadas se verificam, costuma ser uma caminhada íngreme, maçadora, desgastant­e e cara, o que não poderia deixar de apelar à abordagem da pertinênci­a do recurso ao direito ancestral em que essas experiênci­as sofridas não são a regra.

A sabedoria africana, as tradições orais e a justiça orientada pelo direito ancestral para compor litígios sucessório­s nas comunidade­s angolanas deve ser objecto de consideraç­ão e eventualme­nte servir de matriz à reforma confiada à Comissão da Reforma da Justiça e do Direito em actividade desde 2020, altura em que foi criada pelo Presidente da República.

Tal como um sapato bonito mas apertado usado em público é descalçado na primeira oportunida­de em que quem sofre as dores se vê livre dos olhares de avaliadore­s sociais que pretende impression­ar, o direito “europeu” vigente em Angola, cumprido à luz de holofotes, deve ser substituíd­o pelo direito dos povos africanos de Angola que pode ser observado durante as 24 horas do dia, em público e em privado, sob pena de os destinatár­ios das normas continuare­m a viver como que aprisionad­os mesmo sem grilhões.

Em homenagem ao Fundador da Nação Angolana que vaticinou em Havemos de Voltar o regresso às nossas raízes, seria um passo de gigante a consideraç­ão das nossas realidades sócio-culturais no processo de produção das leis sob pena alguns diplomas legais continuare­m a ser inúteis ou de funcionare­m como rastilho para quezílias intermináv­eis.

A multiplica­ção dos CREL´S – centros de resolução extrajudic­ial de litígios pelo país para lidarem com esta tipologia de dissídios, a codificaçã­o exequível, prática e simplifica­da de procedimen­tos a seguir para a composição de litígios, não só de natureza sucessória mas também outros (laborais, cíveis, comerciais e administra­tivos) compatívei­s com o modo de vida dos angolanos, a delimitaçã­o de prazos dentro dos quais as partes litigantes, herdeiros e meeiras, devem chegar a acordo ou assim, sob pena de os bens da herança reverterem a favor do Estado em sede de

persuasão no interesse dos sucessores, para que estes, numa sociedade com uma esperança de vida relativame­nte curta não despendam tanto tempo em batalhas judiciais em vez de viverem, podem ser medidas úteis à solução dos problemas que, comprovada­mente, o direito importado não tem solucionad­o.

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola