Reformar a Reforma do Direito da Família e das Sucessões
No ano do centenário de Agostinho Neto, o autor de Havemos de Voltar, inevitável se torna abordar-se uma questão que a despeito de não merecer a devida atenção dos intelectuais do país, não deixa de ser uma das principais fontes de angústias, frustrações, conflito e descalabro económico para as famílias e cidadãos: a sucessão nos bens e direitos de pessoas falecidas bem como os dissídios familiares.
Não fosse a morte, de per si, um acontecimento encarado como um evento triste, o período posterior aos procedimentos e rituais fúnebres costumam ser tão turbulentos, conflituosos e desrespeitadores da memória dos autores das heranças.
A habilitação dos herdeiros e a partilha dos bens e direitos deixados pelos falecidos encontra na indisponibilidade dos sucessores para negociações/cedências e na lei manifestamente estrangeira e inaplicável à realidade sociológica e cultural das diversas comunidades que compõem a população angolana um verdadeiro entrave à coesão familiar. O problema é transversal à micro-sociedade culturalmente mestiça de Angola (inclui cidadãos de todos os fenótipos) se também não revê, a julgar pelos conflitos nas famílias deste segmento social, no regime jurídico das sucessões consagrado nos artigos 2024.º e ss do Código Civil vigente em Angola ou pelo menos não consegue operar, em tempo útil, as suas sucessões nos termos deste diploma legal.
E não é por acaso que as pessoas supostamente mais bem preparadas, do ponto de vista académicoprofissional, com poder económico-financeiro, com poder político, com vivências internacionais, não deixam de ser seres humanos culturalmente localizados e produtos de um contexto sociológico que jamais pode ser negligenciado.
Ou seja, por mais viajados, formados, poderosos e ricos que sejam, os angolanos continuam a ser culturalmente africanos, a ter idiossincrasia própria e por isso mesmo inseparáveis das suas raízes por mais complexados que sejam.
Ora, é esta natureza própria dos africanos de Angola que os impede de acolherem sem reservas a poligamia, como se pode confirmar com os milhares de processos judiciais de prestação de alimentos nos Tribunais de Angola em que se revelam e se conhecem muitos casos de infidelidade conjugal condenada pela “lei europeia” vigente mas nunca censurada pelo direito ancestral angolano/africano, também conhecido, quiçá de forma pejorativa, por direito costumeiro.
O conflito entre o direito “importado” e o direito ancestral angolano, este último largamente observado pela maioria das populações angolanas que não se regem pelo Código Civil, pelo Código da Família e demais leis, leva a que determinadas classes sociais, para ostentarem determinados estatutos, vivam uma vida “oficial” e outra paralela num claro exercício de duplicidade de personalidade.
Na verdade, muitos angolanos, gostariam de, legalmente, assumir duas ou mais relações conjugais, mas para se distanciarem das suas próprias realidades
em homenagem à preservação de uma pretensa civilidade/religiosidade, publicamente preferem estar em conflito consigo mesmos, para estarem de bem com a sociedade.
Ora, estas duplas personalidades normalmente se desvendam com a morte e abertura da sucessão em que, não raras vezes, herdeiros outrora desconhecidos, saem das sombras e se candidatam ao seu quinhão da herança do falecido.
No direito ancestral angolano as sucessões operam-se de forma célere e equitativa, concluindo-se
com a pacificação das famílias e dos herdeiros, o que não ocorre nos casos em que os parentes do malogrado, filhos e parceiras conjugais, decidem submeter o processo ao direito “europeu” vigente em Angola.
A conflitualidade dos herdeiros, na maioria dos casos, nem mesmo pode ser mitigada pelos testamentos que escassos angolanos, incluindo intelectuais, deixam, uma vez que até nestes casos, este instrumento muitas vezes não é respeitado pelos descendentes. Uns por serem filhos da primeira mulher, ou da mulher que, não sendo primeira, viveu com o de cujus até ao dia da sua morte, não raras vezes se julgam com mais direitos que outros e por isso inviabilizam a partilha pacífica da herança.
Enfim, as razões para os conflitos sucessórios são diversos e agudizam-se, pela morosidade processual própria das demandas judiciais, quando entregues aos Tribunais por via dos processos de inventário obrigatório ou facultativo, uma vez que a partir deste momento todo os herdeiros, meeiras e interessados, passam a inserir nas suas agendas tempo para comparecerem aos actos processuais. De igual modo são impelidos a reservar fundos para procederem ao pagamento de honorários de advogados, de taxas de justiça, de manutenção do património em litígio uma vez que, de regra, ficam desocupados e se depreciam ou se inutilizam, consoante sejam imóveis ou móveis, enquanto decorre a demanda judicial.
A média temporal para a apreciação pelo tribunal e decisão de um processo de inventário, é de 2 a 3 anos nos casos de existência de pouco património hereditário mas este prazo pode chegar ao triplo de tempo nos casos em que há muito património e muitos herdeiros concorrendo com a dificuldade localização dos bens ou falta documentos comprovativos da titularidade dos mesmos, tornando assim os inventários, nesses casos, verdadeiros ónus do ponto de vista psico-emocionais e financeiros para os candidatos à partilha do espólio que se veem envolvidos num problema de proporções temporais incontroláveis.
O sofrimento a que ficam submetidos os herdeiros e meeiras para se habilitarem ao património do de cujus por via dos inventários judiciais, em que as dificuldades ora enunciadas se verificam, costuma ser uma caminhada íngreme, maçadora, desgastante e cara, o que não poderia deixar de apelar à abordagem da pertinência do recurso ao direito ancestral em que essas experiências sofridas não são a regra.
A sabedoria africana, as tradições orais e a justiça orientada pelo direito ancestral para compor litígios sucessórios nas comunidades angolanas deve ser objecto de consideração e eventualmente servir de matriz à reforma confiada à Comissão da Reforma da Justiça e do Direito em actividade desde 2020, altura em que foi criada pelo Presidente da República.
Tal como um sapato bonito mas apertado usado em público é descalçado na primeira oportunidade em que quem sofre as dores se vê livre dos olhares de avaliadores sociais que pretende impressionar, o direito “europeu” vigente em Angola, cumprido à luz de holofotes, deve ser substituído pelo direito dos povos africanos de Angola que pode ser observado durante as 24 horas do dia, em público e em privado, sob pena de os destinatários das normas continuarem a viver como que aprisionados mesmo sem grilhões.
Em homenagem ao Fundador da Nação Angolana que vaticinou em Havemos de Voltar o regresso às nossas raízes, seria um passo de gigante a consideração das nossas realidades sócio-culturais no processo de produção das leis sob pena alguns diplomas legais continuarem a ser inúteis ou de funcionarem como rastilho para quezílias intermináveis.
A multiplicação dos CREL´S – centros de resolução extrajudicial de litígios pelo país para lidarem com esta tipologia de dissídios, a codificação exequível, prática e simplificada de procedimentos a seguir para a composição de litígios, não só de natureza sucessória mas também outros (laborais, cíveis, comerciais e administrativos) compatíveis com o modo de vida dos angolanos, a delimitação de prazos dentro dos quais as partes litigantes, herdeiros e meeiras, devem chegar a acordo ou assim, sob pena de os bens da herança reverterem a favor do Estado em sede de
persuasão no interesse dos sucessores, para que estes, numa sociedade com uma esperança de vida relativamente curta não despendam tanto tempo em batalhas judiciais em vez de viverem, podem ser medidas úteis à solução dos problemas que, comprovadamente, o direito importado não tem solucionado.