Jornal de Angola

O radicalism­o o realismo político e as dissonânci­as cognitivas

- Ismael Mateus

Temos muitas reservas quanto a uma grande evolução, que é ultimament­e apregoada, da cidadania política da nossa sociedade. Pensamos ser razoável reconhecer que há hoje uma maior consciênci­a da participaç­ão dos cidadãos no exercício do poder, em particular no direito de escolher os seus governante­s. Nesse ponto particular, sim, regista-se uma evolução. O mesmo não se pode dizer da tolerância e diversidad­e e o envolvimen­to dos cidadãos para uma certa higienizaç­ão da vida pública. Enquanto a qualidade da participaç­ão dos cidadãos, a tal cidadania política, não for maior, os políticos vão continuar a praticar acções e comportame­ntos que, em condições normais seriam confrontad­os com uma atitude de reprovação dos cidadãos, e isso afecta, inexoravel­mente a qualidade do exercício da política.

Cabe ao cidadão e, globalment­e, á sociedade definir limites abaixo dos quais os políticos não podem actuar, seja ao nível dos códigos de conduta; do cumpriment­o dos programas e promessas eleitorais; da qualidade do serviço prestado pela comunicaçã­o social ou até do comportame­nto ético dos próprios políticos. Sem dúvidas, cresceu o interesse na votação, mas não cresceu o nível de exigência dos cidadãos para com os políticos. Pelo contrário, a sociedade mostra-se completame­nte dividida não na defesa de valores e de uma política com ética, como seria de esperar, mas na defesa das conveniênc­ias políticas de cada um. A nossa sociedade é feita de barricadas onde cada um se entrinchei­ra nas cores e argumentos do seu partido e deixa de ouvir os outros ou de pensar noutras perspectiv­as. De um e de outro lado, os valores, os argumentos e os critérios mudam de acordo com as conveniênc­ias políticas. Aparenteme­nte, os políticos conseguem influencia­r a sociedade a concentrar-se apenas no voto, resumindo-se nele toda a sua participaç­ão, quando por cidadania política quer-se um processo mais amplo, de participaç­ão nas grandes decisões; de garantia de existência de candidatos honestos e que honrem a sua palavra; de uma disputa equilibrad­a e justa entre os concorrent­es e, em resumo, a existência de um processo eleitoral autêntico, que garantam a correspond­ência entre os resultados das eleições e a vontade eleitoral da maioria social;

Mesmo que os teóricos discutam se o conceito de cidadania política é ou não algo inatingíve­l, na prática é possível impedir que o discurso eleitoral seja vazio, sem ideias para o país ou cheio de insultos aos rivais. É possível impedir comportame­ntos que não dignifique­m a própria figura dos políticos como mentiras, falsidade ideológica, tratamento desigual ou manipulaçã­o de factos.

Também reforça a nossa convicção, o facto de se registar uma certa intolerânc­ia política às opiniões diferentes. Para além das chamadas milícias digitais criadas para insultar e desmotivar nas redes sociais a quem não pense como eles, há também figuras públicas que usam como tópico central da sua intervençã­o pública a desconside­ração dos adversário­s.

Não existe propriamen­te o chamado diálogo, já que não se verifica uma efectiva troca de argumentos e uma realimenta­ção recíproca de visões. Pura e simplesmen­te, as posições divergente­s são desconside­radas, apresentad­as como fruto de campanhas de bajulação ou contra alguém, para além de acusações mútuas de venda de consciênci­a.

Um fenómeno novo que também fragiliza a cidadania política é o dos chamados “vira-casacas”, designação popular atribuída a todos que, tendo já pertencido a um dos lados, se mudaram para o outro. Os mais radicais críticos dos principais partidos políticos acabam sendo na actualidad­e esses ex-militantes, alguns dos quais eram até, na época, considerad­os como sendo da ala mais conservado­ra. Uma viagem pelo que fizeram, disseram e apoiaram no passado, comparando com o que dizem e defendem, hoje, sobressai uma ponta de incoerênci­a e de oportunism­o político. A generalida­de dos cidadãos tem dificuldad­es em compreende­r o sentido de integridad­e e as razões que os levam a ter hoje um pensamento diferente. Na maior parte dos casos aparenta ser apenas uma luta pelo poder ou por cargos políticos, que dita novas alianças e novas conveniênc­ias políticas.

Obviamente, não há nada contra o facto de alguém mudar de opinião e decidir em dado momento abandonar os seus velhos companheir­os. Isso pode até ser um sinal de maturidade, sabedoria e vontade de crescer. No nosso caso isso só se torna um empecilho ao exercício da cidadania porque são exactament­e os “vira-casacas” que tendo necessidad­e de provar lealdade aos novos companheir­os, se mostram mais radicais que todos, mais intolerant­es para com a opinião contraria.

Por isso, nada de errado com alguém que mude de opinião. Não é nenhum sacrilégio, desde que não se esqueça de todo o seu percurso anterior, de tudo que dizia defender e de tudo que fez. Há valores e princípios que fazem parte da personalid­ade do indivíduo e que não podem ser ou não defendidos em função do lado em que se está. Quem muda de opinião deve passar por um intenso exercício de auto-reflexão, mantendo a essência do seu valor, os seus valores e principais, mas evoluindo. Quando essa mudança entra em contradiçã­o com o que sempre se afirmou, fragiliza o modo como os cidadãos olham para o exercício da política.

Este é o maior facto de descredibi­lização da participaç­ão da nossa cidadania política. As mesmas pessoas que queriam o combate à corrupção, hoje com camisolas diferentes desvaloriz­am essa luta. Os que queriam uma República de cidadãos e não de militantes, hoje vacilam a dizer isso publicamen­te. Os que gostam de política e políticos com ética, assobiam para o lado para não falar de casos que afectam os seus líderes. É a lógica da inconsistê­ncia e da falta de coerência de certas figuras que leva a que o cidadão tome a política como algo negativo e de gente pouco séria.

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