O radicalismo o realismo político e as dissonâncias cognitivas
Temos muitas reservas quanto a uma grande evolução, que é ultimamente apregoada, da cidadania política da nossa sociedade. Pensamos ser razoável reconhecer que há hoje uma maior consciência da participação dos cidadãos no exercício do poder, em particular no direito de escolher os seus governantes. Nesse ponto particular, sim, regista-se uma evolução. O mesmo não se pode dizer da tolerância e diversidade e o envolvimento dos cidadãos para uma certa higienização da vida pública. Enquanto a qualidade da participação dos cidadãos, a tal cidadania política, não for maior, os políticos vão continuar a praticar acções e comportamentos que, em condições normais seriam confrontados com uma atitude de reprovação dos cidadãos, e isso afecta, inexoravelmente a qualidade do exercício da política.
Cabe ao cidadão e, globalmente, á sociedade definir limites abaixo dos quais os políticos não podem actuar, seja ao nível dos códigos de conduta; do cumprimento dos programas e promessas eleitorais; da qualidade do serviço prestado pela comunicação social ou até do comportamento ético dos próprios políticos. Sem dúvidas, cresceu o interesse na votação, mas não cresceu o nível de exigência dos cidadãos para com os políticos. Pelo contrário, a sociedade mostra-se completamente dividida não na defesa de valores e de uma política com ética, como seria de esperar, mas na defesa das conveniências políticas de cada um. A nossa sociedade é feita de barricadas onde cada um se entrincheira nas cores e argumentos do seu partido e deixa de ouvir os outros ou de pensar noutras perspectivas. De um e de outro lado, os valores, os argumentos e os critérios mudam de acordo com as conveniências políticas. Aparentemente, os políticos conseguem influenciar a sociedade a concentrar-se apenas no voto, resumindo-se nele toda a sua participação, quando por cidadania política quer-se um processo mais amplo, de participação nas grandes decisões; de garantia de existência de candidatos honestos e que honrem a sua palavra; de uma disputa equilibrada e justa entre os concorrentes e, em resumo, a existência de um processo eleitoral autêntico, que garantam a correspondência entre os resultados das eleições e a vontade eleitoral da maioria social;
Mesmo que os teóricos discutam se o conceito de cidadania política é ou não algo inatingível, na prática é possível impedir que o discurso eleitoral seja vazio, sem ideias para o país ou cheio de insultos aos rivais. É possível impedir comportamentos que não dignifiquem a própria figura dos políticos como mentiras, falsidade ideológica, tratamento desigual ou manipulação de factos.
Também reforça a nossa convicção, o facto de se registar uma certa intolerância política às opiniões diferentes. Para além das chamadas milícias digitais criadas para insultar e desmotivar nas redes sociais a quem não pense como eles, há também figuras públicas que usam como tópico central da sua intervenção pública a desconsideração dos adversários.
Não existe propriamente o chamado diálogo, já que não se verifica uma efectiva troca de argumentos e uma realimentação recíproca de visões. Pura e simplesmente, as posições divergentes são desconsideradas, apresentadas como fruto de campanhas de bajulação ou contra alguém, para além de acusações mútuas de venda de consciência.
Um fenómeno novo que também fragiliza a cidadania política é o dos chamados “vira-casacas”, designação popular atribuída a todos que, tendo já pertencido a um dos lados, se mudaram para o outro. Os mais radicais críticos dos principais partidos políticos acabam sendo na actualidade esses ex-militantes, alguns dos quais eram até, na época, considerados como sendo da ala mais conservadora. Uma viagem pelo que fizeram, disseram e apoiaram no passado, comparando com o que dizem e defendem, hoje, sobressai uma ponta de incoerência e de oportunismo político. A generalidade dos cidadãos tem dificuldades em compreender o sentido de integridade e as razões que os levam a ter hoje um pensamento diferente. Na maior parte dos casos aparenta ser apenas uma luta pelo poder ou por cargos políticos, que dita novas alianças e novas conveniências políticas.
Obviamente, não há nada contra o facto de alguém mudar de opinião e decidir em dado momento abandonar os seus velhos companheiros. Isso pode até ser um sinal de maturidade, sabedoria e vontade de crescer. No nosso caso isso só se torna um empecilho ao exercício da cidadania porque são exactamente os “vira-casacas” que tendo necessidade de provar lealdade aos novos companheiros, se mostram mais radicais que todos, mais intolerantes para com a opinião contraria.
Por isso, nada de errado com alguém que mude de opinião. Não é nenhum sacrilégio, desde que não se esqueça de todo o seu percurso anterior, de tudo que dizia defender e de tudo que fez. Há valores e princípios que fazem parte da personalidade do indivíduo e que não podem ser ou não defendidos em função do lado em que se está. Quem muda de opinião deve passar por um intenso exercício de auto-reflexão, mantendo a essência do seu valor, os seus valores e principais, mas evoluindo. Quando essa mudança entra em contradição com o que sempre se afirmou, fragiliza o modo como os cidadãos olham para o exercício da política.
Este é o maior facto de descredibilização da participação da nossa cidadania política. As mesmas pessoas que queriam o combate à corrupção, hoje com camisolas diferentes desvalorizam essa luta. Os que queriam uma República de cidadãos e não de militantes, hoje vacilam a dizer isso publicamente. Os que gostam de política e políticos com ética, assobiam para o lado para não falar de casos que afectam os seus líderes. É a lógica da inconsistência e da falta de coerência de certas figuras que leva a que o cidadão tome a política como algo negativo e de gente pouco séria.