Keba Mbaye e o conceito de direito ao desenvolvimento
O tópico da conversa é-me sugerido pelo artigo do filósofo senagalês Souleymane Bachir Diagne, publicado na revista francesa “Critique”, em 2011. Além do título sugestivo, “Philosophie africaine et Charte africaine des droits de l’homme et des peuples” [Filosofia africana e Carta africana dos direitos do homem e dos povos], faz um apelo aos filósofos Africanos, no sentido de despertarem o interesse por essa convenção africana, tendo em conta a sua originalidade.
Para evitar o predomínio da visão positivista dos juristas que foram responsáveis pela redacção da Carta, Souleymane Bachir Diagne lança o repto para reflexões suscitadas pela noção de uma “filosofia propriamente africana da pessoa humana”.
O debate
O sentido do apelo de Bachir Diagne aponta para o alcance das críticas que Kéba Mbaye dirige às concepções eurocênticas e liberais dos direitos humanos, quando este ataca os preconceitos relativistas dominantes nas democracias liberais do Ocidente. A este propósito, a filósofa israelita Anat Biletzki também entende que uma crítica fecunda dos direitos humanos deve explorar os dilemas éticos práticos que acompanham a sua realização, bem como o conceito de direitos humanos e seus fundamentos.
Os actuais debates no domínio da Filosofia dos Direitos Humanos têm vindo a estruturar-se em duas dimensões: 1) perspectiva filosófica e civilizacional do processo de conceptualização dos direitos humanos; 2) categorização dos direitos humanos, de acordo com os respectivos conteúdos.
Relativamente à primeira dimensão, fala-se de seis gerações de direitos humanos numa periodização tendencialmente eurocêntrica, ignorando-se muitas vezes os contributos de outros países e civilizações. Por exemplo, a propósito do direito ao ambiente, à volta do qual se desenvolveu o tópico da nossa conversa anterior, ou do direito ao desenvolvimento, procede-se à inscrição do primeiro no catálogo dos direitos humanos da terceira geração, e a respeito do segundo, ignora-se muitas vezes os relevantes contributos do eminente jurista senegalês Kéba Mbaye (1924-2007), na imagem.
A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos que, ao nível continental,
entrou em vigor em 1986, foi uma das primeiras convenções a consagrá-lo, cinco anos antes. No seu artigo 24º, pode ler-se: “Todos os povos têm direito a um ambiente satisfatório e favorável ao seu desenvolvimento”. Em Angola, além da sua constitucionalização, registam-se igualmente acções para a sua efectivação. Prova disso é o Programa Nacional de Qualidade Ambiental, aprovado em 2020. Entre os seus objectivos refere-se o imperativo de “melhorar a qualidade de vida dos angolanos das áreas urbanas, periurbanas e rurais”.
A segunda dimensão do debate manifesta-se através da necessidade que se impõe para a classificação dos direitos humanos. Qual a conc e p ç ã o r e l e va n t e ? A concepção moral ou a jurídico-política? No contexto académico africano, discute-se de igual modo a conceptualização do que o jurista queniano Makau Mutua designa por “Estado de direitos humanos”.
Ao formular a sua definição, Makau Mutua entende que o Estado não deve apenas garantir constitucionalmente os direitos civis e políticos. Deve dar o mesmo tratamento aos direitos económicos, sociais e culturais. Por isso, considera que o “Estado de direitos humanos” confere efectiva dignidade constitucional a todos os direitos humanos. Para todos os efeitos, trata-se de um tipo óptimo de Estado, representando a comunidade política ideal.
Contributos das civilizações africanas
Os contributos relevantes das civilizações africanas não ocorreram apenas no século XX, como a formulação do conceito de “direito ao desenvolvimento”, cuja advocacia principal deve ser atribuída ao jurista e professor senegalês Kéba Mbaye. Mas há um documento, a Carta de Kurukan Fuga ou Carta Mandé, elaborada no antigo Império do Mali cuja leitura e referências os historiadores africanos recomendam. Trata-se de um catálogo oral de princípios destinados aos caçadores do qual existem hoje versões escritas. Foi usada no século XIII, durante o reinado de Soundiata Keita, o soberano do Mali. A Carta de Kurukan Fuga é um documento que pode ser referido como proclamação de direitos atribuídos à pessoa humana. Outro contributo para a Filosofia dos Direitos Humanos tem a sua demonstração na proposta apresentada por Kéba Mbaye, o conceito de direito ao desenvolvimento como direito humano. Para chegar à elaboração do conceito, Mbaye julga ser necessário depurar a carga eurocêntrica de diferentes convenções. É a doutrina relativista dos direitos humanos sobre a qual se debruça e denuncia no seu artigo “Le facteur développement dans la conception des droits de la personne” [O factor desenvolvimento na concepção dos direitos da pessoa humana], publicado em 1984, na Canadian Journal of Development Studies/revue canadienne d'études du développement, [Revista Canadiana de Estudos do Desenvolvimento].
Kéba Mbaye defende a necessidade de se reconhecer que todos os instrumentos respeitantes à promoção ou protecção dos direitos dos indivíduos carregam as marcas que identificam a especificidade das civilizações que as criaram. Por isso, são convenções que emanam de um pensamento monista e positivista que, lamentavelmente, em seu entender, tem adeptos e seguidores entre os Africanos.
Moral e o direito ao desenvolvimento
No referido artigo, Kéba Mbaye traça a genealogia do conceito de direito ao desenvolvimento. Foi por ele definido por ocasião de uma aula inaugural proferida em 1972, no Instituto
Internacional de Direitos Humanos, tendo sido posteriormente plasmado numa das versões do terceiro Pacto sobre os Direitos do Homem.
Já em Setembro de 1978, na conferência realizada em Dakar pela Comissão Internacional de Juristas, sob o tema “Desenvolvimento e Direitos Humanos”, chegava-se à conclusão de que o desenvolvimento integrava os direitos humanos. Semelhante perspectiva conduz à articulação da concepção moral e da concepção jurídico-política dos direitos humanos. Para Kéba Mbaye, o fundamento dessa articulação reside no princípio da solidariedade, admitindo-se por isso a existência de um direito ao desenvolvimento que, como critério de equilíbrios, pode evitar decisões arbitrárias em matéria de categorização dos direitos humanos.
Portanto, coube aos Africanos o pioneirismo em matéria de consagração convencional. Assim, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos foi o primeiro i nstrumento que definiu o direito ao desenvolvimento como parte do catálogo dos direitos humanos. No nº. 1 do seu artigo 22, lê-se o seguinte: “Todos os povos têm direito ao desenvolvimento económico, social e cultural, no estrito respeito da sua liberdade e da sua identidade, e ao igual gozo do património comum da humanidade”.
Por outro lado, em 1986, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento. Nesse texto, é perceptível a recepção do conceito da Carta de Banjul. O direito ao desenvolvimento é definido como “um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos têm o direito de participar, contribuir e desfrutar do desenvolvimento económico, social, cultural e político, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais podem encontrar plena realização”.
A Constituição da República de Angola através do seu artigo 26 º . incorpora essa doutrina, ao determinar que os preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados à luz da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
Perfil de Kéba Mbaye
Kéba Mbaye nasceu no Senegal, tendo sido um dos mais importantes juristas Africanos do século XX. Formou-se em França. Exerceu a docência universitária na Faculdade de Direito da Universidade Cheikh Anta Diop. Desempenhou vários cargos. No seu país natal, desempenhou o cargo de Presidente do Tribunal de Cassação, durante dezoito anos, e do Conselho Constitucional, durante quinze anos. Além de juiz, foi Presidente da Corte Internacional de Justiça (de 1982 a 1991).
De 1972 a1981 assumiu o cargo de Presidente do Comité Internacional de Direito Comparado, tendo presidido a Comissão Internacional de Juristas e a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Foi i gualmente membro da Associação Internacional de Direito Penal (1982- 1995). Faleceu em 2007, aos 83 anos de idade.
Em conclusão, pode dizer-se que nestas primeiras décadas do século XXI, o repto lançado por Souleymane Bachir Diagne representa, no fundo, uma auto-interpelação para que neste capítulo se efectue o balanço do pensamento produzido no continente. Deste modo, será possível compreender o significado da originalidade das mais diferentes criações africanas para as quais já Kéba Mbaye e outros intelectuais da sua geração tinham contribuído.