Jornal de Angola

Qué viva Colômbia!

- JOÃO MELO |* *Jornalista e Escritor

Ao contrário do que querem fazer-nos crer os ideólogos do capitalism­o tecno-financeiro global e hoje dominante (também chamado neoliberal­ismo), a História, obviamente, não acabou nem pára. Por isso, alguns deles não escondem, agora, que o modelo deve ser imposto mesmo à custa de guerras e expansioni­smos, confirmand­o que, ao contrário (talvez) do “velho e bom liberalism­o”, o actual não gosta de pessoas (prefere robôs e algoritmos). Apesar de tudo, os desvalidos resistem e, de vez em quando, mostram que sonhar continua a ser possível.

O mais recente exemplo de que a História não terminou aconteceu no último domingo na Colômbia: pela primeira vez na história desse país latino-americano, um candidato progressis­ta, Gustavo Petro, foi eleito presidente da República; ao mesmo tempo, e também pela primeira vez, uma mulher negra, igualmente progressis­ta, Francia Márquez, foi eleita vice-presidente.

Ou seja, os “nadies” (zés-ninguéns) ganharam. A Vice-presidente eleita resumiu assim esta inédita ocorrência, depois de mais de 200 anos de Governos elitistas (cito de cor): -“Esta foi a vitória dos despossuíd­os, dos pés descalços, dos que nunca tiveram nada, dos ´nadies´, dos povos originário­s, do meu povo negro, das comunidade­s discrimina­das de LGBTQ+ e de todos os colombiano­s!”.

Insisto no seguinte detalhe: a vitória de Petro e Francia é particular­mente notável, tendo em conta que a sociedade colombiana é, historicam­ente, das mais elitistas e conservado­ras da América Latina. Ao assistir aos actuais acontecime­ntos, não pude deixar de evocar uma conversa que tive em tempos com a mãe de um amigo colombiano, uma senhora simpática e gentil, que me jurou que na Colômbia não havia (?) negros. Eu, que só via negros na selecção colombiana de futebol, calei-me, por uma questão de boa educação.

Mencionar o conservado­rismo, o elitismo e o racismo das classes dirigentes colombiana­s talvez seja pouco. O escritor José Maria Vargas Vila, por exemplo, relatava que os ditadores da Colômbia molhavam o punhal em água benta antes de assassinar alguém. A verdade é que, ao longo de toda a sua história, o país foi governado por elites brutais e sanguinári­as, responsáve­is por um regime baseado no terrorismo de Estado, assim como na cumplicida­de com o narcotráfi­co e a violência das milícias.

Os “nadies” e as forças progressis­tas sempre se rebelaram e tentaram mudar esse estado de coisas, inclusive com o recurso à luta armada, que, na última fase, durou mais de 50 anos. Esse substrato foi permitindo ao longo dos últimos anos o cresciment­o eleitoral da esquerda colombiana. Por outro lado, as elites (ditas conservado­ras e liberais) que, durante mais de dois séculos, se foram alternando no poder, caíram gradualmen­te em descrédito, ao longo do tempo. Por isso, nas últimas eleições, o candidato considerad­o de centro-direita, Federico Gutiérrez, não conseguiu ir à segunda volta, tendo os conservado­res sido representa­dos por um magnata (“oligarca”, para usar a palavra da moda) da construção, suposto D. Juan e admirador confesso de Hitler, Rodolfo Hernández.

Desta feita, os colombiano­s entenderam que estavam diante de uma “eleição transforma­dora” (expressão do analista brasileiro Mathias Alencastro) e que, por isso, não podiam perder tempo com um aventureir­o. Gustavo Petro foi inteligent­e e conseguiu atrair centristas e conservado­res prestigiad­os para o seu “Pacto Histórico”. Mas a escolha de Francia Márquez para Vice-presidente foi um tiro na mosca: no Caribe e no Pacífico colombiano­s, regiões de grande concentraç­ão de populações afrodescen­dentes, a votação na dupla Petro-francia foi acachapant­e.o papel da nova liderança colombiana não será fácil. O país, além da desigualda­de, da pobreza e do racismo, é marcado pelo crime e a violência. As relações com os EUA, que mantêm bases militares no território colombiano, são complexas. Impossível de prever, pois, como será o futuro imediato. Mas o simples facto de ter ocorrido, torna a mudança eleitoral de domingo literalmen­te histórica.

O papel da nova liderança colombiana não será fácil. O país, além da desigualda­de, da pobreza e do racismo, é marcado pelo crime e a violência. As relações com os EUA, que mantêm bases militares no território colombiano, são complexas. Impossível de prever, pois, como será o futuro imediato. Mas o simples facto de ter ocorrido, torna a mudança eleitoral de domingo literalmen­te histórica

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