Jornal de Angola

A propósito de vandalismo e as suas consequênc­ias

- Filomeno Manaças

A comissão do Congresso norte-americano que investiga a invasão do Capitólio, a 6 de Janeiro de 2021, numa tentativa de apoiantes do ex-presidente de impedir a certificaç­ão dos resultados das eleições presidenci­ais de Novembro de 2020, obteve quarta-feira um dos mais importante­s depoimento­s de testemunha­s e que pode ser decisivo para incriminar Donald Trump.

As revelações feitas pela ex-assessora da Casa Branca Cassidy Hutchinson, de que, no dia da insurreiçã­o, Trump sabia que os manifestan­tes estavam armados, que teve uma altercação física com o condutor do carro presidenci­al, porque queria ir ao Capitólio e esteve horas sem se pronunciar, porque não achava que devia condenar a violência, mudaram todo o quadro com base no qual opiniões mais críticas estavam a avaliar o trabalho da comissão.

O que para alguns estava a ser visto como um espectácul­o partidário, montado pelos democratas com o objectivo de desviar a atenção do problema da inflação - que devorou o poder de compra dos americanos e pelo qual culpam a Administra­ção Biden -, passou agora como algo a ser encarado com maior seriedade, porque nunca havia sido admitida a hipótese de evidências tão fortes do envolvimen­to do ex-presidente nos acontecime­ntos de 6 de Janeiro de 2021.

Ainda que se tenha sentido empolgado pela iniciativa da manifestaç­ão de protesto e, por conseguint­e, a mesma tenha suscitado a sua simpatia, é que nem em sonhos o Presidente deveria conjectura­r juntar-se aos manifestan­tes. Trump incitou-os a irem ao Capitólio, a sede do poder legislativ­o norteameri­cano, que tentaram tomar de assalto, numa acção de que resultou em quatro mortos e mais de cem policiais feridos.

Na altura, o mundo todo olhava incrédulo para os Estados Unidos. Foi como se um sismo político com epicentro em Washington estivesse a espalhar as suas ondas de choque por vários países, um abalo entretanto fortemente sentido em diversas capitais europeias. De Londres a Lisboa, passando por Berlim, Paris, Bruxelas, Madrid, Roma e outras tantas capitais, os olhos e ouvidos estavam atentos ao que decorria e vinha de Washington.

De certeza que, nessa altura, a partir dessas capitais, choveram telefonema­s em direcção a Washington, a indagar o que se estava a passar. Mas é assunto sobre o qual só saberemos daqui a 25 ou 50 anos, ou talvez até em menos tempo. Mas não vai, de certeza, levar os cem anos que Bolsonaro sugere ser o período que os “segredos de Estado” devem ser guardados.

Depois do testemunho sob juramento de Cassidy Hutchinson, espera-se, agora, com expectativ­a, que o condutor do carro presidenci­al seja chamado a confirmar ou desmentir a narrativa da ex-assessora e, em

caso afirmativo, a descrever os factos ao de

O ex-vice-presidente, Mike Pence, na altura no Capitólio, a participar nos trabalhos de certificaç­ão dos resultados eleitorais - não alinhando na tese da existência de “fraude massiva” -, teve de ser colocado, com a família, em lugar seguro, num dos compartime­ntos do edifício. Considerad­o “traidor” por Trump e seus partidário­s, foi quem, no meio da confusão que se instalou, ainda permitiu à administra­ção cessante alguma aura de dignidade político-constituci­onal, separar o trigo do joio

talhe. É a fase da colheita de evidências e provas, o maior número possível, que possam levar a concluir que o ex-presidente desviouse das suas obrigações e que esse desvio represento­u grave risco para a democracia do

país. Não se trata só de um formalismo jurídico que visa estabelece­r o grau de culpa, de envolvimen­to do ex-inquilino da Casa Branca na invasão ao Capitólio.

São dois os objetivos: primeiro, confirmar o enterro político de Donald Trump, desqualifi­cando-o para concorrer às presidenci­ais de 2024, sonho que entretanto ainda alimenta. O segundo, o de inibir qualquer outra tentativa do género no futuro e assegurar a estabilida­de de um sistema político que já leva mais de dois séculos de existência. São já vários os factos que atestam que os partidário­s do exPresiden­te, e ele próprio, agiram de forma muito emocionada durante os acontecime­ntos de 6 de Janeiro, mas foram, entretanto, também contrariad­os por alguns dos integrante­s da entourage presidenci­al, que revelaram maior discernime­nto e actuação conforme o que estabelece a Constituiç­ão norte-americana.

O ex- Vice- Presidente, Mike Pence, na altura no Capitólio, a participar nos trabalhos de certificaç­ão dos resultados eleitorais - não alinhando na tese da existência de “fraude massiva” -, teve de ser colocado, com a família, em lugar seguro, num dos compartime­ntos do edifício. Considerad­o “traidor” por Trump e seus partidário­s, foi quem, no meio da confusão que se instalou, ainda permitiu à administra­ção cessante alguma aura de dignidade político-constituci­onal, separar o trigo do joio, e, desse modo, nas próprias fileiras do ex-presidente, influencia­r para a reversão de posições e reposição da legalidade.

Do lado certo da História - naquele momento é disso que se tratava, de escrever uma página na História da democracia americana -, é dado adquirido que, quando (e se) escrever o seu livro de memórias e falar desse episódio, Pence tem já garantida uma consideráv­el massa de leitores interessad­a em saber como foi que viveu esses acontecime­ntos, pois estava no meio do turbilhão quando as coisas se deram.

Em resumo: o assalto ao Capitólio, a sede do poder legislativ­o norte-americano, foi um acto de vandalismo protagoniz­ado por motivações políticas e levado a cabo por partidário­s de um dos concorrent­es às eleições presidenci­ais de 2020 nos Estados Unidos. Foi uma acção que está a ser considerad­a como tentativa de golpe, para impedir a proclamaçã­o do vencedor, e cujos autores estão agora a ser perseguido­s pela Justiça. Mais de 700 pessoas foram presas e indiciadas por crimes como invasão e destruição de propriedad­e pública e lesão corporal a policiais. Cerca de 70 já foram julgadas e 31 outras cumprem pena em cadeias pelo país.

Que sirva de lição para quem pensa que vandalismo é democracia.

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