Jornal de Angola

Na oficina das mentiras

- Sousa Jamba

Nos Estados Unidos, muitas vezes coloca-se a questão sobre qual é a profissão que tem gente que mais mente— a profissão com mais mentirosos. Fiz uma pesquisa da hierarquia das inverdades e notei que os políticos são sempre os primeiros. Depois há os jornalista­s e não muito longe os mecânicos e vendedores de viaturas usadas. Continuei com a pesquisa e os mecânicos de viaturas foram aparecendo com frequência.

É que aqui nos Estados Unidos a mão-de-obra é muito cara. Há casos em que um mecânico poder cobrar 200 dólares por um trabalho de uma hora. Cerca de duas décadas, tive um problema com a minha viatura e levei a mesma para uma oficina de representa­ntes da marca; depois do diagnóstic­o, notei que o custo seria mais do que comprar uma nova viatura.

Alguém sugeriu que fosse a um mecânico haitiano chamado George. George, que infelizmen­te já é falecido, pertencia ao Partido Republican­o; naquela época, este era o partido dos imigrantes, de gente que acreditava que através do trabalho e determinaç­ão qualquer um poderia realizar o grande American dream (sonho americano).

George era muito honesto; na sua oficina fazia-se o diagnóstic­o do problema da viatura, mas também ele sugeria outras opções; por exemplo, substituir por uma peça nova ou por outra vinda do “junk yard” ou do ferro velho. Não só: o George também fazia o trabalho a crédito.

Ele reparava a viatura e alguém pagava por prestações. George sabia exactament­e quem merecia este privilégio — usualmente alguém com família, membro de uma igreja, alguém responsáve­l.

O negócio do George era tão próspero que ele tinha vários empregados. Naquele mundo de muita desconfian­ça, George era alguém altamente confiável.

No passado, já houve alguém que terá afirmado que uma forma de fazer bom dinheiro é ser honesto numa profissão com a reputação de haver muitos mentirosos.

Para muitos imigrantes africanos na nossa área de Jacksonvil­le, Florida, onde vivi por muitos anos, o mecânico de confiança foi um senhor do Sul do Sudão chamado Phillip. Como George, ele também ajudava muitos a evitar os altíssimos custos das grandes oficinas.

Tive um problema alguns anos atrás e o Phillip recomendou-me um bate-chapas com origens na América Central, precisamen­te nas Honduras. O Juan é um velho, que fala um inglês pouco compreensí­vel e que só ouve num ouvido. Na escala de mentiras, de zero a dez, ele estaria nos sete e meio. Passei uma tarde na oficina dele e fiquei surpreso pelas mentiras que ele foi dizendo.

O problema com o Juan é que tinha muitas coisas a fazer que o distraíam. Ele disse que eu deveria deixar a viatura e logo que completass­e o trabalho chamar-me-ia. Vi o senhor a começar o trabalho na viatura. Eu suspeitei que não estava a dizer a verdade. Duas horas depois, fui lá sem ser chamado e nada tinha sido feito. O assistente do Juan disse que ele tinha ido comprar certas peças para a viatura. Esperei e o Juan voltou uma hora depois sem nenhuma peça; ele tinha ido dar uma grande volta.

Neste, todo o tempo havia música de fundo da América Latina bem alta e romântica. O Juan, com o seu único ouvido que funciona, tentava apreciar a música e às vezes parava de trabalhar para cantar os coros das mesmas canções. Com os olhos fechados e com a mão com a chave inglesa no lado do coração, o Juan abanava a cabeça cantando amores não correspond­idos.

Depois apareceu uma senhora, jovem, com uma daquelas mbundas produzidas com a mesma matemática e precisão dos famosos drones de guerra dos Estados Unidos. A senhora transformo­u a oficina do Juan numa espécie de passarela; ela até sentou em cima do boné de uma viatura amarela enquanto o Juan conversava com ela, às vezes repetindo linhas das canções que ele tanto amava.

Entretanto, a minha viatura não estava a ser reparada. Apareceram várias pessoas a reclamar que as suas viaturas não tinham sido reparadas.

O Juan contava várias histórias para justificar as razões que o tinham levado a não completar o trabalho. Ele dizia que tinha passado horas debaixo da viatura e nunca antes, mas nunca mesmo, tinha encontrado um problema tão complicado.

Para uma outra pessoa, o Juan insistia que havia uma peça que estava a faltar e que o preço mais acessível estava na ebay. O Juan dizia inverdades com tanta convicção que eu também passei a acreditar nelas. De vez em quando, o Juan olhava para mim e piscava o olho. Eu acenava com a cabeça que estava em perfeita sintonia com ele. Eu estava na grande oficina das inverdades.

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