John Bunyan em línguas africanas
O tópico da presente conversa visa a compreensão do modo como as línguas nacionais angolanas também contribuem para a transnacionalização da tradução, no contexto de uma geopolítica das línguas, não podendo ser ignoradas as razões da negligência que se cultiva a seu respeito e, consequentemente, a marginalização glotofágica do continente africano. Para o efeito, a reflexão está centrada no modelo que determinadas obras literárias europeias representaram na concretização do diálogo inter-religioso em África. Neste caso, pretendo suscitar a curiosidade pelo livro de um autor inglês, John Bunyan, traduzido em várias línguas africanas.
De acordo com Isabel Hofmeyr, este tipo de tradução não é apenas como um evento através do qual determinado texto é arremessado da Europa para a África. Há que ter em conta o tempo, espaço e as tensões ideológicas. O que quer dizer que faz sentido ter em conta uma perspectiva geopolítica das línguas.
John Bunyan
John Bunyan (1628-1688), o autor de “Pilgrim’s Progress” [O Peregrino], [Ungende Wukuakristu] em Umbundu, foi um pregador puritano. Não possuía formação universitária. Mas era possuidor de dotes que lhe garantiram distinção e notoriedade. Durante a guerra civil inglesa (1644-1646), foi militar e, logo depois, tornou- se membro de uma igreja separatista em Bedford, sua terra natal, onde foi reconhecido como pregador. Em 1660, já tinha quatro livros publicados. Mas viria a ser condenado a doze anos de prisão, por comportamentos censuráveis que caracterizavam os chamados não-conformistas.
A reclusão transformouse em incentivo para a escrita, permitindo definir a sua personalidade literária. A publicação da sua alegoria da vida cristã, o seu livro “Pilgrim’s Progress”, regista-se oito anos após a sua saída da prisão. Ao longo dos séculos que se seguiram, pass o u a s e r um dos mai s
traduzidos livros da história das literaturas.
Carácter transnacional das traduções
Alguns anos após a publicação de uma antologia de contos que tem a chancela da União dos Escritores An
golanos, traduzida em francês, cuja qualidade gráfica
suscitava interrogações a respeito das estratégias do seu editor, fui interpelado por pessoas conhecedoras do mercado do livro em França. Algumas delas consideraram que tal edição reperesentava um desperdício, porque o livro tinha entrado em circulação sem qualquer tipo de marketing. Este facto pode despertar a atenção para a necessidade de se conhecer as dinâmicas do mercado do livro e dos estudos literários transnacionais.
Nesta transição de século, tem vindo a ser atribuída importância à tradução e ao seu carácter transnacional, enquanto fenómeno civilizacional. Faz-se referência a uma suposta “guinada dos estudos transnacionais”, que, ao nível académico, se traduz na consagração institucional dos Estudos Literários Transnacionais, durante os últimos cinquenta anos. Tal fenómeno está associado aos chamados processos de g l obalização cultural. Mas, quanto a mim, trata-se de processos que não admitem qualquer diálogo intercivilizacional simétrico, quando se inscreve a África no mapa geopolítico das traduções, das línguas e das literaturas. Se a tradução de obras literárias releva da Literatura Comparada, por que razão não estudar as traduções de autores europeus nas versões das línguas africanas? A pergunta pode ser respondida tomando como base as versões do romance “Pilgrim’s Progress” de John Bunyan, em diferentes línguas africanas.
Tem interesse saber quem são os seus leitores, quem é o tradutor, qual a sua competência na língua-fonte e na língua-alvo. No que diz respeito à história da tradução do livro de John Bunyan na África Austral, há uma obra incontornável, “The Portable Bunyan: A Transnational History of The Pilgrim’s Progress” [O Bunyan Portátil: Uma História Transnacional do Peregrino], publicada em 2004, cuja autora é a investigadora sul-africana Isabel Hofmeyr.
Versões em línguas angolanas
Num apêndice do livro de Isabel Hofmeyr, que comporta oitenta línguas africanas das versões do livro de John Bunyan, encontramse sete línguas bantu faladas igualmente em Angola. Entre estas a versão mais antiga, em Kikongo, foi publicada em 1897 pela Sociedade Missionária Baptista. Segue-se a versão em Herero de 1915 com uma edição da Sociedade Missionária Finlandesa; a versão em Umbundu de 1904, cujo editor é o Conselho Americano para o Comité de Missões Estrangeiras; a versão em Kikongo, na sua variedade linguística de Cabinda, em 1921; a versão em Lunda ou Ruund de 1926, editada pela Sociedade de Publicações Religiosas; a versão em Lwena de 1929, publicada pela Sociedade Unida de Literatura Cristã; a versão em Cokwe, publicada em 1941, igualmente pela Sociedade Unida de Literatura Cristã.
Apesar de não haver referências à versão em Kimbundu, na lista de Isabel Hofmeyr, um relatório das actividades da Igreja Metodista em Angola, referente a 1926, dava conta do trabalho de tradução do reverendo H. C. Withey que tinha concluído a versão do livro de John Bunyan “The Pilgrim’s Progress”. O manuscrito, totalmente ilustrado, com texto bilingue Kimbundu/português, já se encontrava no prelo.
Isabel Hofmeyr não fornece referências dos nomes de todos os tradutores. Por exemplo, a versão em Umbundu é atribuída ao missionário norte-americano William H.sanders. Mas não deixa de ser relevante admitir que os coadjutores e falantes nativos tenham desempenhado um papel importante. Exemplo dessa intervenção de Africanos é Samuel Ajai Crowther (1807?), que efectuou a tradução completa da Bíblia, em 1900, seguindose a tradução do livro de John Bunyan. Trata-se de um antigo escravizado de origem Yoruba em terras inglesas, que posteriormente foi restituído à liberdade e repatriado para a Serra Leoa. Formou-se no Fourah Bay College, em 1827. Após a sua ordenação como ministro da Sociedade Missionária “Church Missionary Society”, regressou à Nigéria como missionário.
O tradutor da versão em Umbundu de “The Pilgrim’s Progress” [Ungende Wukuakristu, em Umbundu], é William Henry Sanders (1856-) um dos primeiros missionários norte-americanos que se instalaram nos planaltos centrais de Angola, em 1881. Tinha um profundo conhecimento da língua Umbundu. Além do Dicionário Umbundu-inglês, traduziu igualmente para a língua Umbundu o Evangelho de S. João, impresso em 1888. Parte dos materais publicados eram impressos na tipografia da missão, situada em Kamundongo. A língua Umbundu passou a ser usada como veículo de evangelização, a partir destas iniciativas.
Classificação das traduções
Não parece questionável a perspectiva segundo a qual as traduções de obras como as do escritor inglês devem ser classificadas como parte das literaturas em línguas africanas. De resto, foi esta a posição adoptada pelos autores da obra colectiva, “Literatures in African Languages. Theoretical Issues and Sample Surveys”, organizada por dois especial i stas polacos, em 1985, numa edição da Cambridge University Press. Por isso, o universo das literaturas africanas não é apenas constituído pelas literaturas orais ou pelas literaturas em línguas europeias.
Importa sublinhar mais uma vez a importância do livro de Isabel Hofmeyr, no contexto da África Austral. À semelhança da referida obra colectiva, pela sua abrangência, revela-se igualmente como excelente instrumento do trabalho de comparação. Das abundantes referências destacam-se, por exemplo, as traduções de “The Pilgrim’s Progress”. É o caso das versões sulafricanas em Xhosa, de Tiyo Soga (1829-1971) e John Henderson Soga (1860-1941), e em Sotho de Thomas Mofolo (1877-1948).
Na introdução da sua tradução Xhosa de “The Pilgrim’s Progress”, [Uhambo lo Mhambi] ( 1868), Tiyo Soga, na imagem, que era missionário da Igreja Presbiteriana Unida no Cabo Oriental, elabora uma síntese. Assim, atrai o leitor para seguir a história narrada, a de um viajante que l entamente procura conhecer-se a si mesmo. Descansando e retomando a caminhada, vai ouvindo coisas que leva ao conhecimento do leitor. Para Tiyo Soga, a moral é simples: leve sempre as coisas devagar, não tenha pressa. Leia com atenção e ponderação.
Para concluir esta proposta de leitura, parece ser interessante ler o prefácio de William Henry Sanders em Umbundu e avaliar a qualidade da sua tradução. É o que faremos na próxima conversa.
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