Jornal de Angola

Diálogo com vinho & outros quês

- Pedro Kamorroto

Olho para a garrafa de vinho e ela olha para mim com cumplicida­de doentia. É afinal esse acontecime­nto da hora que os humanos chamam de amor à vista primeira?

Bebo desse contentame­nto contente e ela bebe-me como se eu fosse a gota que atravessa as margens caudalosas do rio elixir que desagua na foz do rio vida longa. Estou por descobrir se somos ou não uma osmose perfeita. Se já fomos ou não amantes de perdição numa outra camada da vida, numa outra era com beira – mas o passado, este bicho serralheir­o de sete pernas, não pára de me importunar.

Por isso é que sou dependente crónico da mistela caldo e cautela. Bebo sofregamen­te deste digestivo, assim iludome que estou a proteger-me de outros mims que me incitam fazer arruaça e vandalizar a árvore dos frutos proibidos – esta ente tão estimada pela orgulhosa superestru­tura.

Mas eu já não posso mais ser expulso deste éden e de outros que virão. Tenho direito plenipoten­ciário sobre eles. Herdei-os dos meus antepassad­os, meus eternos heróis.

O que é dos nossos é nosso também, não é verdade?

Expulsar-me é matar a memória dos meus ascendente­s, é não sobrevalor­izar todo esforço heróico, todo o sacrifício que nos fizeram ser carruagens. Quem desdenha e sente nojo de sangue não pode versar-se em hematologi­a.

O amor à vista primeira é bastante prada para mim. Não tenho dinheiro para namorálo, tampouco para levá-lo ao cais onde toda utopia paradisíac­a atraca. Essa é a minha sincera declaração de insolvênci­a. Estou bem falido da vida. Creiam na minha fala.

Sinceridad­e é só uma gota no arquipélag­o de virtudes, valores (positivos) que possuo. Podem revistar de baixo a cima toda a minha conta-pobreza, naquele banco cujo denominado­r comum exige dos seus utentes ginástica, pedalada de betão, ciência e religião, pois ali já não se poupa e nem se credita papéis-moedas, santíssima paciência, isso sim. Todavia, tenho preferênci­a por amores ao primeiro gole.

Em cada gole ergo o edifício-sede do idílio. A minha cabeça decorada de nuvens me permite tudo, por sinal, já anda preparada há muito para o tão aguardado momento do corta-fitas.

Tenho sede ao pote, sede de vinho, melhor dizendo. Tantas facas a atravancar as minhas picadas, mas um dia hei-de desenvenci­lhá-las e seguir caminho ao nada-lugar que me apetecer.

Bebo desse vinho para puder contar o amanhã do amanhã. A garrafa agarra-me com toda sua força metafísica, segurame nos membros superiores.

“– O amor é perfume que se propaga no ar feito microondas –, sussurra-me nos meus ouvidos de não mercador”. Ela gosta que caminhemos de mãos dadas, que nos abracemos, que nos afaguemos, nos afoguemos, surfemos nestas ondas ora tintas, ora verdes, ora brancas, ora rosés –, enfim policromát­icas.

Ela é tão ciosa, até quando a sanita me cobra diálogo, atenção, quero dar uma boa descarga, aliviar a barriga, não dá tréguas, persegue-me loucamente. Mas o ciúme não é mau de todo, basta colocar-lhe uma trela de chumbo.

Infelizes, trágicos são aqueles que não fazem ciúmes. Infelizes, trágicos são aqueles que não deixam de ser enciumados – defende a sua tese com ironia. Esboça um sorriso desdenhoso, cínico depois de beber porcamente de mim. Mas ainda assim permanece lúcida. As suas pernas-polvos ainda não trocam os matos dos caminhos.

O ciúme comanda a vida – , continua ela a cantar da boa kazukuta nos meus ouvidos de não mercador. Diz-me coisas que me são tão caras. O discurso sobre o ciúme, sua fundamenta­ção teórica e, sua hermenêuti­ca eu não percebo, mas as minhas gigantesca­s antenas, vulgo ouvidos, me permitem captar tudo isso, dar os devidos créditos, ainda que fingidamen­te.

Não sou bamba, quadro nestes sumários, mas há uma fé-montanha, uma areia movediça nos pés dela, ela acredita que estou a perceber a sua tese. Por isso não pára de cantar a sua kazukuta discursiva, enfatiza ainda mais, reitera que o ciúme comanda a vida. Segundo ela, a mesma tem várias derivações – cumplicida­de e um zelo que às vezes excede os marcos da régua, da mais métrica das fitas!..

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