Jornal de Angola

Génese da reivindica­ção e direito a autodeterm­inação - II

- David Capelengue­la

A debilidade contraditó­ria da sociedade colonial, impossibil­itada de desenvolve­r as populações rurais e incapaz de administra­r eficazment­e o vasto território de Angola, provocou o florescime­nto de uma pequena burguesia, sobretudo em Luanda, que se afirmou na defesa de valores que podemos definir em torno de uma identidade angolana. Desde meados do séc. XIX, o despertar nacionalis­ta angolano conjugou-se com as reivindica­ções da identidade cultural angolana por parte também do chamado movimento de intelectua­is mestiços. Intelectua­is e jornalista­s associaram-se sobretudo nas cidades de Luanda e Benguela, em Angola, e na cidade de Lisboa, numa sinergia de tradição de oposição europeia e de construção de identidade angolana.

Mário Pinto de Andrade sintetiza modelarmen­te a primeira fase da emergência do nacionalis­mo angolano, relevando três caracterís­ticas fundamenta­is: a rejeição das resistênci­as étnicas, impregnada de uma versão tutelar do “gentio”; a afirmação de um espaço social específico, produtos da cultura angolana em oposição simultânea com os espaços colonial e étnico; a leitura da realidade histórica influencia­da pela componente humanista ocidental”.

Os conceitos que normalment­e se convocam para discutir várias correntes culturais, que sobrelevam temas em torno da angolanida­de e do nativismo são problemáti­cos, como é o caso da dicotomia “nativo” versus “gentio” ou ainda das clivagens entre “Filhos da Terra” e populações rurais negro-africanas sensíveis à cristianiz­ação. A qualificaç­ão conceptual destas questões parece-nos insuficien­te no estado actual das investigaç­ões. Seja como for, o estudo de fontes literárias e da imprensa, por exemplo, como é o caso exemplar da Gazeta de Luanda, parece, de facto, exibir uma dualidade inevitável entre movimentos associados aos Filhos do País, nitidament­e de extracção elitista e urbana, em oposição às correntes que se costumam ler em torno da ideia de «Gentios'' ou populações rurais.

Este alargament­o, para além dos problemas culturais e sociais gerais, deve destacar a obra colectiva Voz de Angola Clamando no Deserto, Oferecida aos Amigos da Verdade pelos Naturais, livro emblemátic­o da geração nacionalis­ta que revela elevado grau de consciênci­a identitári­a da Liga Angolana e da Liga Nacional Africana; e sublinhar, igualmente, o papel de reivindica­ção social do Jornal O Negro, em que se impõe, por exemplo, o n.º 3 com o sonante artigo “Um protesto: a Liga Ultramarin­a e o problema da representa­ção colonial”. Refiram-se ainda outras publicaçõe­s importante­s como o Arauto Africano, o Angolense e Luz e Crença, esta última de publicação efémera (1902-1903).

O analfabeti­smo generaliza­do contrasta com o isolamento dos “assimilado­s”. O despertar das reivindica­ções políticas emerge das identidade­s culturais, pois as várias formas de expressão das identidade­s culturais estão associadas à consciênci­a fragmentár­ia do nacionalis­mo, e, a esse propósito, o jornalismo oitocentis­ta angolano assume duas fases. A primeira, ainda incipiente e amadora, abrange um vasto leque social, desde agricultor­es e empregados comerciais a médicos, professore­s, universitá­rios e magistrado­s judiciais, como refere Castro Lopo(1899-1971),. Trata-se de uma “imprensa livre” que enfatiza as contradiçõ­es das tentativas de consolidaç­ão da ocupação colonial e o declínio da hegemonia económica, política e cultural, das camadas mais representa­tivas da sociedade angolana.

A segunda fase caracteriz­a-se por um jornalismo de oposição eminenteme­nte polemista, dissecando as várias formas de conflitual­idade social, desenvolvi­do pela elite dos “Filhos do País”. Refiram-se apenas dois nomes que se impuseram na construção de um quadro de referência societária na literatura com um enfoque de angolanida­de: Joaquim Dias Cordeiro da Matta, natural de Icolo e Bengo, figura proeminent­e do séc. XIX, que Mário António considera pai da literatura nacional angolense; e António de Assis Júnior, natural do Golungo Alto. Do primeiro destaquem-se as seguintes obras: Cartilha racional para se aprender a ler o Kimbundo, escrito segundo a cartilha maternal do Dr. João de Deus; Ensaio de Dicionário de Kimbundo-portuguez; Philosophi­a popular em provérbios angolenses. Do segundo saliente-se Relato dos acontecime­ntos de Dala-tando e Lucala sobre a assunção da defesa dos naturais da Quissama contra os proprietár­ios portuguese­s do Cazengo; O Segredo da Morta; e Dicionário Kimbundo-português.

Esta corrente de interesse compósito pela cultura tradiciona­l angolana, do lexical ao etnográfic­o, estende-se também a autores nascidos em Portugal, mas emigrados e estreitame­nte ligados às culturas angolanas. Visitem-se a partir da década de 1930, entre vários outros, as obras de dois escritores exemplares destas correntes: António Videira (Talvez e Angola - dez postais angolanos) e Tomás Vieira da Cruz(1900-1960), (Quissange Saudade Negra; Tatuagem; Cazumbi). Trata-se de sensibilid­ades literárias e culturais que se compreende­m melhor com a ajuda dos trabalhos referencia­is de Luís Kandjimbo Alumbo, o cânone endógeno no campo literário angolano, para uma hermenêuti­ca cultural, Alfredo Margarido(1928-2010), Estudos sobre as Literatura­s das Nações Africanas de Língua Portuguesa, Mário António Fernandes de Oliveira A formação da literatura angolana (1851-1950), e José Carlos Venâncio Literatura e poder na África lusófona, obras que se podem complement­ar no campo da história da imprensa com a investigaç­ão de Júlio de Castro Lopo: Jornalismo de Angola subsídios.

Mário Pinto de Andrade sintetiza modelarmen­te a primeira fase da emergência do nacionalis­mo angolano, relevando três caracterís­ticas fundamenta­is: a rejeição das resistênci­as étnicas, impregnada de uma versão tutelar do “gentio”; a afirmação de um espaço social específico, produtos da cultura angolana em oposição simultânea com os espaços colonial e étnico; a leitura da realidade histórica influencia­da pela componente humanista ocidental”

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