Génese da reivindicação e direito a autodeterminação - II
A debilidade contraditória da sociedade colonial, impossibilitada de desenvolver as populações rurais e incapaz de administrar eficazmente o vasto território de Angola, provocou o florescimento de uma pequena burguesia, sobretudo em Luanda, que se afirmou na defesa de valores que podemos definir em torno de uma identidade angolana. Desde meados do séc. XIX, o despertar nacionalista angolano conjugou-se com as reivindicações da identidade cultural angolana por parte também do chamado movimento de intelectuais mestiços. Intelectuais e jornalistas associaram-se sobretudo nas cidades de Luanda e Benguela, em Angola, e na cidade de Lisboa, numa sinergia de tradição de oposição europeia e de construção de identidade angolana.
Mário Pinto de Andrade sintetiza modelarmente a primeira fase da emergência do nacionalismo angolano, relevando três características fundamentais: a rejeição das resistências étnicas, impregnada de uma versão tutelar do “gentio”; a afirmação de um espaço social específico, produtos da cultura angolana em oposição simultânea com os espaços colonial e étnico; a leitura da realidade histórica influenciada pela componente humanista ocidental”.
Os conceitos que normalmente se convocam para discutir várias correntes culturais, que sobrelevam temas em torno da angolanidade e do nativismo são problemáticos, como é o caso da dicotomia “nativo” versus “gentio” ou ainda das clivagens entre “Filhos da Terra” e populações rurais negro-africanas sensíveis à cristianização. A qualificação conceptual destas questões parece-nos insuficiente no estado actual das investigações. Seja como for, o estudo de fontes literárias e da imprensa, por exemplo, como é o caso exemplar da Gazeta de Luanda, parece, de facto, exibir uma dualidade inevitável entre movimentos associados aos Filhos do País, nitidamente de extracção elitista e urbana, em oposição às correntes que se costumam ler em torno da ideia de «Gentios'' ou populações rurais.
Este alargamento, para além dos problemas culturais e sociais gerais, deve destacar a obra colectiva Voz de Angola Clamando no Deserto, Oferecida aos Amigos da Verdade pelos Naturais, livro emblemático da geração nacionalista que revela elevado grau de consciência identitária da Liga Angolana e da Liga Nacional Africana; e sublinhar, igualmente, o papel de reivindicação social do Jornal O Negro, em que se impõe, por exemplo, o n.º 3 com o sonante artigo “Um protesto: a Liga Ultramarina e o problema da representação colonial”. Refiram-se ainda outras publicações importantes como o Arauto Africano, o Angolense e Luz e Crença, esta última de publicação efémera (1902-1903).
O analfabetismo generalizado contrasta com o isolamento dos “assimilados”. O despertar das reivindicações políticas emerge das identidades culturais, pois as várias formas de expressão das identidades culturais estão associadas à consciência fragmentária do nacionalismo, e, a esse propósito, o jornalismo oitocentista angolano assume duas fases. A primeira, ainda incipiente e amadora, abrange um vasto leque social, desde agricultores e empregados comerciais a médicos, professores, universitários e magistrados judiciais, como refere Castro Lopo(1899-1971),. Trata-se de uma “imprensa livre” que enfatiza as contradições das tentativas de consolidação da ocupação colonial e o declínio da hegemonia económica, política e cultural, das camadas mais representativas da sociedade angolana.
A segunda fase caracteriza-se por um jornalismo de oposição eminentemente polemista, dissecando as várias formas de conflitualidade social, desenvolvido pela elite dos “Filhos do País”. Refiram-se apenas dois nomes que se impuseram na construção de um quadro de referência societária na literatura com um enfoque de angolanidade: Joaquim Dias Cordeiro da Matta, natural de Icolo e Bengo, figura proeminente do séc. XIX, que Mário António considera pai da literatura nacional angolense; e António de Assis Júnior, natural do Golungo Alto. Do primeiro destaquem-se as seguintes obras: Cartilha racional para se aprender a ler o Kimbundo, escrito segundo a cartilha maternal do Dr. João de Deus; Ensaio de Dicionário de Kimbundo-portuguez; Philosophia popular em provérbios angolenses. Do segundo saliente-se Relato dos acontecimentos de Dala-tando e Lucala sobre a assunção da defesa dos naturais da Quissama contra os proprietários portugueses do Cazengo; O Segredo da Morta; e Dicionário Kimbundo-português.
Esta corrente de interesse compósito pela cultura tradicional angolana, do lexical ao etnográfico, estende-se também a autores nascidos em Portugal, mas emigrados e estreitamente ligados às culturas angolanas. Visitem-se a partir da década de 1930, entre vários outros, as obras de dois escritores exemplares destas correntes: António Videira (Talvez e Angola - dez postais angolanos) e Tomás Vieira da Cruz(1900-1960), (Quissange Saudade Negra; Tatuagem; Cazumbi). Trata-se de sensibilidades literárias e culturais que se compreendem melhor com a ajuda dos trabalhos referenciais de Luís Kandjimbo Alumbo, o cânone endógeno no campo literário angolano, para uma hermenêutica cultural, Alfredo Margarido(1928-2010), Estudos sobre as Literaturas das Nações Africanas de Língua Portuguesa, Mário António Fernandes de Oliveira A formação da literatura angolana (1851-1950), e José Carlos Venâncio Literatura e poder na África lusófona, obras que se podem complementar no campo da história da imprensa com a investigação de Júlio de Castro Lopo: Jornalismo de Angola subsídios.
Mário Pinto de Andrade sintetiza modelarmente a primeira fase da emergência do nacionalismo angolano, relevando três características fundamentais: a rejeição das resistências étnicas, impregnada de uma versão tutelar do “gentio”; a afirmação de um espaço social específico, produtos da cultura angolana em oposição simultânea com os espaços colonial e étnico; a leitura da realidade histórica influenciada pela componente humanista ocidental”