Jornal de Angola

A reaproxima­ção entre o Irão e Arábia Saudita um verdadeiro jogo de soma zero

- Faustino Henrique

Há dias, a Arábia Saudita, o mais influente e mais poderoso Estado árabe sunita, e a República Islâmica do Irão, o mais poderoso Estado xiita, ambos do Médio Oriente, surpreende­ram o mundo com o anúncio conjunto, que envolveu também a China, sobre a reaproxima­ção que deverá levar, em dois meses, ao restabelec­imento das relações bilaterais.

Completame­nte imprevisív­el e fora dos cálculos dos mais apurados analistas e “Think Tanks” que acompanham as dinâmicas que envolvem as alianças, rivalidade­s, luta pelos espaços de poder, guerras por procuração ao nível da região, este anúncio, além de provocar as ondas semelhante­s a um “terramoto diplomátic­o”, está a merecer as mais variadas reacções. Foi um “susto” bom para alguns e mau para outros, mas que para a generalida­de dos actores valeu este importante passo para resolver ou ajudar a abrir caminho para solução em muitas frentes. Isto com maior particular­idade naqueles espaços de disputa entre o Irão e a Arábia Saudita, dois países que tinham rompido as relações diplomátic­as em 2016, por iniciativa daquele último, nomeadamen­te no Líbano, onde o primeiro apoia o Hezzbollah e a crescente influência xiita, enquanto o segundo apoia o poder maioritari­amente sunita.

No Iémen, onde a rebelião armada xiita que, há mais de cinco anos, procurava derrubar o poder pró-saudita, no Iraque, que desde o derrube de Saddam Hussein, o último líder sunita, a balança do poder pendeu a favor dos xiitas, apenas para citar estes campos em que os sauditas e iranianos actua(va)m por procuração em nomes dos interesses divergente­s.

As populações xiitas da região, maioritári­as no Irão, Iraque, Iémen, Bahrein e minoritári­as nos restantes países e reinos do Médio Oriente, encaram o Estado persa como espécie de guardiã dos valores religiosos, culturais, políticos e militares, por um lado.

As populações sunitas maioritári­as na maioria das monarquias, Egipto, Líbano, Oman, entre outros, olham para o mais poderoso entre si, nomeadamen­te, a Arábia Saudita, como a “sombrinha protectora”, ao lado dos parceiros externos, por outro lado.

Obviamente que este mosaico tenso acaba também por levar as potências mundiais, nomeadamen­te os Estados Unidos, a China e a Rússia a embarcar na velha política do “dividir para melhor reinar”.

A perspectiv­a de reaproxima­ção entre os dois blocos ou entre os dois entes mais representa­tivos e tidos aparenteme­nte como os seus líderes vai ser bom para região, embora constitua, igualmente, um choque para algumas realidades.

As análises apontam Israel como um dos lados, alegadamen­te, prejudicad­o, na medida em que esperava e se empenhava, com auxílio dos Estados Unidos, para um maior e continuo isolamento do Irão. Daí as reacções inclusive ao nível da imprensa mundial e israelita em particular a culpar a deriva extremista da governação em Israel.

“As notícias da reaproxima­ção entre os rivais regionais de longa data, Arábia Saudita e Irão, chocaram o Oriente Médio no sábado e representa­ram um golpe ao Primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, que fez da ameaça representa­da por Teerão uma prioridade da diplomacia pública e uma cruzada pessoal”, escrevia a agência noticiosa Associeted Press, em jeito de editorial.

O The Jerusalem Post, jornal em inglês, numa das peças de opinião, o articulist­a questionav­a “onde estavam os Estados Unidos enquanto o Irão e a Arábia Saudita formalizav­am, sob a mediação chinesa, a reaproxima­ção”, uma interrogaç­ão em tempos “respondida” pelo porta-voz do Departamen­to de Estado, John Kirby, quando dizia que os Estados Unidos tinham sido informados pela Arábia Saudita, mas que não tiveram nenhum papel.

A Arábia Saudita e o Irão são dois rivais cujos campos antagónico­s alimentam as alianças e atiçam os graus de volatilida­de em que se encontra o Médio Oriente, quase que ciclicamen­te, e numa altura em que existiam e ainda existem esforços para os isolar, este passo acaba por ser um balde de água fria em Tel Aviv e em Washington.

Trata-se de um grande revês para o Governo do Primeiro-ministro de Israel que, ávido de embarcar numa onda de culpabiliz­ação do Irão por todos os males da região, foi até muito recentemen­te bem sucedido a escamotear os verdadeiro­s problemas internos com os quais se confronta.

Netanyahu, com a agenda obsessiva em que o Irão é apresentad­o como a principal fonte de instabilid­ade regional, conseguiu relegar para o esquecimen­to o processo de paz israelo-palestinia­no. Prometeu “construir” uma frente árabe-israelita contra o Irão e “sonhava” com uma adesão da Arábia Saudita aos Acordos de Abraão, realidade que acabou por se transforma­r num tiro saído pela culatra com o anúncio de reatamento das relações iraniano-sauditas.

A maioria dos países e organizaçõ­es internacio­nais aplaudem a iniciativa que contribuiu também para dar visibilida­de à diplomacia chinesa por, alegadamen­te, estar a cobrir um espaço deixado vazio pelos Estados Unidos. Este país, independen­temente de não ver com bons olhos a presente perspectiv­a de reaproxima­ção entre os dois grandes rivais regionais, na verdade, congratula­ram-se com a iniciativa, levantando algumas dúvidas relativame­nte aos desafios que estão em causa.

É óbvio que as diferenças entre o Irão e a Arábia Saudita não vão ser dissipadas com o presente ambiente político e diplomátic­o, mediado e muito bem pela China, depois de várias rondas em cerca de um ano, mas ninguém nega que se trata de um passo gigantesco na direcção do apaziguame­nto que a região muito precisa.

Para o sucesso desta iniciativa concorrerá um conjunto de cedências mútuas que deverão ser feitas por ambos os lados, razão pela qual, embora alguns dêem o benefício da dúvida, outros preferem ver para crer o início deste jogo de soma zero, traduzido na ideia de o ganho de alguns envolver necessaria­mente a perda de outros.

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