Espaço, lugar e território em “A casa velha das margens”
Na presente abordagem procuraremos exercitar um diálogo entre os sinónimos de espaço, lugar e território. Sendo elementos do campo da Geografia, os referidos conceitos se diferenciam, pois, segundo Marcelo Lopes de Souza, “o que ‘define’ o território é, em primeiríssimo lugar, o poder – e, nesse sentido, a dimensão política é aquela que, antes de qualquer outra, lhe define o perfil” (2005, p. 77). Para contrapor “espaço” e “território”, portanto, tem-se convocado a questão do poder como elemento diferenciador, o que não quer dizer que, ainda segundo Marcelo Lopes de Souza, a cultura (o simbolismo, as teias de significados, as identidades…) não seja relevante ou não esteja contemplada no uso do conceito (cf. 2005).
Natural de Luanda, Arnaldo Santos nasceu a 14 de Março de 1935, e na década de 50 integrou o chamado “grupo da Cultura”, tendo colaborado em várias publicações periódicas luandenses, entre as quais a Revista Cultura, o Jornal de Angola (da década de 60), ABC e Mensagem da Casa dos Estudantes do Império. Foi premiado com o livro de crónicas Tempo do Munhungo, em 1968, ganhando mais notabilidade a partir de então.
Em A casa velha das margens a relação entre Geografia e Literatura mostra-se evidente, pois enquanto espaço de amplo debate teórico-conceitual entre os pesquisadores do campo da Geografia em relação a esses termos, há, entretanto, uma análise que não se encerra, na maioria das vezes, na distinção entre espaço,lugar e território, já que tanto as questões próprias da dimensão simbólica quanto as referentes ao poder aparecem de forma quase indissociáveis. Por essa razão, sempre que se estiver a trazer para o debate as questões que vão transladar entre os conceitos apresentados, será necessário que se l eve em consideração um outro espaço, para além do geográfico: trata-se do espaço literário, com especificidades e características próprias que não devem ser tomadas de fora num exercício como este.
Uma noção de território que despreze a sua dimensão simbólica, mesmo entre aquelas que enfatizam o seu carácter eminentemente político, está fadada a compreender apenas uma parte dos complexos meandros dos laços entre espaço e poder.[...]. Assim, podemos afirmar que o território, relacionalmente falando, ou seja, enquanto mediação espacial do poder, resulta da interação diferenciada entre as múltiplas dimensões desse poder, desde a sua natureza até mais estritamente política e o seu carácter mais propriamente simbólico, passando pelas relações dentro do chamado poder económico,
O romance “A casa velha das margens”, escrito em um português padrão, permeado, no entanto, de palavras da língua kimbundu, traz perguntas sem respostas, interditos e lacunas, questões não elucidadas, fio condutor de uma narrativa muito descritiva. Escrito em 1999, o romance retoma o século XIX e as contradições de uma colónia heterogénea assombrada pelos fantasmas de muitas minorias silenciadas. Esses fantasmas não só ocupam a casa velha, mas também as margens do rio Lucala, lugar propício ao encontro e à manifestação do outro, muitas vezes de forma silenciosa. Os 88 anos de vida do autor, Arnaldo Santos, comemorados na terça-feira (14/03), são um bom pretexto para revisitar “A casa velha das margens”, romance fundamental da moderna literatura angolana
indissociáveis da esfera jurídico-política. (Haesbaert, 2016, p. 92-93).
No entanto, para Milton Santos, não cabem distinções entre os dois termos, pois “não serve falar de território em si mesmo, mas de território usado, de modo a incluir todos os actores. O importante é saber que a sociedade exerce permanentemente um diálogo com o território usado, e que esse diálogo inclui as coisas naturais e artificiais, a herança social e a sociedade em seu movimento actual”. (2001, p. 26).
Já o conceito de “lugar”, conforme definido ainda por Marcelo Lopes de Souza, pareceria, à primeira vista, o mais adequado para reflectir sobre a geografia inscrita nos textos literários, já que a carga simbólica seria a predominante. Segundo o pesquisador, não é a dimensão do poder que está em primeiro plano ou que é aquela mais imediatamente perceptível, diferentemente do que se passa com o conceito de território; mas sim a dimensão cultural-simbólica e, a partir daí, as questões envolvendo as identidades, a intersubjectividade e as trocas simbólicas, por trás da construção de imagens e sentidos dos lugares enquanto espaços vividos e percebidos, dotados de significado [...] Por conseguinte, ainda que com outras palavras, o lugar está para a dimensão cultural-simbólica assim como o território está para a dimensão política. (Souza, 2013, p. 115).
Com essa leitura, pode-se perceber que em A casa velha das margens “a geografia não é um recipiente inerte, não é uma caixa onde a história cultural ‘ocorre’, mas uma força activa, que impregna o campo literário e o conforma em profundidade” (Moretti, 2003, p. 13). Os deslocamentos do protagonista mostram-nos, então, que a geografia é uma força activa a produzir sentidos quando viajamos pelo texto literário. Tal trânsito também nos leva a questionar os caminhos trilhados pelo próprio país, reconhecendo as conquistas, mas, também, revelando denúncias de uma situação neocolonial que levou – e está levando – à morte de seu tempo. No processo de leitura do texto, podemos dizer que nos “movimentam[os] com o personagem através de espaços geográficos e experimentam[os] a negociação cultural que nele ocorre” (Tillis, 2016, p. 29). Logo que iniciamos essa viagem, percebemos que o deslocamento espacial percorrido pelo protagonista espelha um deslocamento temporal, seja pelo tempo diegético em que se passa a narrativa, seja pela temporalidade com as quais vamos entrando em contacto conforme o personagem avança cada vez mais pelo e para o interior. Para tratar dessa indissolubilidade entre as categorias de espaço e tempo nos romances, Mikhail Bakhtin cunhou o conceito de cronotopo, assim por ele definido: “No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto” (Bakhtin, 2010, p. 211). Nesse trânsito espaçotemporais, acompanhamos a saga do personagem nascido em Angola, mas obrigado, no passado, a deixar o seu país natal e ir para Portugal, porque, na avaliação do seu progenitor, ele estava “a ficar um selvagem”, e permanecer na fazenda representava um perigo, pois o menino cresceria “no meio da pretalhada” (Santos, p. 94). Na presente narrativa, percebe-se um ser errante, que transita por tempos e espaços distintos para desbravar essa Angola múltipla e complexa, percurso do qual, como dizia Ruy Duarte, se faz uma espécie de guia. O romance leva-nos a concordar com as reflexões de Eduardo Galeano, para quem “o mapa mente. A geografia tradicional rouba o espaço, assim como a economia imperial rouba a riqueza, a história oficial rouba a memória e a cultura formal rouba a palavra” (Galeano, 2013, p. 323).
A escrita que Arnaldo Santos empreende no seu romance é isso mesmo, uma forma de questionar os mapas tradicionais e de resistir aos saques do espaço, da memória e dos conhecimentos que, pela palavra, circulavam – e ainda circulam. Por meio do trânsito do seu protagonista, A casa velha das margens metaforiza o movimento de saída da capital como um esforço de dispersão, de busca por outros espaços e, consequentemente, por outros sentidos e identificações, os quais nos possibilitam redescobrir Angola, para além de Luanda, em sua riqueza e diversidade.
Arnaldo Santos tem sido referência com destaque na produção literária de Angola, sobretudo no campo da narrativa, com a novela A boneca de Quilengues: as estórias proibidas (1991); as colectâneas de contos Quinaxixee outras prosas(1981) e O cesto de Katandu e outros contos (1986); além dos romances A casa velha das margens (1999) e O vento que desorienta o caçador (2007). Com Luanda sempre a manifestar-se com destaque, cidade influenciadora na sua trajectória literária inicial, em Quinaxixe (1965), por exemplo, logo se percebe o afecto pela cidade natal que se anuncia desde o título, já que este convoca o bairro e a antiga lagoa de mesmo nome, hoje aterrada, que serviu de ambientação para as narrativas ali reunidas. Em um percurso bastante semelhante ao de A cidade e a infância, de Luandino Vieira, nesta colectânea sabemos mais sobre o quotidiano de Luanda a partir das nove “histórias dos meninos do Kinaxixe” (Santos, 1981, p. 11). Os contos são alinhavados pela presença dos mesmos personagens, como Zeca, Gigi e Mário, que transitam por vários textos e nos permitem olhar para o conjunto em sua totalidade. No conto de abertura, também “Quinaxixe”, acompanhamos exactamente um dia desses meninos e meninas luandenses. Apesar das cores e classes sociais distintas, eles conviviam como companheiros de bairro e cúmplices nas brincadeiras e risadas, cujas diferenças eram ofuscadas pela inocência dessa fase da vida e pelo prazer das travessuras. A primeira referência à cor de um dos meninos é marcada, ainda nesse conto de abertura da colectânea, pela fala de uma personagem adulta, Talamanca, viúva de um capitão português. Recuperemos um trecho: “O Zeca cantava baixo, olhando-a prudentemente, com o rabo de olho, ao passar. Ela não se importava nada de lhes dar uma berrida! Talamanca realmente não gostou, e rosnou, deitando-lhe um olhar duro: – Seu mulato vadio...! – Atira-lhe uma pedra – ofendeu-se pelo companheiro o Mário, que era branco. (Santos, 1981, p. 13).
Em homenagem ao cinquentenário da Casa dos Estudantes do Império, o escritor afirmou, em depoimento: “Teria eu sido outro homem se não tivesse passado pela Casa? Seguramente” (2015, p. 101). Depois da publicação de Quinaxixe, a capital de Angola continuou sendo o espaço focalizado por Arnaldo Santos em Tempo de munhungo, um conjunto de catorze crónicas lançado em 1968, que reúne, como o próprio autor destaca na dedicatória da obra, “estórias dos caluas” (1981, p. 71) – ou seja, dos nascidos em Luanda. Na trajectória inicial do escritor, portanto, a sua cidade natal serviu de ambientação às estórias que quis contar para contribuir com os embates políticos e sociais que, no momento de lançamento dos seus primeiros livros, se agravavam cada vez mais. Afinal, em 4 de fevereiro de 1961 deu-se o assalto às cadeias de Luanda para a libertação dos presos políticos, acontecimento este que passou a ser considerado o marco oficial do início da luta armada contra os colonizadores.