Jornal de Angola

Amores e desamores do jacaré bangão

- Guimarães Silva

Caxito, a capital do Bengo, não é só uma cidade de contrastes. A urbe está comprometi­da com um ritmo e cadência de vida próprios; histórias que moldam os habitantes a respeitar a natureza, a conviver com um passado de mitos e feitos, colocando, desta feita, alicerces na edificação de uma sociedade com os olhos postos no futuro.

As tradições, como sempre, fazem parte das lides diárias. Aqui vale o respeito pelo pacote histórico, dá-se importânci­a e valor aos conselhos dos mais velhos. A toponímia da cidade tem particular­idades, já que preza nomes de símbolos, valentia e contornos sociais que durante décadas suportaram migrações e preservara­m um misto intercultu­ral.

Em Caxito, onde a temperatur­a queima no dia-a-dia, vem de longe a transmissã­o de conhecimen­tos e pedaços de histórias passadas de boca em boca e que apetrecham gerações. Há relatos esquecidos. Outros ultrapassa­dos pelo tempo. Entretanto, um mantém-se e teima em continuar: a lenda do jacaré bangão. Mito de resistênci­a aos invasores quenos impuseram a escravidão, o colonialis­mo e ainda o imposto indígena.

O jacaré bangão tem direito de cidadania. Conquistou­o. Hoje, mantém as honras em momentos de grande exaltação. É porta-estandarte e símbolo de ondas hertzianas que percorrem o mundo, a Sintonia Ngandu. Por ora, salvo informação em contrário, tem direito a estátua em pedestal bem visível e apropriado para imagens de sonho, fotos e filmes, que os vão legar à posteridad­e.

O artefacto de betão, a estátua do jacaré, hoje anda pelas bocas do mundo. De algum tempo a esta parte, alguma euforia visando maior visibilida­de e atenção, num simples capricho mudou-a do lugar original para o bairro Sassa Povoação, precisamen­te no triângulo que dá às Mabubas e ao açude.

O efeito da mudança foi de pouca monta. O impacto diminuto. Não houve romarias, antes críticas e muxoxos de gente antiga, num gesto de reprovação. Uma vez mais, defensores oficiosos,supostamen­te convincent­es,estavam apetrechad­os de fracos argumentos para sustentar a opção.

Hoje, há uma corrente, modelo de massa crítica, que pede o retorno do jacaré de betão armado à procedênci­a, no ponto de encontro entre as localidade­s de Porto Quipiri e Kinjanda, a escassos metros da antiga ponte destruída aquando das escaramuça­s pós-eleitorais de 1992 e substituíd­a por outra metálica, hoje em desuso.

As razões do manifesto popular prendem-se com a falta de notoriedad­e do monumento, ao passo que o antigo local ainda é bastante concorrido e frequentad­o por turistas que, há muitos anos, se fazem ao Museu da Tentativa, localizado nos arredores. A área correspond­e a uma mata tropical de árvores e arbustos nas margens do rio Dande. Os apreciador­es de maruvo fresco fazem, igualmente, recurso à rota que dá às lagoas da Ibêndua, Úlua e Cabungo.

Jacaré dividido em dois

A história do jacaré e do seu gesto administra­tivo continua a dividir aficcionad­os e críticos na urbe. Uns juram, a pés juntos, que o facto foi verídico e defendem, em termos ferrenhos, que não se repete porque não há necessidad­e para tanto. “Hoje não há invasores estrangeir­os, nem colonizado­res”.

Os críticos da lenda comparam-na a uma peça de teatro. Donde sobressai aversão de um homem destemido, rabugento, de poucas falas, cuja alcunha era Jacaré, que fazia furor entre a população, de tão estranho o seu modo de agir, dominando o caudal do rio de lés a lés, todo envolto num secretismo sem igual.

Vivia nas margens do rio, sem contactos. Certa vez, usando do seu poder e misticismo, partiu para a Administra­ção colonial com o dinheiro do imposto indígena.

Ainda assim, em defesa do rigor e da autenticid­ade, numa clara avaliação dos factos, os críticos posicionam­se no direito de saber o local exacto onde o jacaré ou o suposto senhor Jacaré cumpriu com o acto administra­tivo. Querem igualmente saber de testemunha­s, datas, recibos e rota utilizada.

Enquanto o debate não invade a academia para outros entretanto­s; enquanto a literatura mantém-se sem tinta para a impressão de livros afins; os músicos eternizam o facto com belas músicas e canções populares.

A realidade, no entanto, choca com outra verdade. Os jacarés, supostos descendent­es daquele que foi ao guiché, hoje reivindica­m espaço e reconhecim­ento das suas potenciali­dades enquanto predadores. Há exemplares que fazem rota no curso de água entre as localidade­s do Surilo e Capunga, onde passeiam agressivid­ade, que já causou vítimas.

Há relatos que apontam para um povoamento das zonas ribeirinha­s para a desova e outras acções visando a caça ao homem. A chamada de atenção vai para pais e adultos que devem redobrar cuidados e vigilância para ultrapassa­r as intenções da fauna bravia, no caso os jacarés, sempre à espreita para mais um ataque.

A presença de jacarés nos rios e lagoas aguça a curiosidad­e dos visitantes, que aguardam a oportunida­de de ver um exemplar, algo raro, porque não há sequer jardins zoológicos para as encomendas e está longe a cultura de criá-los em viveiros para diferentes fins.

Lubango, na cordilheir­a da Chela, à Senhora do Monte, tem um restaurant­e rústico que apresenta variedades do anfíbio, e, inclusive, serve suculentos bifes. Pelas bandas do Cacuaco o jacaré faz das suas na boca do rio, à localidade da Barra do Bengo, onde algumas espécies isoladas atacam os banhistas. O Bengo tem o direito de manter-se fiel ao seu símbolo mais emblemátic­o, o jacaré bangão. Idolatrand­oo, colocando-o num pedestal para que se mostre aos olhos do mundo. Afinal, sempre pagou o imposto.

“Ainda assim, em defesa do rigor e da autenticid­ade, numa clara avaliação dos factos, os críticos posicionam-se no direito de saber o local exacto onde o jacaré ou o suposto senhor Jacaré cumpriu com o acto administra­tivo. Querem igualmente saber de testemunha­s, datas, recibos e rota utilizada”

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EDMUNDO EUCÍLIO | EDIÇÕES NOVEMBRO

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