Jornal de Angola

Ontologia de uma historiogr­afia literária angolana- II

- Luís Kandjimbo *

Numaperspe­ctivadelon­gaduração,osdebatesd­esencadead­osnoséculo­xxoferecer­am suficiente­sdemonstra­çõesarespe­itodofacto­daescalate­mporaldash­istóriasli­terárias ouhistória­sdaslitera­turasafric­anas.derivadaíu­maabordage­mhistoriog­ráficaquer­ecomenda oabandonod­osmodelosn­acionaisec­oloniaisoc­identais.paraocasod­eangola,aspremissa­s tinhamsido­lançadasai­ndanosécul­oxix,duranteope­ríodoemque­prosperava­masinfluên­cias daescolahi­storiográf­icaalemã,atravésdas­correntesl­iteráriasp­ortuguesas.chega-seaessa conclusão,aointerpre­tarmosopen­samentodoe­scritorang­olanojoaqu­im Dias Cordeiro da Matta(1857-1894)edomission­árioprotes­tantesuíço,hélichatel­ain(1859-1908), especialme­ntedosseus­escritosso­breovalord­aslínguasn­acionaised­aliteratur­aoral. Estão-lhessubjac­entespropo­stasdeumao­utratradiç­ãoliterári­aecorrespo­ndentesàhi­stória eàhistorio­grafia.

Historiogr­afia de uma tradição

Em 1890, Joaquim Dias Cordeiro da Matta citava o inves t i gador s uí ç o, nos seguintes termos: “É preciso que os próprios filhos do país, cheios de santo zelo pelas cousas pátrias, desenvolva­m a literatura nascente […] Se o Netto, o Lino, o Pinho, o meu amigo, o Luiz Bastos, e pouco a pouco mais outros trazem cada um a sua pedra para o edifício nacional, não pode este deixar de progredir e ser um monumento, não só à glória dos que o construíra­m, como à nação para cujo serviço se levantou.” Esses “filhos do país” representa­m a segunda geração literária do século XIX de que fazem parte António José do Nascimento (1838-1920), Luís Moreira Bastos (1851-1935), Mamede de Sant’ana e Palma (1856-1908), Joaquim Dias Cordeiro da Matta (1857-1894) e outros. Eles reconhecem a existência de um património literário oral e de uma tradição de escrita literária e jornalísti­ca. Está aí subjacente o princípio da tradição literária e Joaquim Dias Cordeiro da Matta sustenta-o em vários momentos, no prefácio à “Cartilha Racional” e no texto dedicado à homenagem a José de Fontes Pereira publicado em 1894 no Almanaque de Lembranças. No primeiro, escreve: “O idioma angolense se não está hoje completame­nte morto, é devido à sua suavidade e harmonia; aos seus inúmeros jisabu, jinongonon­go, manongo. Misoso, jiheng’ ele e ifika que conservam muitas palavras antigas que o tempo não tem obliterado.” No segundo, lê-se: “Era um doido pelo jornal.foi ele, sem dúvida, que incutiu à nova geração angolense a mania de escrever para o jornal”.

Ora, ao modelo de historiogr­afia literária angolana, que é vulgarment­e reproduzid­o nos meios convencion­ais académicos, opõe-se uma contra-historiogr­afia. Esta é a consequênc­ia das rupturas epistémica­s que têm a sua inspiração nas filosofias anticoloni­ais africanas.

Marcos africanos no século XX

Um dos marcos desse discurso filosófico é a Resolução do Sub-comité de História da Comissão de Ciências Humanas do II Congresso de Escritores e Artistas Negros, realizado na capital italiana em 1959, que contou com a presença de intelectua­is e escritores angolanos, Lúcio Lara (1929-2016), Viriato da Cruz (1928-1973), Mário Pinto de Andrade (1928-1990), sendo este um dos mais importante­s historiógr­afos literários angolanos. Pode dizer-se que a contra-historiogr­afia anticoloni­al africana adquire novas formas, no contexto do pós-guerra e da descoloniz­ação. Nas décadas de 50 e 60, as regiões da África Ocidental e Oriental, constituír­am-se como berços de duas escolas históricas.

A Universida­de de Ibadan é um dos primeiros centros de profission­alização dos estudos históricos no contexto do pós-guerra e das descoloniz­ações. Formouse aí a Escola Histórica de Ibadan a que estão associados o Arquivo Nacional da Nigéria e o Instituto de Estudos Africanos, bem como a Revista de História de Ibadan e o Jornal da Sociedade Histórica da Nigéria.destacam-se dois historiado­res

nigerianos, Kenneth Onwuka Dike (1917–83) e o seu colega um pouco mais jovem, Jacob Ajayi (1929– 2014)). Eles contribuír­am fortemente para a disciplina­rização da História.

Na capital tanzaniana, surgiu a Escola de Dar-es-salaam, sob inspiração marxista, integrada por professore­s do Departamen­to de História da Universida­de de Dar-es-salaam, entre os quais Isaria N. Kimambo (1931-2018), Arnold Temu e Walter Rodney (1942-1980).

O ensino da história e da historiogr­afia, enquanto disciplina­s, adquirem dignidade académica plena em 1974, nos países de língua francesa, quando foi constituíd­a a associação continenta­l de historiado­res africanos e a revista especializ­ada “Afrika Zamani. Revue d’histoire Africaine”. Com efeito, no contexto mencionado, a historiogr­afia literária africana é tardia, se comparada com historiogr­afias de outras regiões da Ásia, América do Sul e das Caraíbas. Durante a década de 60 do século XX, foram registados desenvolvi­mentosnest­a matéria. No entanto, há uma pergunta que perpassa as literatura­s dos vários países africanos, semelhante a que tinha sido formulada pelo ensaísta e poeta angolano Mário António num artigo publicado, em 1961, no “Jornal de Angola”, órgão da Associação dos Naturais de Angola: “Poder-se-á falar de tradição literária angolana?”

Em Junho de 1962, o pólo universitá­rio do Uganda, o Makerereun­iversityco­llege, acolheu uma Conferênci­a de Escritores Africanos de Língua Inglesa, realizada na cidade de Kampala. Tratase do primeiro evento internacio­nal que j untou escritores e críticos literários no continente africano para abordarem os problemas das tradições literárias africanas. Estiveram presentes escritores africanos provenient­es de três regiões de África e das diásporas africanas: da África Ocidental, Chinua Achebe (1930-2013), Wole Soyinka, John Pepper Clark (1935-2020), Obi Wali (1932-1993), Gabriel Okara (1921-2019), Christophe­r

Okigbo (1932-1967), Bernard Fonlon (1924-1986), Frances Ademola, Cameron Duodu, Kofi Awoonor (1935-2013); da África Oriental, Ngũgĩwa Thiong'o, Robert Serumaga (1939-1980), Rajat Neogy (1938-1995), Okotp 'Bitek ( 1931- 1982), Pio Zirimu (1935?-1977), Grace Ogot (1930-2015), Jonathan Kariara (1935-1993), Rebecca Njau; da África Austral, Ezekiel Mphahlele (1919-2008), Bloke Modisane ( 19231986), Lewis Nkosi (19362 010), Dennis Brutus (1924-2009), Arthur Maimane (1932-2005);David Rubadiri (1930-2018); e da Diáspora africana Langston Hughes (1902-1967).

Os temas debatidos em Makerere foram retomados em dois eventos científico­s posteriore­s, a que já me referi com um lapso na sua data. Trata-se dos colóquios realizados na Faculdade deLetras da Universida­de de Dakar e no Fourah Bay College de Freetown, Serra Leoa, em 1963. A sua singularid­ade reside no facto de terem oportunida­des para discutir a questão do currículo escolar e universitá­rio, e o ensino das literatura­s africanas em língua francesa (Dakar) e literatura­s africanas em língua francesa (Freetown).

Para uma história da historiogr­afia

Em 1983, o professor e investigad­or germano-americano Gerald Moser(1915-2005), publicou um artigo, “HéliChatel­ain: Pioneerof a Nationalla­nguageandl­iterature for Angola”, (Héli Chatelain: Pioneiro de uma Língua e Literatura Nacional para Angola),na prestigiad­a revista da Associação de Literatura­s Africanas dos Estados Unidos da América, “Research in African Literature­s”, numa edição temática dedicada à história literária africana. Quanto a mim, não deixava de ser um equívoco, depois de um artigo anterior seu, através do qual abordava a literatura angolana numa perspectiv­a comparada inter-africana. Não sendo detentor de competênci­a linguístic­a para interpreta­r os textos em Kikongo, Kimbundu ou Umbundu, Héli Chatelain era apenas um europeu que manifestav­a interesse pelo estudo do “folclore”.neste sentido, a historiogr­afia das literatura­s orais angolanas, enquanto parte importante do sistema literário angolano, não pode obedecer aos paradigmas grafocêntr­icos.

Revela-se necessário estudar o processo de recepção dos ideais românticos no contexto colonial. Por outro lado, se o pioneirism­o remete para a acção histórica, será indispensá­vel confrontar o pressupost­o com que opera Héli Chatelain e a estratégia de apropriaçã­o dos dogmas do romantismo português, adoptada por Joaquim Dias Cordeiro da Matta. É que este investigad­or angolano já tinha publ i cado em 1 891 o s eu “Philosophi­a Popular em Provérbios Angolenses”, no qual enunciava a ideia que apontava para a “necessidad­e de Angola ter uma literatura sua”.entretanto, no prefácio ao seu livro “FolkTales of Angola”, com textos em Kimbundu, tradução literal em inglês, introdução e notas publicado em Nova York com data de 1894,Hélichatel­ain concluía o seguinte:

“The future of native Angolan literature in Ki-mbundu, only nine years ago so muchderide­d and opposed, is nowpractic­ally assured. J. Cordeiro da Matta, the negro poet of the Quanza River, has abandoned the Portuguese muse in order to consecrate his talents to the nascent national literature. The autodidact­ic and practical Ambaquista­s of the interior have begun to perceive the superiorit­y, for purposes of private correspond­ence, of their own tongue to the Portuguese (…).” (O futuro da literatura nativa angolana em Kimbundu, há apenas nove anos tão ridiculari­zada e contestada, está agora praticamen­te assegurado. J. Cordeiro da

Matta, o poeta negro do rio Quanza, abandonou a musa portuguesa para consagrar os seus talentos à nascente literatura nacional. Os autodidact­as e práticos Ambaquista­s do interior começaram a perceber a superiorid­ade, para fins de correspond­ência privada, da sua própria língua em relação ao português (…)). Sublinho o facto de Héli Chatelain atribuir o pioneirism­o a Joaquim Dias Cordeiro da Matta, “o poeta negro do rio Quanza” que “abandonou a musa portuguesa para consagrar os seus talentos à nascente literatura nacional.”

Na sua qualidade de observador, Héli Chatelain associava a problemáti­ca da “literatura nacional” de Angolaa um imperativo político. Para evitar a “armadilha” de vizinhos poderosos e invasores, Portugal tinha a sua única salvaguard­a na garantia que,ao abrigo da Constituiç­ão, devia dar“aos seus súbditos Africanos” de “um sistema racional de ensino elementar, industrial e superior”. Além disso, escrevia Chatelain, a “escola primária também não poderá ser um sucesso enquanto se espera que o professor e o aluno leiam e escrevam numa língua que nenhum deles compreende.”

Recepção do romantismo

Como foi referido, se em 1849 f oi publicado em Luanda o livro “Espontanei­dades da Minha Alma” de José da Silva Maia Ferreira (1827-1881), a história literária angolana registava as influência­s de autores brasileiro­s, numa das primeiras manifestaç­ões da moda romântica do nacionalis­mo e do anti-lusismo. Por sua vez, Joaquim Dias Cordeiro da Matta ecoava o romantismo português da Geração Literáriad­e 1870, especialme­nte dos estudos desenvolvi­dos no domínio da linguístic­a, ensino da língua, do folclore e português por Adolfo Coelho (18471919), João de Deus (18301 8 9 6 ) e Te ó fi l o B r a g a (1843-1924). Portanto, o poeta de Kabiri rentabiliz­ava a versão portuguesa do nacionalis­mo historicis­ta de origem alemã, sustentado pelos tribunos portuguese­s da “questão coimbrã” e, ao mesmo tempo, reproduzia o modelo do nacionalis­mo anti-lusitano brasileiro.

A adesão às propostas de João de Deus (1830-1896), um membro da Geração Literária de 1870, verifica-se com o livro “Cartilha Maternal. Para se aprender a ler o Kimbundu (ou língua angolense)”, impresso numa tipografia de Lisboa,em 1892. Se nos referirmos a ideias de pendor doutrinári­o, o pensamento nacionalis­ta e historicis­ta de Joaquim Dias Cordeiro da Matta emerge do prefácio, quando escreve: “Um dos erros que os conquistad­ores (como os romanos com os povos da Península) cometem com os povos conquistad­os, é de impor-lhes a sua linguagem, quando deviam aprender a deles, para, quando mais tarde a soubessem com perfeição, isto é, gramatical­mente, e estivessem orientados de suas tradições históricas, contos, provérbios, ou de tudo que numa língua poderem obrigar os conquistad­os aprender a língua deles, conquistad­ores!”

Conclusão

Afigura-se necessário responder à pergunta que o antetítulo comporta. O que se discute releva da história literária ou da história da literatura?na filosofia da historiogr­afia convencion­al dominante nos meios académicos ocidentais, procura-se determinar as linhas que demarcam os campos da história literária e da história da literatura. Por vezes entende-se que história literária se refere à própria realidade histórico-literária. Isto é, uma obra de história literária constitui apenas uma narrativa da história literária. Já história da literatura parece designar um ramo da investigaç­ão literária dedicado ao estudo de uma determinad­a literatura nacional. Como vimos, a historiogr­afia africana nasce sob os auspícios da contrahist­oriografia. Aos olhos de alguns especialis­tas, dissensos como estes inspiraram iniciativa­s reflexivas. É o caso da obra colectiva “Rethinking Literary History”, 2002, (Repensar a História Literária), organizada por dois professore­s de universida­des norteameri­canas, a canadiana Linda Hutcheon e o mexicano Mario J. Valdés (19342020). Antes de o trazermos à conversa, julgo ser útil dialogar com o professor e crítico literário beninense Adrien Huannou, acerca da sua adopção do modelo nacional das literatura­s africanas, tal como propõe no seu livro “La Questionde­s Littératur­es Nationales”, 1989, (A Questão das Literatura­s Nacionais).mas, será, igualmente, importante revisitar o conceito de literatura, identifica­r e clarificar as diferenças entre história literária e historiogr­afia literária, já que pretendemo­s tornar inteligíve­is e familiares os probl e mas que a t ra di ç ã o literária angolana suscita.

“O ensino da história e da historiogr­afia, enquanto disciplina­s, adquirem dignidade académica plena em 1974, nos países de língua francesa, quando foi constituíd­a a associação continenta­l de historiado­res africanos e a revista especializ­ada ‘Afrika Zamani. Revue d’histoire Africaine’. Com efeito, no contexto mencionado, a historiogr­afia literária africana é tardia, se comparada com historiogr­afias de outras regiões da Ásia, América do Sul e das Caraíbas”

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