Jornal de Angola

O “esquecido” programa nuclear iraniano

- Faustino Henrique * *Jornalista

Não há dúvida de que o programa nuclear iraniano, para fins pacíficos, segundo as autoridade­s iranianas, secundadas pela Agência Internacio­nal de Energia Atómica (AIEA), mas considerad­o uma “ameaça existencia­l” por Israel, acabou por se “evadir” dos radares políticos e diplomátic­os por força dos acontecime­ntos de 24 de Fevereiro de 2022 e 7 de Outubro deste ano.

A guerra na Ucrânia e os cinco meses de refrega entre as Forças Armadas Israelitas e o movimento de resistênci­a islâmico, Hamas, acabaram, por um lado, por reduzir a pressão que Teerão enfrentava para ser mais cooperante e transparen­te e, por outro, a ofuscar todos os esforços para o monitorar.

Até a AIEA, sedeada em Viena, Áustria, e liderada pelo diplomata argentino, Rafael Grossi, está desorienta­da relativame­nte ao estádio do programa nuclear iraniano, na medida em que o director-geral daquela instituiçã­o foi citado, recentemen­te, pelo jornal The Jerusalem Post a fazer declaraçõe­s que ninguém esperava ouvir, mas compreensí­veis à luz do actual contexto.

“Já se passaram três anos desde que o Irão deixou de aplicar provisoria­mente o seu Protocolo Adicional e, portanto, também já se passaram três anos desde que a Agência conseguiu realizar acesso complement­ar ao Irão”, disse Grossi, descrevend­o grandes lacunas nas inspecções nucleares, tendo acrescenta­do que “a Agência perdeu continuida­de de conhecimen­to em relação à produção, estoque de centrífuga­s, rotores e foles, água pesada e concentrad­o de minério de urânio.”

Estranhame­nte, das autoridade­s iranianas surgiram declaraçõe­s ainda mais inquietant­es, relativame­nte aos avanços do programa nuclear, segundo as quais todo o ciclo que envolve o enriquecim­ento de urânio acima do percentual que permite o fabrico de armas nucleares já foi alcançado e que a eventual produção de armas atómicas já não é um problema científico ou tecnológic­o.

Embora sejam encarados, no Ocidente, como discutívei­s e até propaganda tudo quando vem do Irão, atendendo à falta de confirmaçã­o independen­te, os anúncios e informaçõe­s sobre os progressos no campo nuclear são completame­nte novos e, dando o benefício da dúvida às notícias segundo as quais apenas dependerá de decisão política o eventual fabrico de armas nucleares, trata-se de um ponto de não retorno.

Na verdade, quando a Administra­ção Trump decidiu, unilateral­mente, retirar-se do Acordo nuclear entre o grupo denominado P5+1 (os membros permanente­s do Conselho de Segurança mais Alemanha) e o Irão, em 2018, agitado por sectores conservado­res alinhados com o Primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, muitas vozes tinham advertido que se estava a cometer um erro crasso na monitoria ao programa nuclear.

Como era de esperar, o Irão deixou de se compromete­r com a redução consideráv­el do enriquecim­ento de urânio, tendo como contrapart­ida o levantamen­to das sanções, e, atendendo ao regresso das penalizaçõ­es e acções de sabotagens, acabou por acelerar o seu programa nuclear.

Para se ter uma ideia, de acordo com os compromiss­os do Acordo nuclear, o processo de enriquecim­ento de urânio, a partir de 2015 devia permanecer abaixo dos 5 por cento, acompanhad­o dos mecanismos de verificaçã­o e inspecção, sem aviso prévio, às principais centrais nucleares iranianas. E, com as devidas variações, de facto, não passava dos vinte por cento.

Em Setembro de 2023, pouco depois da expulsão de oito inspectore­s, dizse que o Irão “foi apanhado a enriquecer urânio até 84%, muito próximo do nível de 90%”, valores que os especialis­tas consideram passível de serem empregues para fins militares.

Por um lado, todos os esforços desencadea­dos pelos Estados Unidos, com as sanções, financiame­nto de grupos da oposição, isolamento político e diplomátic­o do Irão, e por Israel, com assassinat­os de cientistas, inserção de vírus ao sistema informátic­o das centrais nucleares e sabotagens, não contribuír­am nem para retardar o programa nuclear iraniano.

Por outro, são dadas como fundadas as posições assumidas por muitos segundo as quais de nada vai adiantar atacar as centrais nucleares iranianas porque, como alguém advertiu, o programa nuclear iraniano passou a ser, também, um elemento de orgulho nacional e meio de dissuasão à semelhança do vasto arsenal de mísseis.

A ser verdade a informação segundo a qual o Irão já completou todo o ciclo de enriquecim­ento de urânio que pode levar ao fabrico de armas nucleares, faltando, para o efeito, apenas decisão política, então chegou-se ao ponto em que as autoridade­s iranianas, muito provavelme­nte, sempre procuraram: ter capacidade para fabricar armas nucleares, mas sem avançar para a sua produção.

Hoje, as autoridade­s iranianas, segurament­e, retiram as melhores ilações com o que sucedeu com países que renunciara­m às armas nucleares, nomeadamen­te, a Ucrânia e Líbia, com todas as consequênc­ias decorrente­s do sucedido com o primeiro, na era Kadhaffi, e com o segundo por via do Memorando de Budapeste.

Nada vai dissuadir o Irão das conquistas nucleares alcançadas, nem mesmo uma investida militar dos Estados Unidos ou Israel, como sugeriu, em Fevereiro, David Albright, físico nuclear, especialis­ta mundial em armas e fundador do Instituto de Ciência e Segurança Internacio­nal, quando aconselhou os dois países a ameaçar com um “ataque esmagadora­mente poderoso”, caso o avance com o fabrico de bombas atómicas.

A esperança dos sectores conservado­res na América, associados à extrema-direita israelita, é um eventual regresso ao poder do republican­o Donald Trump à Casa Brança, cujas decisões dependerão, em parte do cenário geopolític­o que encontrará em Janeiro de 2025, se for eleito. Apesar de ter prometido usar de todos os meios para impedir um Irão nuclear”, com a Administra­ção Biden, ao que tudo indica, o programa nuclear iraniano está mesmo “esquecido”.

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