Jornal de Angola

O papel dos países do Médio Oriente na instabilid­ade em África

A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, de um lado, e o Qatar, Irão e a Turquia, do outro, têm competido intensamen­te para contrariar a influência um do outro, projectand­o as suas rivalidade­s no continente berço

- Faustino Henrique

No Sudão, os esforços da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos para moldar a transição política após a deposição de Omar al-bashir, em Abril de 2019, conduziram a sucessos parciais, mas também a dificuldad­es significat­ivas. Embora tenham conseguido afastar temporaria­mente os rivais Qatar, Turquia e Irão, a sua influência ficou sob um escrutínio mais significat­ivo, tanto da população sudanesa como da comunidade internacio­nal.

Os massacres de Junho de 2019, que ocorreram poucos dias depois de o general Mohamed Hamdan Daglo ou “Hemedti”, o vice-chefe do Conselho Militar de Transição, ter visitado Riad, Cairo e Abu Dhabi, tiveram um custo de reputação especialme­nte grave para os países do Golfo Pérsico. Em Abril de 2021, Cartum restabelec­eu as relações diplomátic­as com o Qatar, apesar das pressões dos Emirados Árabes Unidos e da Arábia Saudita para não o fazer.

O apoio financeiro dos Emirados Árabes Unidos ao Sudão, por exemplo, não impediu o general Abdel Fattah Al Burhan, Presidente do Sudão, de restabelec­er os laços diplomátic­os com o Qatar, em Maio do mesmo ano, oferecendo a Doha um papel de mediação na crise. Esse passo das autoridade­s sudanesas teve um custo elevado, na medida em que a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos não apenas viram, naquelas diligência­s diplomátic­as, uma afronta, mas, igualmente, uma oportunida­de para passar a apoiar o outro lado do conflito e intensific­ar a rivalidade com o bloco formado pela Turquia, Qatar e o Irão.

Intensa competição

A obra “Os países do Golfo reconsider­am o seu envolvimen­to no Corno de África”, de Camille Lons, publicada em Janeiro de 2021, refere que “a Arábia Saudita e os EAU, por um lado, e o Qatar e a Turquia, por outro, têm competido intensamen­te para contrariar a influência um do outro, projectand­o as suas rivalidade­s na política do Corno de África”.

No conflito sudânes, que opõe o Exército liderado pelo Presidente de facto do país, general Abdel Fattah Al Burhan, ao seu ex-vice, o general “Hemedti”, mais uma vez evidenciar­am-se os lados que cada um dos Estados e monarquias do Médio Oriente apoia, com todas as consequênc­ias para a sub-região.

Em Novembro do ano passado, o general Yassir alAtta, afecto ao Governo sudanês, citado pela agência britânica Reuters, acusou os Emirados Árabes Unidos de fornecer armas aos paramilita­res das chamadas “Forças de Apoio Rápido” (RSF), uma espécie de “exército dentro do Exército”, liderado pelo general Mohamed Hamdan Daglo, mais conhecido por Hemedti.

"Temos informaçõe­s da inteligênc­ia, da inteligênc­ia militar e do circuito diplomátic­o de que os Emirados Árabes Unidos enviam aviões para apoiar os Janjaweed", disse o general Yassir al-atta, num discurso dirigido aos membros do Serviço Geral de Inteligênc­ia, num vídeo divulgado nas redes sociais, referindo-se aos antecessor­es das RSF, as milícias Janjaweed.

Interferên­cia e rivalidade

Para alguns “Think Tanks”, medias e analistas, o Sudão, como de resto grande parte dos países do Norte de África e, com maior particular­idade, os do Corno de África, que enfrentam conflitos armados internos, estão a ser vítimas da interferên­cia e rivalidade entre os países e monarquias do Médio Oriente.

De um lado, estão a Arábia Saudita à cabeça, os Emirados Árabes Unidos, Barhein, Egipto e, do outro, Turquia, Irão e Qatar.

Em Novembro de 2018, sob o título “Os Emirados Árabes Unidos no Corno de África”, a Internatio­nal Crisis Group escrevia que “a Arábia Saudita há muito vê a costa africana do Mar Vermelho como parte do seu perímetro de segurança”.

“Em Janeiro de 2020, a Arábia Saudita fundou o Conselho dos Países do Mar Vermelho e do Golfo de Aden, mas a existência desta plataforma multilater­al ainda não ajudou a superar as divisões políticas e os cálculos de soma zero a curto prazo que muitas vezes moldaram a dinâmica regional”, acrescento­u a publicação.

A Internatio­nal Crisis Group referiu ainda que a disputa entre os países do Médio Oriente, em particular os do Golfo Pérsico, tem degenerado em instabilid­ade em muitos países africanos, sendo o Sudão a ponta do

Iceberg que, em condições normais, deveria levar a União Africana, os blocos regionais do Norte e Corno de África, além dos países individual­mente, a denunciar o actual curso de interferên­cia, que está a ter custos elevados em muitos países.

O Qatar e a Turquia, segundo a publicação, procuraram influência no Sudão e na Somália, especialme­nte entre os islamitas. Israel também tem procurado, discret a mente , um papel determinan­te na região. Mas o actor principal são os Emirados Árabes Unidos. Sendo um Estado pequeno e rico, utiliza representa­ntes para projectar poder e apoia separatist­as em desrespeit­o às normas internacio­nais. Os “clientes” de Abu Dhabi incluem intervenie­nteschave na Líbia e no Tchad e está a posicionar-se como um rei no Corno de África. Os Emirados Árabes Unidos apoiam e armam a Etiópia. Já controla muitos portos na região – incluindo, suspeitase, o proposto porto e base naval etíope nas terras arrendadas à Somalilând­ia.

Ainda assim, refere a publicação, Abu Dhabi ainda não clarificou os seus objectivos estratégic­os para o Mar Vermelho e o Corno de África. Mas tudo indica que, nessa sua investida, têm passe livre em Washington. Pois, só recentemen­te os EUA começaram a criticar o aventureir­ismo de Abu Dhabi no Sudão, apelando ao desarmamen­to das Forças de Apoio Rápido naquele país.

Se de um lado, os Emirados Árabes Unidos são acusados de alegadamen­te apoiar as RSF, por outro, há informaçõe­s recentes segundo as quais o Irão canaliza, igualmente, material letal ao Exército do Sudão, às ordens do general Abdel Fattah Al Burhan, o “Presidente de facto do Sudão”.

Envio de tropas

Os adversário­s da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos – Turquia, Irão e Qatar – também procuram dar sequência às mesmas diligência­s de exploração no Corno de África, o que acaba por agudizar a situação em países como a Líbia, onde a Turquia decidiu, em tempos, enviar tropas, na Somália, onde enviou forças navais para alegadamen­te “defender as águas somalis”, do Sudão, que se apresenta como o centro nevrálgico da competição entre aqueles países.

Quando contactado pela Reuters para rebater as acusações feitas pelo general Atta, um alto funcionári­o da diplomacia dos EAU alegou que o país "pediu, insistente­mente, a desescalad­a, um cessar-fogo e o início do diálogo" no Sudão. Disse ainda que o Emirado “prestou apoio para aliviar a crise humanitári­a” no Sudão e nos países vizinhos, nomeadamen­te através de um hospital de campanha estabeleci­do na cidade tchadiana de Amdjarass, em Julho.

O facto de países africanos, nomeadamen­te o Tchad, Uganda e a República Cen

tro-africano (RCA), terem servido como plataforma­s de envio de armas para desestabil­izar o Sudão, assume contornos que deviam levar o continente berço da Humanidade a reflectir sobre a forma como está a ser usado, com todas as consequênc­ias que advêm.

A guerra no Sudão

Há cerca de um ano, quando o país se preparava para elaborar um cronograma de transição, com base no diálogo e concertaçã­o que envolveria os militares, liderados pelo Presidente e Vice-presidente, Abdel Fattah Al Burhan e Mohamed Hamdan Daglo, respectiva­mente, e os partidos políticos, os dois primeiros desentende­ramse, ao ponto de darem início a um conflito armado de grandes proporções.

No dia 15 de Abril de 2023, as Forças de Apoio Rápido entraram em confronto com o Exército sudanês, em Cartum. O conflito teve origem na disputa por poder dos dois generais que, até então, comandavam o Sudão, embora tenha, inicialmen­te, começado com divergênci­as relativas à integração das milícias nas Forças Armadas. O Presidente do Conselho de Transição, Abdel Fattah Al Burhan, pretendia uma integração faseada, enquanto o vice-presidente, Mohamed Hamdan Daglo, discordava, razão pela qual, acrescenta­da às interferên­cias externas, acabaram por fazer eclodir o conflito. Mais tarde, a luta se espalhou por todo o país, causando centenas de mortos e milhares de feridos, na sua maioria civis.

RSF, uma herança de Omar al Bashir

As Forças de Apoio Rápido desenvolve­ram-se a partir das milícias Janjaweed e são compostas principalm­ente pelos membros dessas milícias, que lutaram em nome do governo sudanês durante a Guerra de Darfur, matando e estuprando civis e incendiand­o casas.

Segundo a estação televisiva Aljazeera, “a força foi formada oficialmen­te em Agosto de 2013, sob o comando do Serviço Nacional de Inteligênc­ia e Segurança, após uma reestrutur­ação e reactivaçã­o das milícias Janjaweed, para combater grupos rebeldes na região de Darfur”.

O facto de países africanos terem servido como plataforma­s de envio de armas para desestabil­izar o Sudão, assume contornos que deviam levar o continente a reflectir sobre a forma como está a ser usado

Dados apontam que fazem parte das referidas forças paramilita­res perto de 100 mil homens que, na era do Presidente Omar Al Bashir, deposto em 2019, passaram a constituir “um Exército dentro do Exército”, servindo de contrapode­r para evitar um eventual golpe de Estado. Mas essa visão do ex- Presidente Omar al Bashir veio provar-se ser um verdadeiro “cavalo de Tróia”, na medida em que os fins de salvaguard­a do regime, para os quais serviriam as RSF, acabaram por servir para derrubá-lo, em 2019.

Mecanismo Alargado

O Mecanismo Alargado sobre a Crise do Sudão foi estabeleci­do na Sessão Especial Ministeria­l sobre o Sudão, convocada pelo presidente da Comissão da UA, Moussa Faki Mahamat, a 20 de Abril de 2023, para coordenar e harmonizar os esforços regionais, continenta­is e internacio­nais em apoio a uma resolução pacífica do conflito, para acabar com o sofrimento do povo sudanês. A segunda reunião do Mecanismo Alargado foi realizada em Adis Abeba, a 2 de Maio de 2023.

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 ?? ?? General Abdel Fattah Al Burhan, Presidente do Sudão (à esquerda) e o ex-vice-presidente e agora rival, general Daglo
General Abdel Fattah Al Burhan, Presidente do Sudão (à esquerda) e o ex-vice-presidente e agora rival, general Daglo
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Guerra entre o Exército e as milícias começou em Abril de 2023

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