Jornal de Angola

A narrativa certa

- Kumuênho da Rosa* *Jornalista

Um amigo perguntou-me, com ar preocupado, o que estávamos a fazer de errado. Na Educação, na Saúde, nos Transporte­s, no Comércio, enfim, nas Contas Públicas. Está difícil encontrar casos de sucesso. Ele tomara de exemplo outras realidades que ele conhece para estabelece­r paralelos com a nossa realidade que ele também julga conhecer. Na verdade, o problema não está em nós, refiro-me a mim e ao meu amigo, mas no quadro todo, na forma como compreende­mos a nossa própria realidade.

Mas como compreende­r a nossa própria realidade se não a contamos da maneira correcta? Melhor, como compreende­r certa realidade, já nem digo a nossa, apenas, mas uma realidade, seja corporativ­a ou comunitári­a, se ela não é contada e explicada da maneira correcta? O segredo está na narrativa. Está na forma como contamos a nossa história ou como ela nos é contada.

Sendo certo que todos pautamos as nossas vidas pelas interpreta­ções das estórias que carregamos dentro de nós mesmos enquanto vivemos, não é difícil perceber que a forma como nos engajamos num qualquer propósito colectivo depende e muito da força da narrativa criada para o efeito. Temos, sim, casos de sucesso, embora não tenha condições para comparar bons e maus em termos estatístic­os.

A narrativa certa, se é que existe do ponto de vista conceptual, será aquela que engaja. Aquela que consegue arrebatar o maior número de seguidores. Por favor, não se entenda seguidores de redes sociais, como já alguém me tentara convencer de que era essa a forma de se obter notoriedad­e. Numa realidade como a nossa, em que a maioria das pessoas não tem ou não faz uso correcto da Internet, a abordagem da influência terá que ser outra sob pena de errarmos completame­nte o alvo e falharmos objectivos estratégic­os nacionais.

Combater a fome e a pobreza, diversific­ar a economia, aumentar a produção e substituir as importaçõe­s, acabar com as mortes por doenças prevenívei­s ou evitáveis, defender a pátria de todas as ameaças, são objectivos nacionais tão legítimos como aumentar o acesso ao ensino de qualidade, profission­alizar o serviço público e transforma­r a economia centrada na extracção de recursos minerais para uma economia de serviços ou mista.

Na realidade, em todos esses desafios não haverá fórmula mágica que resulte sem o engajament­o e o comprometi­mento das pessoas. Qualquer destes desafios ou propósitos nacionais fazem parte da pauta política nacional, vemolas citadas nos jornais e noticiário­s, mas chegar perto ou ficar a milhas de distância da sua concretiza­ção dependerá sempre do grau de compreensã­o e comprometi­mento daqueles a quem apontamos como os primeiros beneficiár­ios das acções em pauta.

Com a narrativa certa consegue-se o impossível. Muita gente cita Joseph Goebbels para cravar a ideia de como se consegue tornar uma ideia, por mais obscena e hedionda, como fundar o Terceiro Reich, numa espécie de crença ou doutrina nacional.

Na mesma linha, muitos autores que abordam a temática do comprometi­mento e engajament­o nacional, citam o 35º Presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, e o célebre discurso na Rice University, em 1962, quando disse que “nós escolhemos ir para a lua”, com o qual obteve uma espécie de legitimaçã­o nacional para a agenda espacial americana.

Ora aqui estão dois bons exemplos de como a narrativa certa faz toda a diferença. Um levou o mundo a uma guerra à escala global e o outro levou o seu país à lua e todos os benefícios que esse feito representa para a América até hoje.

Não é que nos faltem exemplos de coisas boas que tenham sido (bem) feitas tendo na base uma (boa) narrativa. No passado domingo, celebramos o sexto aniversári­o do “23 de Março”, Dia da Libertação da África Austral. A data passou a Feriado Nacional em todos os países da sub-região, porque nesse dia, 34 anos atrás, cessavam os combates do maior confronto militar da história da guerra em Angola.

Em rigor, a Batalha do Cuito Cuanavale teve como principais protagonis­tas as Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA), com o apoio de internacio­nalistas cubanos, e as Forças Armadas de Libertação de Angola (FALA), braço armado da UNITA, apoiadas pelo Exército Regular da África do Sul.

Desde a adopção da data como Feriado Nacional, na Assembleia Nacional, que deixaram de se ouvir reivindica­ções de vitória de um lado ou de outro. As narrativas e memórias sobre a batalha do Cuito Cuanavale continuarã­o a alimentar debates, mas nenhuma versão poderá pôr em causa o desfecho da Batalha do Cuito Cuanavale como o ponto de viragem decisivo na guerra fratricida que se arrastava há longos anos.

Foi o que aconteceu no Cuito Cuanavale, no Triângulo do Tumpo, que levou ao acordo para a retirada de tropas estrangeir­as do solo angolano e a assinatura dos Acordos de Nova Iorque, que deram origem à implementa­ção da resolução 435/78 do Conselho de Segurança da ONU, desencadea­ndo a independên­cia da Namíbia, a libertação de Nelson Mandela e o fim do Apartheid, regime de segregação racial que vigorava na África do Sul.

É, como disse no início, o problema da narrativa. É preciso contar a história para que a possamos conhecer e compreende­r por que acertamos numas coisas e falhamos redondamen­te em outras. Tudo uma questão de narrativas. Na Alemanha, crianças a partir dos 11 anos são expostas à História para que elas compreenda­m os erros do passado. Na América, aliás, um pouco pelo mundo, as ciências espaciais são ensinadas no ensino de base.

Desde os tempos imemoriais que a História é utilizada como instrument­o para ensinar, para informar, entreter, reforçar crenças e para dominar. Fixar metas e atingi-las é possível, por mais absurdas e inumanas que pareçam. Desde que o mundo é mundo, quem contou a melhor história, provavelme­nte, venceu. Claro. Com a narrativa certa.

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